Problemas como adultização precoce e hiperssexualização dos corpos de mulheres são endossados por uma apropriação comercial e capitalista do movimento feminista, disfarçada de discurso empoderador

Por Luiza Martins

Em março de 2023, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, o Google divulgou uma pesquisa  sobre o crescimento das buscas pelo termo “feminismo” e palavras-chave relacionadas: em um período de dez anos, houve um aumento de  120% em território nacional. Na Europa, algumas pesquisas também apontaram alguns dos impactos da temática. De acordo com um levantamento feito pela britânica YouGov e divulgado pela BBC, no mesmo período, o percentual de homens e mulheres europeus que se dizem feministas aumentou em média 8%. 

Tamanha popularidade recente, entretanto, vem sendo capitalizada por interesses financeiros. Olhando a partir de uma perspectiva geral, como um movimento que defende a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, o feminismo é, evidentemente, um aliado importante na luta contra o sexismo e a opressão do patriarcado. Não à toa, pautas como o direito ao aborto e a equidade salarial, diretamente ligadas ao movimento, vêm tendo cada vez mais destaque em mesas de discussão e sendo alvo de ações políticas. Recentemente, o Governo Federal sancionou uma lei para garantir que homens e mulheres tenham salários iguais quando desempenham as mesmas funções. 

Contudo, há o outro lado da moeda. A popularidade recente do feminismo no mundo inteiro também fez com que outro sistema de opressão começasse a se aproveitar dele: o capitalismo – que também é patriarcal, vale destacar. E esse “feminismo mainstream e sem recortes” se estende desde a venda de camisetas com frases aparentemente empoderadoras até questões ainda mais sérias, como o apoio à adultização precoce, à construção de relações conturbadas com o próprio corpo e à hiperssexualização de jovens meninas. 

É bem verdade que os problemas relacionados aos corpos nas infâncias das mulheres – e aqui, me refiro às pessoas que foram socializadas dessa forma – já existiam muito antes do feminismo ser discutido da forma com que é hoje. Afinal, séculos atrás, crianças do sexo feminino já eram oferecidas em casamentos arranjados, dentre outras situações igualmente problemáticas. Mas o que vale destacar aqui é que, hoje em dia, as formas de exploração do corpo de jovens mulheres ainda existem e são até incentivadas pela mídia, redes sociais e por ideias de empoderamento feminino distorcidas. 

Uma das formas mais comuns desse processo é a adultização de corpos de crianças e adolescentes, que são cada vez mais estimuladas a se comportarem e aparentarem ser mulheres mais velhas. Esse processo pode ter um início “menos problemático”, como em situações onde a família cobra por “namoradinhos” para meninas bem jovens. Mas com o tempo, ele se estende para pressões sociais, midiáticas e até mesmo comerciais que, além de serem extremamente nocivas para o desenvolvimento dessas meninas, podem até mesmo afetar a relação que elas desenvolvem com seus corpos.

Em entrevista para O Casarão, a psicológica e militante feminista Isabela Prudêncio, que atua coletivo Nós por Nós, explicou mais como esse processo afeta o crescimento das jovens meninas. Segundo ela, existem diversas fases do desenvolvimento infantil e, para que a criança se desenvolva sem traumas e consiga desenvolver suas capacidades psicomotoras, é preciso que todas elas estejam em perfeita harmonia. Isabela contou que a adultização precoce criaum impasse para isso. “Se desde a infância há uma adultização da criança, são passados gostos pra ela, desejos que não são dela, ela vai levar isso pro resto da vida”. 

Isabela contou, ainda, que é normal que a criança queira imitar os pais – afinal, elas observam os adultos, os entende como inspiração, os encara como pessoas muito fortes e essa perspectiva a incentiva a se moldar para ser daquele jeito. O problema surge quando a sociedade e a mídia entram nesse processo e passam a sexualizar o corpo das meninas desde essa idade. Não demoram a surgir comentários sobre o desenvolvimento do corpo da menina, sobre o que ela deve vestir e até mesmo com quem ela deve casar, o que é extremamente nocivo. Esse tipo de mentalidade é visto até mesmo em pesquisas sobre o percentual de assédios sofridos pelas mulheres. Segundo DataFolha, as jovens até 24 anos são as que mais sofrem com assédio sexual. Nessa faixa etária, 56% das entrevistadas pela pesquisa do portal dizem já ter passado por essa situação. 

Outra psicóloga que falou com O Casarão sobre o assunto foi Alice Werneck, que é escritora independente e também atua no Coletivo Nós Por Nós. Em entrevista, ela explicou que esse processo mexe com a autoestima e a segurança em muitas camadas – afetando-as não apenas enquanto são meninas, mas também quando se tornam mulheres. Alice disse que, quando socializadas de forma adultizada, fica mais difícil até mesmo conseguir diferenciar um abuso de um toque de afeto, além de aceitar processos naturais do corpo, como o envelhecimento. Sobre os efeitos desse processo em mulheres adultas, a psicóloga ainda contou que “como a sexualização dessas meninas é permitida socialmente, também compete às mulheres que se portem como essas meninas. E elas são meninas, num ponto de vista da própria estrutura de pedofilia que há no Brasil e no mundo.”

Além do comportamento social, há outro fator muito responsável por esse tipo de problema: a mídia, que é abertamente capitalista e patriarcal. De acordo com Isabela, a relação entre a abordagem adultizada dos corpos infantis como vemos hoje teve início quando o capitalismo entendeu que não poderia explorar as crianças nas fábricas e que, por isso, precisava encontrar outra maneira de fazer com que elas gerassem lucro. A solução encontrada foi transformá-las em público alvo, incentivando comportamentos adultizados, principalmente nas meninas, de forma precoce. É nesse ponto que entram maquiagens, roupas, brincos, além de diversos outros tipos de produtos que colaboram para esse fim. Também vale ressaltar os produtos que reiteram papéis de gênero, como brinquedos de panelinha e casinha, muito utilizados no adestramento social dessas meninas: “A mídia corrobora tudo isso porque é objeto de lucro”, comentou a psicóloga. 

Sobre a exposição do corpo, feminismo e capitalismo

Muitas jovens mulheres são encorajadas a postar fotos de seus corpos em redes sociais acreditando que isso é empoderador. Foto: Divulgação/FreePik

“Meu corpo, minhas regras”. Uma frase muito comum associada ao feminismo que visa, sobretudo, contrariar ideias conservadoras que, até então, orientavam o comportamento das mulheres em determinadas sociedades. Ser tratada como propriedade do marido, não poder usar determinadas roupas, não ter uma carreira para si e ser “domesticada” para se tornar uma cuidadora no futuro são algumas das ideias trazidas pelo conservadorismo judaico-cristão. Nem tudo são flores, no entanto. Isso porque, uma vez apropriado pela mídia e pelo capitalismo, o lema feminista também se tornou, ainda que indiretamente, uma forma de servir aos interesses do patriarcado. Se as mulheres, hoje, são incentivadas a mostrar seus corpos, usar menos roupas e a exercer liberdade sexual, isso também perpassa pelo interesse dos homens – mesmo que, nem sempre, elas consigam perceber isso. Em entrevista, Isabela comentou que, muitas vezes, esse feminismo liberal e de alta visão social, acaba comprometendo toda a luta. Primeiro porque ele não trata todas as mulheres da mesma forma – incluindo recortes de raça e classe social – e segundo porque ele distorce diversas perspectivas para servir a outros interesses. Para a psicóloga, “a ideia de ‘meu corpo, minhas regras’, serve para a questão do aborto e não necessariamente para mostrar o corpo nu por aí”.  

Um dado curioso sobre esse assunto é que, de acordo com uma pesquisa DataFolha de 2019, o percentual de homens que acreditam que o feminismo é benéfico para mulheres é maior do que o de mulheres em si. A pesquisa, que foi publicada pela Folha de São Paulo, diz que, para 48% dos homens, o feminismo traz mais benefícios do que prejudica as mulheres, enquanto para 41%, o contrário acontece. Já entre as mulheres, há um empate de 43% para cada uma das perspectivas. 

Para a advogada Suellen Machado, que se considera uma estudiosa do tema e militante feminista, a bandeira foi distorcida para servir a interesses masculinos de forma velada e, por isso, acaba levando as mulheres a uma falsa sensação de livre expressão sexual. Um exemplo claro desse processo, para ela, é a irmã mais nova, Camila, de 23 anos. A jovem, que tem uma página no Instagram onde posta fotos sensuais, se sente empoderada pela liberdade e pelo feedback que recebe de seus seguidores. A advogada, no entanto, enxerga a partir de outra perspectiva: “ela e muitas garotas e mulheres também acabam acreditando que aquilo é algo revolucionário; que estão quebrando as regras e expectativas da sociedade, que é muito conservadora. Mas a verdade é que estão gerando conteúdo para todo tipo de tarado na Internet”. 

Camila, por outro lado, não se deixa abalar pelos apelos da irmã. Em entrevista, ela contou que trabalha criando esse tipo de conteúdo há anos e que hoje, com quase dez mil seguidores, se sente realizada com a profissão, que já gera monetização. Em sua visão, a politização do discurso da irmã é um exagero – ela apenas tira fotos com roupas e maquiagens que acha bonitas como forma de expressão: “antes mesmo de começar a postar, já recebia feedbacks legais sobre como eu me vestia e tirava fotos. Hoje, eu continuo recebendo e as pessoas me pedem pra fazer mais vídeos,  fotos e quando eu não faço, elas ficam me cobrando. É bom para a minha autoestima e me ajuda a me manter motivada”. 

Suellen, entretanto, aponta que esses feedbacks vêm, em sua grande maioria, de homens. Ela não enxerga essa popularidade de uma forma positiva e relata se preocupar com a forma como essa audiência masculina recebe o conteúdo. “Eu não sou contra mulheres mostrarem o corpo. Deveria ser algo natural. Mas o problema é a hiperssexualização que os homens enxergam nesse tipo de conteúdo. Se eles conseguem fazer isso com mulheres que amamentam, o que é nojento, imagina com perfis como o dela”. 

Para Priscila Barbosa, idealizadora da Autoestima Diva, uma iniciativa voltada para o desenvolvimento pessoal de meninas e mulheres,  a forma como o movimento é difundido hoje, principalmente na mídia, é passível de críticas. Apesar da alta popularidade, a falta de recorte e a tentativa de tornar o feminismo algo generalizado – e, portanto, mais “vendável” – trouxe problemas, principalmente em relação à ideia da liberdade do corpo feminino. Em entrevista, ela explicou que o movimento busca, sim, colocar as mulheres em pé de igualdade com os homens, mas é preciso ter pensamento crítico para não acabar caindo nas “artimanhas patriarcais”. Para ela, “o feminismo não é só uma liberdade deliberada. Não sem pensamento crítico; sem perceber as nuances dos espaços. Eu acho que não é feminismo quando a gente não coloca a segurança como primeiro ponto. Então se o meu feminismo não estiver atrelado ao seu, não estiver atrelado à segurança antes de tudo, pode, sim, influenciar de uma maneira equivocada”.

Se antes, a mídia assumia o papel de juiz para a vida de uma mulher a partir de uma perspectiva conservadora, hoje, a mesma mídia utiliza da coragem de mulheres que enfrentam o patriarcado para vender ideias supostamente empoderadoras. Ideias que vêm estampadas em camisetas e são vestidas para corpos que não ainda sabem como são afetados por esse sistema. Alice explica que a narrativa midiática leva essas mulheres a querer romper com o conservadorismo, mas que elas acabam sendo incentivadas a fazer isso exibindo os seus corpos. Ela avalia que  a sensualidade e a e a própria hipersexualização são vendidas como um grito de liberdade contra tudo o que as mulheres passam em relação a podar os corpos. Então o machismo, como é bem articulado, coloca a própria nudez, a sensualidade e a hipersexualização como liberdade; uma autonomia do corpo da mulher. “Isso acontece na vida, nas redes sociais, em todos os lugares. Mas, na verdade, meninas e mulheres estão mais uma vez a serviço dessa estrutura patriarcal, que é de posse e de controle dos nossos corpos como se fossem patrimônios públicos”, concluiu a psicóloga. 

Fontes e dados:

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/feminismo-e-mais-bem-avaliado-entre-homens-que-entre-mulheres-diz-datafolha.shtml
https://www.hojeemdia.com.br/especial/nem-de-brincadeira-campanha-crianca-n-o-namora-alerta-para-os-riscos-da-erotizac-o-infantil-1.459605
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/02/adultizacao-infantil.htm
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/feminismo-e-mais-bem-avaliado-entre-homens-que-entre-mulheres-diz-datafolha.shtml
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47283014
https://jornal.usp.br/atualidades/feminismo-cresce-na-america-latina-e-no-brasil/
https://www.otempo.com.br/interessa/google-revela-que-pesquisa-por-feminismo-cresceu-120-em-10-anos-veja-as-buscas-1.2824913

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