Seis décadas depois, Brasil ainda não conseguiu virar a página da ditadura

Por Kézya Alexandra

O ano de 2024 marca 60 anos do golpe militar que depôs o presidente democraticamente eleito João Goulart. No dia 1º de abril de 1964, os militares assumiram o controle do país em resposta a uma suposta ameaça comunista. O Brasil, então, viu nascer um de seus momentos mais sombrios assim que o general Humberto Castelo Branco deu início a duas décadas de governos militares.

Naquele ano, e permanecendo até 1985, a Ditadura Militar esteve instaurada no Brasil, sendo marcada por intensa repressão política, violação dos direitos humanos e censura. Não havia limite ético ou moral para coibir os que contestavam o regime. 

O Ato Institucional número 5 (AI-5), decretado no dia 13 de dezembro de 1968, durante o governo do marechal Artur da Costa e Silva, fechou o Congresso Nacional, centralizando assim a autoridade no poder Executivo, instaurou a censura prévia, controlando jornais, revistas, rádio, televisão, teatro e cinema, suspendeu o Habeas Corpus, permitindo prisões arbitrárias sem justificativa ou julgamento justo. Foi o início do período mais autoritário e o ponto de partida para a institucionalização da repressão durante o regime militar.  

Primeira página do AI-5, assinado em 13 de dezembro de 1968. Foto: Arquivo Nacional

Anos de Chumbo: para lembrar que ditadura não se comemora, se repudia

A ditadura não castigou apenas “terroristas”, como eram chamados os estudantes, professores e militantes partidários. O governo cometia crimes contra cidadãos envolvidos ou não em atividades consideradas subversivas, inclusive crianças. Os governantes controlavam os veículos de comunicação, as artes, os sindicatos e as universidades. As prisões arbitrárias e a tortura tornaram-se ferramentas comuns de controle. A Operação Bandeirante (OBAN) e o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foram criados para perseguir, prender e torturar aqueles que se opunham ao regime. 

A lista de crimes cometidos sob anuência do regime é extensa e cruel e envolve, desde prisões, torturas e assassinatos, até o acobertamento de abuso sexual contra crianças. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela ex-presidente Dilma Rousseff, divulgado em 2014, o número total de  mortos e desaparecidos nas duas décadas que perdurou a ditadura é de 434 pessoas. Os documentos revelam que, durante o período, os presos e sequestrados eram submetidos a sessões intermináveis de tortura física e psicológica, incluindo choques elétricos, pau-de-arara (uma barra de metal atravessada entre os punhos e as pernas amarradas da pessoa, deixando ela pendurada para apanhar), afogamentos, espancamentos e abusos sexuais, praticados por mais de 300 agentes de repressão, entre militares, agentes do Estado e até mesmo ex-presidentes da República. A morte de presos sob tortura era frequentemente mascarada como suicídio ou tentativa de fuga. Veja a história de algumas dessas vítimas:

Assassinato do estudante Edson Luís: “Mataram um estudante. Ele podia ser seu filho”

No dia 28 de março de 1968, o estudante Edson Luís Lima Souto, de 18 anos, foi assassinado por policiais militares durante uma manifestação estudantil no restaurante Calabouço, um edifício que abrigava a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) e funcionava como um bandejão que oferecia comida a baixo custo, no centro do Rio de Janeiro, para estudantes e secundaristas. O jovem paraense, que tinha vindo para a cidade tentar uma vida melhor, estudava no Instituto Cooperativa de Ensino, mas não tinha onde morar e dormia no restaurante, que mais tarde seria demolido para construção da ligação da pista do aterro do Flamengo com o aeroporto Santos Dumont, realizada para a chegada da comissão do Fundo Monetário Internacional – FMI. Ele estava defendendo a própria casa, quando, no dia da  invasão policial, foi alvejado no peito, à queima roupa, por Aloísio Raposo, o comandante da tropa. O jovem foi levado às pressas para a Santa Casa de Misericórdia, onde foi constatada sua morte. Após o acontecimento, os colegas do estudante levaram seu corpo até a Assembleia Legislativa e improvisaram um velório. A cerimônia foi assistida por milhares de pessoas e comoveu a cidade do Rio. O caso escancarou a perversidade do regime e as mobilizações, como descritas no Memorial da Democracia, o museu virtual dedicado à memória das lutas pela democracia, produzido pelo Instituto Lula, e no Relatório da CNV, mostravam o crescente repúdio da sociedade à Ditadura Militar.

“O Rio praticamente parou no dia do sepultamento. Os espetáculos de teatro foram suspensos em solidariedade por parte dos artistas. Numa alusão à violência, os letreiros da Cinelândia exibiam os títulos de três filmes: ‘A Noite dos Generais’, ‘À Queima-Roupa’ e ‘Coração de Luto’. Cartazes e pichações continham frases como ‘Os velhos no poder, os jovens no caixão’, ‘Bala mata fome?’ e ‘Abaixo a ditadura”’ – Trecho do Memorial

“No dia 29 de março, 50 mil pessoas acompanharam o funeral de Edson Luiz. O jovem foi sepultado ao som do hino nacional, cantado pela multidão que também entoava um grito de protesto em coro: ‘um estudante foi assassinado, poderia ser seu filho…’” – Trecho do Relatório 

“Aqui está o corpo de um estudante morto pela ditadura.” Corpo de Edson Luís, em 28 de março de 1968. Foto: Reprodução/Memórias da Ditadura

Assassinato do jornalista Vladimir Herzog 

O jornalista e diretor da TV Cultura, Vladimir Herzog, foi preso no dia 24 de outubro de 1975. Encapuzado, amarrado a uma cadeira elétrica e submetido a diferentes formas de tortura, entre espancamentos e choques elétricos, morreu um dia depois, em decorrência da tortura a que foi submetido. O jornalista tinha uma postura política contrária ao regime e sempre questionava a repressão contra a imprensa, voltando sua prática jornalística para a divulgação de notícias que ultrapassavam os limites da censura estabelecidos. Herzog foi convocado pelo DOI-CODI para prestar esclarecimentos sobre sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). E essa foi a última vez que amigos e familiares do jornalista o viram. Sob um som estridente, que abafava o barulho da tortura para que os próximos a serem torturados não ouvissem, Vladimir Herzog entrava para a conta dos assassinatos brutais do regime.

“Podíamos ouvir nitidamente os gritos; primeiro do interrogador e depois de Vladimir e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio. (…) A partir de um determinado momento, a voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido alguma coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça. Mais tarde os ruídos cessaram” – Depoimento de Rodolfo Oswaldo Konder, jornalista que esteve preso no DOI na mesma época, na ação divulgada pela Comissão da Verdade. 

Com medo da repercussão do caso, os  militares forjaram um suícidio, amarrando um cinto em seu pescoço e o pendurando em uma janela.  Após sua morte, oito mil pessoas se reuniram na Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Segundo a revista Veja, essa foi a primeira grande manifestação civil contra a Ditadura depois do AI-5. Hoje, a figura do jornalista representa movimentos na luta por democracia, justiça e liberdade de expressão. Seu legado é preservado por diversas instituições, como o Instituto Vladimir Herzog, que promove atividades de educação, memória e direitos humanos. Sua morte é um lembrete da importância de uma imprensa livre e protegida. 

“Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados” – Vladimir Herzog Foto: Reprodução/Instituto Vladimir Herzog

Caso Araceli

No dia 18 de maio de 1973, o sequestro de uma criança de oito anos denunciava a prova mais cruel de como a ditadura impactou a vida de pessoas inocentes. Araceli Cabrera Sanchez Crespo, de oito anos, teve sua vida abruptamente tomada entre os dias 18 e 24 de maio, em Vitória, capital do Espírito Santo. A pedido da mãe, a menina saiu mais cedo da escola para pegar o ônibus que utilizava todos os dias. Acontece que Araceli nunca entrou naquele ônibus. Uma testemunha a viu brincando na rua perto de um bar e, depois, ninguém nunca mais soube dela. Mais tarde, seu corpo foi encontrado desconfigurado por ácido, com sinais de abuso sexual e marcas de mordidas. Três suspeitos foram identificados: Paulo Constanteen Helal, de 27 anos, Dante Barros Michelini, 53, e Dante Filho, 23, conhecido como “Dantinho”. Todos os suspeitos eram membros de famílias tradicionais do Espírito Santo e usaram de sua influência para que as investigações não fossem adiante. O governo contribuiu para queimar os arquivos do crime. A impunidade do assassinato da criança levou o Estado Brasileiro a ser denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização Estados Americanos (OEA) pelo O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). A justificativa do MNDH estabelece a relação entre o caso e a ditadura. 

“Pelas condições sociais e econômicas da família de Araceli Cabrera Crespo, evidenciou-se a impossibilidade de esgotamento formal e qualificado com os recursos cabíveis e pertinentes das instâncias do Sistema de Justiça no Brasil”. “Soma-se a isso o fato de que, a época dos fatos, o Estado brasileiro era uma ditadura civil-militar que fora notoriamente baseada em apoio e tráfico de influência com certas camadas da sociedade brasileira, como famílias economicamente influentes e o empresariado, razão pela qual, a ditadura brasileira deve ser considerada como uma ditadura civil-militar” – Trecho do texto da denúncia.

Até hoje, o caso não teve uma solução e os assassinos seguem impunes. O assassinato de Araceli fez com que o Congresso Nacional instituísse o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes em 2000. 

Araceli Cabrera Crespo, garota brutalmente assassinada há 51 anos – Arquivo pessoal Foto: reprodução/arquivo pessoal

Por que o Brasil ainda flerta com a ditadura?

Mas se as marcas da ditadura são tão cruéis, o que leva alguns brasileiros a apoiarem a volta do regime militar? Uma pesquisa do Datafolha, realizada em junho de 2020, mostra que 22% dos brasileiros são favoráveis à volta da ditadura ou não se importam com o fim da democracia.  Esse é o número mais alto desde 1989, quando a pergunta começou a ser feita. O professor de jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro “Sob o império do arbítrio: Prêmio Esso, imprensa e ditadura”, Márcio Castilho, acredita que a memória histórica é essencial para entender esse fenômeno. Ele cita a frase do filósofo Edmund Burke que diz “um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la” e a lição não poderia ser mais evidente e precisa. “Essa frase é particularmente válida sobretudo para países que passaram por governos ditatoriais, como o Brasil. Isso porque examinar o passado não é circunscrevê-lo numa época histórica específica, mas pensar esse passado a partir das preocupações do presente, portanto, dos fenômenos que são próprios da sociedade em que estamos inseridos. A memória cumpre esse papel: revisita o passado para entender a complexidade do presente. Mais do que isso, como destaca a historiadora da UFMG Heloísa Starling, ‘precisamos saber o brasileiro que nós fomos para a gente pensar o brasileiro que a gente quer ser’”, diz o professor. 

A falta de conhecimento e de preservação da memória histórica leva à relativização das ações do período e faz permanecer a ideia de que foram anos de glória com a economia crescendo. A ascensão de políticos que colocam em dúvida mecanismos democráticos com seus projetos políticos extremistas produz uma  descrença nas instituições e a criminalização da política. O caso do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, ilustra esse tipo de projeto: antes mesmo de ser candidato, em 2016, no julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, justificou seu voto a favor “em memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, responsável por torturar inúmeros militantes de esquerda, entre os quais a própria Dilma. Castilho aponta, ainda, que a desinformação na era digital também influencia o fenômeno. “Na contemporaneidade, outras variáveis devem ser levadas em consideração, como o próprio ambiente de desinformação, especialmente em períodos eleitorais, nas redes sociais e nos aplicativos de mensagem. Muitos conteúdos produzidos na rede contribuem deliberadamente para contaminar o debate sobre a ditadura e fortalecer a ideia, contida na pergunta, de que ‘a ditadura nem foi tão ruim assim’”.  

Apoiadores de Bolsonaro pedindo intervenção militar após derrota do candidato nas eleições. Foto: Reprodução/Poder 360

O último país a condenar os crimes da ditadura

Esse tipo de exaltação nostálgica tem ganhado cada vez mais adeptos, fragilizando a democracia e, por isso, sua disseminação deve ser combatida. Para tanto, é preciso preservar e honrar a memória daqueles que foram resistência, como Edson Luiz e Vladimir Herzog, como pontua a historiadora e professora do departamento de Sociologia da UFF, Joana D’arc Fernandes Ferraz. “Bem, você tem a memória do vencedor, a memória dos militares e do empresariado, que é bem preservada, que tá aí nas ruas, não tem uma uma cidadezinha no Brasil que não tem o nome de uma rua com o nome de militar desses da ditadura que implantaram, que fizeram um golpe. Mas existe uma outra memória, que é a memória dos vencidos, né? A memória dos que perderam para esse sistema opressor. É fundamental que essa memória seja colocada na sociedade”, ressalta Joana. 

Além disso, a construção dessa memória deve ser feita em torno da verdade, desconstruindo narrativas falsas como a própria justificativa do golpe, de uma “ameaça comunista” e trazendo à tona as faces mais cruéis do regime que tentaram apagar. Nesse sentido, o Relatório da Comissão da Verdade se destaca como essencial ao trazer a público dados e acontecimentos que, a partir de 2014, passaram a ter caráter oficial. 

Castilho lembra ainda que, devido à Lei da Anistia, não houve punição aos autores dos crimes durante todos esses anos. “À exceção do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do Doi-CODI de São Paulo, no início dos anos 1970, torturadores e seus mandantes não foram julgados por violação de direitos humanos, ao contrário de outros países que vivenciaram o trauma das violências políticas na América do Sul. Os desaparecimentos forçados por motivação política são crimes imprescritíveis e até hoje não sabemos onde estão os corpos de muitas vítimas assassinadas pela ditadura. A impunidade e o esquecimento funcionam como estímulo aos crimes cometidos pelo Estado na chamada Nova República. A máquina repressiva não foi desmontada por completo e continua a produzir vítimas, que têm endereço, cor e classe social no Brasil do século XXI”, pontua o professor. 

A historiadora Joana também acredita que o Brasil não fez o suficiente na reparação e justiça das vítimas da ditadura. “O mínimo que deveria ter feito não fez. O que seria o mínimo? O mínimo é abertura dos arquivos, o mínimo é uma releitura da Lei de Anistia”, enfatiza a professora. A especialista também aponta a necessidade de revisitar esse passado de maneira crítica, através de “atividades, eventos, cinemas, enfim, exposições, por meio de editais, que as escolas passem a incorporar no currículo escolar uma leitura crítica sobre esse período, que se retire ou que se sinalize nas ruas com os nomes dos militares, por exemplo, Rua Presidente Médici, que ali embaixo daquela placa se diga quem foi ele ou então que se retire o nome dele e coloque o nome de alguém que foi esquecido, que foi negligenciado dessa história. Nesse sentido, o Brasil é o país mais atrasado da América Latina em relação à política de reparação, não fez o suficiente mesmo e está longe de fazer”.

Cerimônia de instalação da Comissão Nacional da Verdade. Foto: Reprodução/Acervo O Globo

Iluminar o passado sombrio é fundamental para a construção de um futuro mais justo e democrático para o Brasil. Os 60 anos da ditadura são uma data para reivindicação da memória, da verdade e da justiça. Conhecer e entender o passado ditatorial é vital para garantir que as atrocidades do passado não se repitam. A memória histórica educa, alerta, homenageia, previne e constrói. Sem ela, as feridas do regime continuam abertas e sangrando. Ditadura nunca mais!

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