Mundial feminino ocorre neste ano e contará, pela primeira vez, com uma transmissão digital e majoritariamente composta por mulheres na TV

Por Letícia Merotto e Maria Eduarda Vieira

A Copa do Mundo feminina de 2023, que ocorrerá entre os meses de julho e agosto. na Austrália e Nova Zelândia, está prestes a escrever um novo capítulo na história das transmissões. Na televisão, o campeonato será exibido pela maior empresa de comunicação da América Latina e uma das maiores do mundo, a TV Globo, e contará com uma equipe majoritariamente feminina, inclusive na narração. No streaming, fenômeno mais recente de transmissões digitais, a CazéTV, canal do YouTube do influenciador e jornalista Casimiro Miguel, também transmitirá o campeonato pela primeira vez após o sucesso de visualizações no Mundial masculino no Catar, ocorrido no último ano. 

Com a inovação e a representatividade, o Mundial feminino alcança os olhares de mais pessoas ao redor do mundo, o que também atrai ainda mais patrocínios. Para as jogadoras, a transmissão do campeonato em uma das maiores emissoras do mundo e o maior canal de streaming do YouTube é um motivo de esperança.

“O futebol feminino vai estar nas discussões de diferentes opiniões entre amigos em uma mesa de bar, entre famílias, podendo alcançar mais pessoas e fazendo com que possa ser reconhecido, além de desconstruir a ideia de que ninguém liga ou assiste ao futebol feminino. Até porque vem batendo recorde de público cada vez mais e já chegou a atingir mais de 91 mil pessoas em um estádio”, explica Beatriz Pereira, ex-jogadora profissional de futebol dos times Bangu e Cabofriense.

A representatividade feminina também apresenta um valor político no Brasil. Isso porque o futebol feminino tem uma enorme mancha social na história do país, quando o Governo de Getúlio Vargas sancionou o Projeto de Lei 3199, em 1941, que proibiu que mulheres jogassem futebol e outros esportes por serem “incompatíveis com as condições de sua natureza”. O decreto ficou em vigor por mais de 40 anos, e deixou uma herança social por ainda mais tempo, e que se arrasta até hoje. 

Eliza Ranieri, produtora executiva da LiveMode, empresa de mídia e marketing esportivo que criou a CazéTV, explica: “O futebol feminino não é só uma modalidade feminina, simboliza conquistarmos um espaço que não tínhamos há cinco anos atrás, e ter destaque para uma coisa que há pouco não tínhamos. Tem um peso social, um peso político muito grande por trás dessa competição”.

Além de atrair ainda mais patrocínios e gerar mais receita para os clubes, as transmissões do futebol feminino também são grandes aliadas para que mais meninas sonhem em ser jogadoras no Brasil, incentivando e perpetuando o esporte. 

“Homens sempre olham para uma transmissão na Copa do Mundo e falam: ‘eu quero ser esse jogador’, e eu quero que essas que meninas hoje assistam a Copa do Mundo na CazéTV, vejam uma jogadora nessa transmissão e entendam que elas têm esse espaço e podem estar ali um dia também, essa é a importância da transmissão pensando em novas gerações e no futuro do futebol feminino”, completa Eliza Ranieri. 

Pioneirismo digital

No último ano, a Copa masculina do Catar teve como maior característica ter sido a primeira Copa do Mundo digital, ou seja, transmitida por streaming e acessada na palma da mão. A novidade foi um sucesso absoluto entre os telespectadores, que podiam acessar os jogos em qualquer lugar que estivessem, seja no Globoplay, aplicativo de streaming da TV Globo, ou na CazéTV, onde encontrariam uma linguagem mais informal e voltada para aquele modelo. 

Eliza Ranieri, produtora executiva da CazéTV, explica sobre o sucesso da transmissão da Copa do Mundo de 2022: “eu acho que o mais importante foi que não trouxemos uma transmissão de TV pro digital, fizemos uma transmissão cem por cento pensada para esse meio. Ela tinha características do mundo digital, como a linguagem e as ferramentas desse modelo, e foi pensada exatamente para aquele público ali. As pessoas não eram obrigadas a assistir à CazéTV, mas elas optaram por isso, porque ali tinha uma coisa de diferente”.

Para ela, a linguagem do mundo digital é algo que aproxima os internautas da transmissão, e o chat do YouTube é uma das principais ferramentas: “O chat faz as pessoas se sentirem parte da transmissão, e essa é uma coisa que a gente quer fazer. Queremos que as pessoas dêem a sua opinião e se sintam ouvidas”, complementa Eliza. 

Para a Copa do Mundo feminina que será transmitida pela empresa também, a produtora não esconde sua empolgação e responsabilidade: “Eu já trabalhei em duas Copas do Mundo, mas eu nunca tive experiência de trabalhar numa Copa do Mundo feminina, vai ser a primeira vez em quase seis anos que eu estou no meio do jornal esportivo. E, pra ser sincera, estou muito ansiosa e animada, assim como sinto uma responsabilidade muito grande. É uma coisa que tem um peso social e um peso político muito grande na vida de quem entende o nosso papel e nossa posição na sociedade”. 

O streaming, no entanto, é muitas vezes um espaço ocupado majoritariamente por homens. Sobre isso, a produtora revela que a transmissão da Copa de 2023 não será assim: “Eu acho que seria hipocrisia a gente ter um elenco masculino num evento mundial que tem valor político, social e emocional para mulheres. Se a gente quer se conectar com essas mulheres, com esse público de meninas que se sentem representadas e que estão felizes por ter uma Copa do Mundo feminina sendo transmitida, a gente tem que falar de mulheres para mulheres. Por mais que se esforcem, por mais que sejam aliados à essa luta, homens nunca vão entender a importância de ter essa Copa do Mundo transmitida num local como na CazéTV”.

Time feminino do São Paulo | Foto: Fernanda Luz / Staff Images Woman

História das transmissões

A primeira edição de uma Copa do Mundo masculina ocorreu em 1930, sediada no Uruguai. Para as mulheres, a Copa só chegou mais de 60 anos depois, tendo a sua primeira Copa organizada pela FIFA (Federação Internacional de Futebol) sem transmissão em 1991, na China. 

A primeira vez que foi televisionada, portanto, foi registrada apenas na quarta edição da competição feminina, em 2003, no canal fechado, por assinatura, ESPN. Nas Copas seguintes, ocorridas a partir de 2007, também há registros de transmissões feitas pela TV Bandeirantes e pelo SporTV. Porém, as transmissões, além de parciais, se restringiam às análises de jogos do Brasil e da atacante Marta.

Em 2015, a TV Brasil, rede de televisão pública brasileira, transmitiu pela primeira vez algumas partidas da Copa do Mundo, que ocorreu na Alemanha. Vale dizer, no entanto, que a competição contou com 24 seleções, 4 fases e mais de 30 partidas. As transmissões, no entanto, não chegaram a cobrir ⅓ dos jogos, tendo apenas 10 confrontos televisionados. 

Em 2019, a Copa do Mundo feminina teve sua conquista mais expressiva, quando a TV Globo televisionou o campeonato, com dois jogos transmitidos por dia na fase de grupos, além das oitavas, quartas, semifinais e finais com cobertura completa. Todo o campeonato também foi coberto no site e nas mídias sociais da emissora. 

O feito mais significativo para mulheres nesse ano, no entanto, se deu pelo corpo feminino que compôs as transmissões. A jornalista Ana Thaís Matos participou como comentarista de grande parte dos jogos e a repórter Nadja Maud também ocupou um papel importante nas transmissões. A edição, contudo, não contou com narradoras mulheres.

Por que o futebol feminino não é valorizado?

Jogadora do Atlético Paranaense | Foto: Kely Pereira / Staff Images Woman

Seja em termos de patrocínio, audiência ou condições de treinamento para as jogadoras, o futebol feminino carece de muitos recursos para se consolidar e alcançar o seu espaço. Comparado ao masculino, a disparidade de patrocínios, investimentos, transmissões e torcedores em relação a modalidade feminina é ainda maior. Se o esporte é o mesmo, não sobra outro motivo para a desvalorização do esporte: uma herança social machista que não permite que a sociedade entenda que mulheres podem jogar futebol.

O machismo leva a uma falta de cultura de incentivo a assistir ao futebol feminino. Se os meninos são ensinados a assistir futebol masculino desde pequenos, meninas são ensinadas a, no máximo, também assistir futebol masculino. O feminino nunca está nos planos e não faz parte de uma herança familiar. 

Luísa Lima é torcedora assídua de futebol masculino desde os 8 anos de idade. A respeito do futebol feminino, ela confessa assistir apenas a grandes competições, como Copa do Mundo, Olimpíadas e também a Champions League, um importante campeonato europeu. Para ela, o motivo dessa disparidade entre as modalidades de um mesmo esporte é clara: a falta de incentivo, de transmissão e de notícias por parte mídia, além da desvalorização dos clubes.

“Acho que a questão é que não é algo tão valorizado pelos clubes e pela mídia, é pouco comentado até mesmo na internet. Por não ser algo que está ‘na boca do povo’ e não é muito noticiado, não é algo que eu tenho tanta conexão e também não sei muitas informações, como quando serão os jogos”, explica.

Questionada se gostaria de assistir aos jogos do seu time feminino, a resposta para Luísa é direta: “Se tivesse jogo do Fluminense feminino no Maracanã, eu iria assistir. Eu gosto de conversar sobre futebol com quem está acompanhando e sabe o que está acontecendo nesse meio. Se fosse algo mais televisionado, mais frequente nas redes sociais e em programas de televisão, eu com certeza me esforçaria mais pra saber. O futebol deveria ser um só”, completa a torcedora.

Expectativa para o futuro

Para o futuro, a jogadora Beatriz Pereira conta algumas das suas expectativas: “Que todos entendam a importância e valorizem o futebol feminino, possibilitando uma melhor estrutura física e multidisciplinar para os times treinarem e terem apoio integral para desenvolverem sua profissão como atletas. Já que a realidade de muitas jogadoras, hoje em dia, é ter que trabalhar para poder se sustentar, visto que não recebem nenhuma ajuda de custo. O que dificulta a dedicação total ao treinamento e, consequentemente, tendo uma queda no rendimento”.

Além das condições de treinamento, Beatriz também defende que não se utilizem jogadores homens como referência para as meninas que jogam muito. “Não falarem que a menina é a Ronaldinha, Messi, Cristiano Ronaldo ou Neymar por jogar muito. Ela é uma mulher e não precisa ser comparada a um homem para jogar futebol”, explica.

Por fim, a jogadora chama a atenção para outro ponto pouco pensado pelos clubes: que os jogos dos times femininos e masculinos do mesmo clube não sejam realizados no mesmo dia e muito menos no mesmo horário, evitando que os torcedores tenham que escolher um jogo para assistir e não poder apoiar os dois times de maneira igual.

Jogadoras do Flamengo abraçadas | Foto: Lívia Villas Boas / Staff Images Woman

Cobertura multimidiática

Ainda em meio à desvalorização do futebol feminino, as redes sociais aparecem como uma esperança trazendo um novo olhar para o esporte e colaborando para a modalidade feminina. No Instagram, por exemplo, qualquer usuário pode ter acesso a diferentes perfis e criadores de conteúdo que dedicam um espaço para o esporte feminino nas suas mídias. 

A criadora de conteúdo digital esportivo Bárbara Comparato começou a produzir e publicar conteúdos sobre o Santos, seu time do coração, no seu perfil do Instagram, durante a pandemia. Aos poucos, ela foi ganhando visibilidade e, como mulher, percebeu que poderia usar isso a favor do futebol feminino. 

“Eu percebi que eu tinha que usar a influência que eu estava conquistando para aproximar o meu público do futebol feminino, até porque eu sei que a maioria das pessoas que me acompanham são homens, então ainda existe muito preconceito sobre a modalidade feminina.”, conta Bárbara. 


Atualmente, ela possui 41 mil seguidores no seu perfil no Instagram, que funciona como um contato direto do torcedor com o clube. A criadora de conteúdo comenta ainda sobre sua participação no antigo perfil das Sereias da Base, como são chamadas as jogadoras da base do time santista. 

“Há um tempo, eu tive a oportunidade de administrar o perfil das Sereias da Base, produzindo alguns conteúdos para dar visibilidade para a base das meninas jogadoras. Hoje, o Santos decidiu juntar todas as categorias em um perfil só, o Sereias da Vila, então eu sigo somente como telespectadora, mas continuo acompanhando e engajando todas as publicações do perfil. Sigo no meu projeto de dar visibilidade para as Sereias e para o futebol feminino”.

*Todas as imagens desta reportagem foram retiradas do perfil do Instagram da Staff Images Woman, uma agência formada somente por fotógrafas mulheres. 

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