À beira-mar, o saber tradicional se mistura à pesca para subsistência e para o comércio local

Por Francielly Barbosa

O som das ondas do mar quebrando na costa cada vez mais alto anuncia a chegada. Escondida ao lado do Caminho Niemeyer, um conjunto de espaços culturais projetados pelo arquiteto carioca Oscar Niemeyer, próximo ao Terminal Rodoviário Presidente João Goulart, a Vila de Pescadores da Praia Grande se revela como um segredo preservado por gerações de pescadores ao fim de uma rua úmida e mal iluminada mesmo durante o dia. Por conta das moradias simples empilhadas ao lado e em cima das outras e das árvores altas, os raios de sol têm dificuldade de chegar até a superfície. Na Rua da Lama, como ainda é conhecida a Travessa Praia Grande, 12, no Centro de Niterói, apesar de já ter sido asfaltada, o odor da água salgada se mistura aos sons da vida cotidiana que desemboca no pequeno cais ao fim do caminho, onde pequenas embarcações, algumas a motor, outras a remo, aguardam pacientemente para passar horas — que podem se tornar dias ou semanas — navegando pela Baía de Guanabara.

Próximo ao cais da Praia Grande, moradias que foram erguidas ao longo dos anos pelos moradores e formam hoje a comunidade de pescadores artesanais / Créditos: Francielly Barbosa

No Brasil, há 900 mil pescadores artesanais licenciados, em sua maioria reunidos em comunidades tradicionais, com mão de obra familiar e utilizando para o ofício embarcações pequenas ou nenhuma embarcação, no caso da captura de espécies aquáticas próximas à superfície, como os mexilhões. Na vila, enquanto os barcos repousam, ancorados na areia para reparos ou amarrados ao cais com cordas não mais espessas que um dedo, a comunidade respira tradição acumulada há décadas, palpável na voz de quem conta a história do lugar. 

Jayme Júnior, 42, é um dos muitos pescadores artesanais que integra a Associação dos Pescadores e Amigos da Praia Grande. Sentado em uma cadeira de plástico vermelha no Bar do Alemão, conta que vive na comunidade desde criança e se apresenta como “pescador local”. “Meu pai foi um dos fundadores. A data está ali em cima da capela. É a data em que foi feita a capela, em 1985, só que aqui é bem mais antigo. Na época, os pescadores estavam aqui, a Prefeitura tirou, deu terreno para todo mundo, mas eles voltaram”. “Por quê?”, pergunta, e ele próprio responde ao dizer que o motivo era “porque ficavam próximos às embarcações”.

Fachada da Capela de São Pedro pintada à mão coberta por fios de energia. Abaixo, é possível ler “Desde 1985 por Walter Barros” / Créditos: Francielly Barbosa

Na comunidade, a história dos seus moradores começa com a história dos seus pais. Júnior, que vive com a mãe, de 73 anos, e uma sobrinha, de 10, conta que o pai veio para o local ainda garoto. “Meu pai começou a viver de praia com 11 anos, era filho de militar. Meu avô era major da Polícia Militar, só que o meu pai sempre foi apaixonado pelo mar. Ele gostou daqui, se apaixonou e ficou”, relembra com um sorriso discreto, orgulhoso. “Graças a Deus ensinou tanto a mim quanto ao meu irmão o ofício. Até hoje vivo de pescaria, sou há 29 anos pescador”. Foi também com o pai que aprendeu que pescador “não é famigerado”, mas que tem seu modo próprio de viver, “às vezes mal arrumado, porque mexe com graxa, com peixe e está sempre em contato com a água”. O jeito é se vestir com roupas antigas e desgastadas para o trabalho: “A gente bota um shortinho simples, sem camisa e uma Havaiana com prego no pé para poder fazer as nossas coisas, mas quando chegamos em casa e tomamos o nosso banho é outra situação”.

Planejada a partir da década de 1990 pelas mesmas mãos que lançam redes ao mar, a arquitetura da comunidade é modesta. O que hoje é a Vila de Pescadores da Praia Grande começou apenas como um ponto de pesca. “Cada ponta de Niterói, Jurujuba, Boa Viagem, Gragoatá, em frente ao Bay Market, Praia Grande, Ponta d’Areia, Ilha da Conceição, Barreto, tem uma associação de pescadores; os pescadores estão sempre lá. Todo pedacinho de areia tem pescadores”, explica Júnior. Aos poucos, aqueles que desde meados da década de 1960 vinham pela manhã para navegar pela baía passaram a tornar o lugar seu endereço fixo, assim foi erguido o local que existe atualmente.

Pequenas embarcações ancoradas na faixa de terra da Praia Grande para consertos / Créditos: Francielly Barbosa

Como explica o mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Ismaël Stevenson, a comunidade surge no momento de aterramento da Praia Grande para a criação do Terminal Rodoviário, do Caminho Niemeyer e do Mercado de Peixes São Pedro, que recebe todo pescado que “encosta” na praia. “Pouco a pouco, os pescadores foram fazendo casinhas ali e se estabelecendo no local, o que virou mais ou menos uma favela. Falam que é uma favelinha, que é perigoso, mas não tem nada disso, são só pescadores. É uma comunidade que fica atrás de vários empreendimentos urbanísticos, atrás do Caminho Niemeyer e do Mercado São Pedro”, afirma. 

Um pescador realiza reparos em um barco a motor sobre a praia / Créditos: Francielly Barbosa

Da praça, é possível observar quatro pontos principais: a praia, com os moradores reunidos conversando ou fazendo reparos nas embarcações; o cais, onde pescadores se preparam para partir para o mar; a Capela de São Pedro, interditada desde 2022 em razão de uma reforma mal conduzida, e o Bar do Alemão. Apoiado em um canteiro ao lado do muro que limita a entrada da vila, Robson Barbosa Pucente, 50, também pescador artesanal e morador da comunidade há de 30 anos, explica que o lugar sobrevive majoritariamente da atividade pesqueira. Recentemente, surgiram também dois frigoríficos que compram o pescado e o levam para outros lugares. A comunidade encontra formas de se auto-sustentar desse modo.

Entrada do Bar do Alemão / Créditos: Francielly Barbosa

Os moradores que não estão ligados diretamente à pesca acabam desenvolvendo atividades econômicas indiretamente relacionadas a ela ou para movimentar a economia da comunidade. Como avalia Stevenson, “o pescador vai pescar das 4h até às 11h da manhã, mas depois tem o processo de arrumar os insumos, ou seja, de limpar e vender o peixe, consertar a rede, ver se está tudo certo com o barco para sair no outro dia. Além disso, tem atividades complementares fora da pescaria. Em dias de ressaca, eles arrumam as coisas que podem ou então ajudam um ao outro a fazer algum conserto. Tem toda uma atividade que ocupa o cotidiano, que é o cotidiano de viver. Fora isso, cada um desenvolve suas atividades, tem alguns que vão vender cerveja, outros que vão vender cafezinho, que vão fazer alguns comércios no local para ter um rendimento econômico”. Além disso, a relação com o mar ultrapassa o lazer e se torna um contrato de trabalho; do mar vêm a renda e a alimentação de muitos dos moradores da vila, sejam pescadores que carregam o legado da profissão há gerações ou não.

Um pescador artesanal se aproxima da praia em um pequeno barco a remo / Créditos: Francielly Barbosa

Júnior acende um cigarro para afirmar com certeza indiscutível que o local do pescador é à beira da praia: “O pescador não pode ficar longe demais, pode dar uma residência, uma casa ótima, mas ele não vai se adaptar. O pescador quer ficar à beira do mar para tomar conta do seu ganha pão, que é a embarcação. Tens alguns que falam ‘meu patrão é o mar’, porque é de lá que tiramos o nosso sustento”. O que atrapalha, explica, é quando um pescador vende a sua casa para uma pessoa que não carrega a mesma tradição. “O pescador acaba perdendo seu espaço; quem é envolvido com a pesca se une, quem não é da pesca coloca o pescador de lado”.

A vida tranquila em terra firme, no entanto, desaparece quando os pés descalços são banhados pela água. Além da necessidade de ir cada vez mais longe por conta da presença de plataformas de extração de petróleo na Baía de Guanabara, já que perto delas existem boias que demarcam o quão perto as embarcações podem ir, podendo um pescador ser multado se ultrapassar esse limite e ter o barco fiscalizado, perdendo sua única forma de sustento, há a competição com a pescaria industrial — praticada em larga escala, com grandes embarcações e de modo predatório, pois captura diferentes espécies para repassar para o mercado apenas aquelas de grande valor comercial —, o que diminui a quantidade de peixes, e o clima, principal desafio enfrentado pelos pescadores. “A chuva atrapalha”, explica Júnior, “mas o mar só se agita quando tem vento”. Com a ventania, torna-se perigoso traçar o caminho até os pesqueiros (locais de pesca); as ondas aumentam, podendo levar a embarcação a naufragar. “Já quase morri no mar umas sete vezes, a mais recente foi há dois meses, por causa do vento”, conta. Luís Carlos Santana, o “Pargueira”, também aprendeu com o pai a viver do mar e reforça que “com vento ninguém pesca”: “Agora vem a época disso. No verão tem época que quebra tudo por aí, dá uma ventania, arranca telhado, leva tudo, carrega o barco”.

Luís Carlos Santana, conhecido como “Pargueira”, em seu barco se preparando para partir em direção ao mar / Créditos: Francielly Barbosa

O trabalho com a pesca, muitas vezes, é uma questão de sorte e azar. Pescar é um aprendizado que não é adquirido na escola, geralmente se passa de pai para filho ou é ensinado por um irmão mais velho que, pouco a pouco, transmite a tradição da pesca, até a pessoa se tornar um “mestre” também. “Quando vai pescar, você às vezes ganha e às vezes perde. Tem que ter essa ‘malemolência’ social e cultural para aceitar que em alguns dias a pescaria não vai ser boa, e você vai precisar estar preparado para poder sobreviver nos períodos fracos”, comenta Stevenson. 

Pargueira e outro pescador artesanal conversam com um terceiro, que trabalha em um barco a motor encalhado na praia para conserto / Créditos: Francielly Barbosa

Em razão das dificuldades encontradas para manter o legado, alguns pescadores buscam outras formas de obter seu sustento da Baía de Guanabara. Robson, por exemplo, além da pescaria profissional, utiliza sua embarcação para o turismo, levando pescadores amadores até os pesqueiros. “Há 15 anos, o nosso pior desafio era a natureza, hoje em dia está sendo a falta de opção da pesca e as normas que limitam o pescador”, lamenta. O som de um avião atravessando o céu límpido sobre a vila o  interrompe, ele se levanta do canteiro onde estava apoiado, despreocupado, dá um longo trago no cigarro e continua: “Nós, pescadores, lidamos e lutamos com a natureza 24 horas, sabe quem ganha? A natureza, e o resto só a Deus pertence. Papai do céu abençoa a gente até hoje, mas não sei até quando vamos conseguir lutar com ela. A vida da gente é sempre uma roleta russa, mas fazer o quê? É o nosso ofício e a nossa tradição”.

O barco a vapor utilizado por Robson para a pescaria e para o turismo pesqueiro / Créditos: Francielly Barbosa

De volta ao Bar do Alemão, a risada animada de crianças brincando na praça, em frente à capela com portões fechados, espaço de muitas missas e festas de São Pedro em um passado recente, e por onde uma brecha permite espiar um pouco do interior empoeirado, perde-se no som das ondas carregando a areia da pequena praia. Júnior afirma: “Aqui dentro sempre seguimos o legado que foi passado para a gente”. O pescador explica que o que esperam no momento é a atenção da Prefeitura Municipal de Niterói para realizar reformas na comunidade: “Estamos no aguardo para poder ter uma melhoria tanto na capela quanto no local; um asfalto decente, uma iluminação decente, uma segurança decente”. Com as reformas urbanísticas sendo promovidas no centro da cidade, ele destaca que um receio dos moradores que guardam a Vila de Pescadores da Praia Grande é que o local seja desapropriado para integrar a nova paisagem do município. Com um tom calmo, embalado pela sinfonia do mar logo ao lado, diz: “Eu espero que eles não mexam para tentar tirar a gente daqui”.

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