Por Ana Clara Nascimento e Lívia Mendes
O uso excessivo de telas na infância pode trazer riscos sérios à saúde e ao desenvolvimento das crianças. Desde 2019, a Organização Mundial da Saúde recomenda que crianças com menos de 5 anos passem no máximo uma hora por dia em frente às telas, e que bebês com menos de um ano sejam completamente poupados dessa exposição. A Sociedade Brasileira de Pediatria alerta que o uso excessivo de dispositivos não só pode levar à dependência digital, como também está associado a problemas como ansiedade, depressão e a exposição precoce a conteúdos inadequados, como os de teor sexual.
Durante o período de quarentena na pandemia da Covid-19, as telas serviram como refúgio e distração para muitas pessoas, incluindo crianças. De acordo com um estudo divulgado pela SuperAwesome, empresa americana de tecnologia em mídia digital, crianças entre 6 e 12 anos passaram cerca de 50% do seu tempo de quarentena em frente a telas. Essa realidade trouxe à tona discussões sobre o impacto das telas no desenvolvimento infantil, tanto em termos de aprendizado quanto de socialização.
A psicóloga infantil Carolina Duran alerta que o uso excessivo de telas pode impactar negativamente o desenvolvimento cerebral das crianças: “Pode causar irritabilidade, afetar a atenção e a concentração, prejudicando até mesmo a memória. Em casos mais graves, pode causar atrasos nas habilidades de linguagem.” O estudo “Como a experiência digital precoce molda os cérebros dos jovens de 0 a 12 anos: uma revisão do âmbito”, realizado pela Universidade de Hong Kong, confirma esses riscos, apontando que a exposição crônica às telas durante a infância prejudica a formação e reorganização das redes neurais no cérebro.
A exposição precoce a conteúdos inadequados e o uso excessivo de redes sociais não afetam apenas o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, mas também seu desempenho e relacionamento no ambiente escolar. Segundo a professora de inglês da rede municipal do Rio de Janeiro, Vanessa Tartaglia, a influência das telas tem sido visível na sala de aula. “O rendimento dos alunos caiu porque muitos deles ficam jogando até altas horas da noite sem supervisão dos pais. Isso resulta em sono inadequado, o que se reflete em raciocínio mais lento e maior sonolência durante as aulas”, explica a professora.
Além dos problemas de rendimento, a linguagem e o comportamento dos alunos também foram impactados. “Observamos uma mudança na forma como os alunos se expressam. Eles passaram a incorporar termos e gírias dos videogames em sua comunicação, o que pode interferir na expressão escrita e falada”, destaca Tartaglia. A falta de supervisão adequada por parte dos responsáveis contribui para esses problemas, pois os comportamentos associados ao uso excessivo das telas afetam o ambiente escolar, comprometendo não apenas o aprendizado, mas também as interações sociais das crianças.
O desequilíbrio entre o tempo gasto em dispositivos eletrônicos e as interações cotidianas pode levar a uma desconexão emocional. As crianças podem ter dificuldade em entender e interpretar as emoções dos outros, resultando em relações superficiais e falta de profundidade nos vínculos. A psicóloga Carolina Duran alerta que “é crucial que os pais incentivem atividades que promovam o contato social direto, como brincadeiras ao ar livre, esportes em grupo e tempo de qualidade com a família, para equilibrar os efeitos das telas e promover um desenvolvimento saudável”.
Em março deste ano, a Secom designou os integrantes do grupo de trabalho que irá elaborar um Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais para crianças e adolescentes. O grupo será composto por sete ministérios e 19 representantes da sociedade acadêmica, civil e entidades reconhecidas no estudo do tema. O objetivo do GT será produzir recomendações e orientações sobre o uso de telas e dispositivos digitais de forma adequada à idade.
Diferentes pontos de vista
Rayane Castro, mãe de três meninas — Rafaela, de 11 anos; Manuela, de 4; e Antonella, de 1 ano — compartilha sua experiência sobre como é criar suas filhas sem a presença de telas no dia a dia.
Na parte da manhã, nos reunimos para tomar café da manhã e fazer o devocional, na parte da tarde, a mais velha entra no estudo domiciliar e as mais novas ficam no seu tempo livre. É importante substituir as telas por alguma coisa, e a gente substitui por leitura”, disse Rayane.
Segundo Rayane, suas filhas mais novas não sentem tanto a falta das telas, mas para Rafa, que já estava habituada com elas no seu cotidiano, a adaptação tem sido um grande desafio.
A mãe explica que, quando Rafa era mais nova, ela trabalhava fora e acumulava outros afazeres para o final de semana. “A tela é atrativa, então dá para poder deixar a criança na frente da TV e fazer alguma coisa. Mas foi aí que eu percebi o quanto eu estava avacalhando a vida da Rafa, porque eu comecei a notar certas mudanças de comportamento”, revelou Rayane.
Rayane conta que sua filha, mesmo sem ter celular, começou a ter acesso a outros conteúdos através dos celulares dos amigos da escola, e a partir disso ela começou a ver na menina um comportamento muito adultizado.
Rafa era a única criança da sua turma que não tinha um celular e questionava o motivo para sua mãe. “Sempre que ela me pedia um celular, eu negava e dizia que eu fazia isso porque eu amava ela e estava a protegendo. Até que um dia ela chegou da escola muito triste e chorando e me perguntou se eu era a única mãe que amava o filho, pois ela era a única da sala que não tinha celular”.
Rayane explica que a tela foi um dos principais motivos para ter tirado a Rafa do ensino comum e iniciar o homeschooling. A mãe explica que sempre flertou com a educação domiciliar. “Eu não simplesmente tirei ela daquele ambiente e trouxe ela para cá, eu mostrei para ela uma realidade possível de viver longe disso (telas)”, destacou.
Sabrina Loureiro, assessora parlamentar e mãe do Victor, de 3 anos, possui uma outra visão sobre as telas.
“Eu entendo tudo que falam sobre malefícios da tela, mas hoje, o que sinto de influência é que meu filho aprende muito. Outro dia ele pegou um macarrão de piscina, fez o formato de um ímã e falou ‘É magnético’. Onde ele aprendeu isso? Eu nunca falei isso para ele, tenho certeza que foi na internet”.
A assessora relata já ter percebido a fácil reprodução do filho referente a conteúdos que consumiu no YouTube. “Uma vez, ele estava vendo uma tal de Maria Clara e JP, que são dois irmãos, e a menina fazia umas birras e eu vi que ele estava reproduzindo o que ela estava fazendo. Então, tem que ter muito cuidado com os conteúdos”, contou.
Sabrina também explica que não oferece a tela deliberadamente, mas que muitas vezes, os aparelhos acabam servindo como recurso de ajuda.
“Pensa comigo, você é mãe, sua criança está doente e não quer comer nada porque está sentindo isso ou aquilo, mas você liga a tela, ela come tudo. Então, eu acho que não pode virar um hábito, mas às vezes é um recurso, sabe? A gente não pode ser tanto ao céu quanto ao inferno”.
Ao ser questionada sobre como vê os malefícios acerca do uso das telas, a mãe de Victor afirmou achar tudo muito novo para ter uma opinião concreta e que hoje não enxerga atrasos ou malefícios causados pela tela no seu filho. “Eu acho que isso é muito novo, então eu acredito que possa ter malefícios sim, mas eu não sei se tem comprovação científica o suficiente para isso”, disse.
Ela afirmou também que sua cautela é mais no sentido do tipo de conteúdo que seu filho consome e declara optar sempre por jogos educativos, que ajudam no desenvolvimento cognitivo.
Muitos pais podem divergir sobre o que é melhor para o seu filho e sua criação, mas o fato é que o uso excessivo de telas pelas crianças vem preocupando diversos especialistas da área. Além de iniciativas do governo, campanhas de conscientização também estão sendo desenvolvidas, como o movimento “Infância Livre de Telas”, que visa promover o uso consciente dos dispositivos eletrônicos e levar a reflexão para os responsáveis e educadores.