Por Matheus Lins

Ana Cristina Braga, presidente da Associação Brasileira de Narcolepsia e Hipersonia, sabe que a saúde vai além de políticas públicas: é uma questão de vida e dignidade. Diagnosticada com narcolepsia aos 30 anos, ela enfrentou os desafios da doença e o preconceito de um sistema de saúde que muitas vezes não entende a realidade dos pacientes com doenças raras. Para ela, a judicialização de medicamentos, a única alternativa para muitos, não é um problema financeiro, mas uma questão de sobrevivência.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal impôs critérios rigorosos para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, buscando equilibrar os recursos públicos e o acesso à saúde. Esses critérios exigem comprovação de que o medicamento é indispensável e não tem substituto no SUS, além de evidências científicas sobre sua eficácia. Embora a medida tenha a intenção de proteger o SUS, pacientes como Ana criticam a falta de sensibilidade com as necessidades reais dos portadores de doenças raras.

Apesar de avanços na inclusão de novas tecnologias no SUS, como 15 tratamentos para doenças raras em 2024, muitos pacientes ainda dependem da judicialização. A decisão do STF, embora bem-intencionada, expõe o dilema entre eficiência econômica e justiça social, deixando de considerar a urgência e a humanidade por trás de cada caso. Ana defende um sistema de saúde mais inclusivo, que envolva pacientes, médicos e gestores, para garantir que a saúde seja tratada como uma questão de vida, e não apenas técnica.

A judicialização da saúde e medicamentos no Brasil: entre direitos e sustentabilidade

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a judicialização de medicamentos representa um marco na relação entre direito à saúde e sustentabilidade do Sistema Único de Saúde. O STF determinou novos critérios para concessões judiciais, estabelecendo parâmetros mais rígidos que, segundo o Ministério da Saúde, visam conter os impactos financeiros dessa prática.

Estima-se que, no Brasil, cerca de 15 milhões de pessoas convivam com doenças raras, sendo que a judicialização, muitas vezes, é a única alternativa para obter tratamentos de alto custo que não constam nas listas oficiais do SUS. Apesar das justificativas técnicas e financeiras, as mudanças suscitam debates intensos, especialmente entre pacientes e associações que enfrentam essas dificuldades cotidianamente.

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Judicialização e o impacto no SUS em 2024

Em 2024, a judicialização da saúde no Brasil tem gerado um volume expressivo de novas ações judiciais, especialmente no que se refere ao fornecimento de medicamentos de alto custo. Estima-se que, ao longo do ano, aproximadamente 61 mil novas ações judiciais por mês tenham sido registradas, resultando em cerca de 732 mil processos no total. Esses números refletem a contínua pressão sobre os recursos públicos, com muitos desses medicamentos não sendo incorporados ao Sistema Único de Saúde, o que compromete a alocação de verba para políticas públicas mais amplas.

Segundo dados do Ministério da Saúde, os medicamentos de alto custo, frequentemente com benefícios clínicos não comprovados, têm gerado um impacto significativo no orçamento da saúde pública. A judicialização, embora assegure direitos individuais, coloca em risco a sustentabilidade financeira do SUS, forçando o direcionamento de recursos para tratamentos que, em muitos casos, não têm sua eficácia comprovada de forma robusta.

A decisão do Supremo Tribunal Federal de 2024 busca equilibrar a proteção dos direitos dos pacientes com a viabilidade financeira do sistema de saúde. Para tanto, foram estabelecidos novos critérios rigorosos para a concessão judicial de medicamentos, como:

  1. Negativa Administrativa: O medicamento deve ser previamente negado pelo órgão público responsável, como o SUS.
  2. Comprovação Científica: É essencial apresentar evidências científicas robustas que comprovem a eficácia e a segurança do medicamento solicitado.
  3. Ausência de Substituto: O medicamento não pode ter alternativas terapêuticas disponíveis no SUS.
  4. Incapacidade Financeira: O paciente deve demonstrar que não tem condições financeiras de arcar com o custo do medicamento.

Esses critérios visam garantir que o sistema público de saúde seja utilizado de forma mais eficiente, atendendo as necessidades de quem realmente precisa, ao mesmo tempo em que busca manter a sustentabilidade financeira do SUS.

Vozes dos pacientes

Ana Cristina Braga, presidente da Associação Brasileira de Narcolepsia e Hipersonia, tem se posicionado de maneira contundente sobre o impacto da judicialização de medicamentos, especialmente no contexto das doenças raras. Ela destaca a complexidade da questão, afirmando que, embora já fosse difícil acessar tratamentos, as novas exigências do Supremo Tribunal Federal tornaram a situação ainda mais desafiadora. “Antes já era difícil e agora fica pior, pois são critérios quase inalcançáveis com doenças raras. Como uma pessoa que precisa de tratamento vai conseguir esse medicamento se elae não judicializar?”, questionoua Ana, referindo-se aos novos parâmetros que exigem comprovação de que o medicamento não tem substituto no SUS e que sua eficácia seja cientificamente comprovada.

Ana critica os critérios estabelecidos, afirmando que eles ignoram a realidade dos pacientes com doenças raras. “Não existe registro geral de quantas pessoas têm doenças raras, tem a estimativa de 13 milhões no Brasil e no Rio de Janeiro 1 milhão de pessoas. Não dá para fingir que essas pessoas não existem”, declara.

Para Ana, a judicialização não é apenas uma questão de acesso a medicamentos, mas uma questão de sobrevivência. Ela cita sua própria experiência, refletindo sobre o impacto pessoal da doença. “Minha doença veio aos 30, eu dirigia, eu era concursada, a primeira da minha família… E depois do diagnóstico, só virei paciente. Ser chamada de leiga é uma coisa que muito me ofende. Leigo na minha doença, uma coisa que tá comigo o tempo todo e tomei posse”, afirmou, destacando o abismo entre a experiência vivida pelos pacientes e a visão de quem toma decisões de fora.

Por fim, Ana questiona a equidade no acesso à saúde: “Quem tem direito à saúde? Quem tem o remédio muito caro ou quem tem o muito barato que ninguém quer produzir?”. Essa reflexão traz à tona a desigualdade que a judicialização acentua, quando o acesso a medicamentos necessários depende de processos judiciais longos e difíceis, e muitas vezes é restrito a quem tem recursos financeiros ou apoio jurídico para lutar por esses direitos.

Outro exemplo é o caso de Dona Maria do Carmo, 68 anos, que foi informada no posto de saúde de que seu medicamento, o Bosentana, necessário para tratar sua hipertensão arterial pulmonar, não seria fornecido pelo SUS devido a novas regras. Ela precisaria comprovar que o remédio era indispensável e sem alternativas no sistema público. “Eu nem sabia que tinham mudado essas regras. Não vi nada disso no jornal. Só descobri quando cheguei no posto e me disseram que agora precisava provar que o remédio era indispensável e que não existia outra opção no SUS”, explica. Com sua aposentadoria limitada, Dona Maria agora busca reunir a documentação necessária e obter apoio jurídico para garantir o fornecimento do medicamento.

O papel da Conitec na eficiência do sistema

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) desempenha papel essencial na avaliação de tecnologias que podem ser incorporadas ao SUS. Desde 2023, 46 novas tecnologias foram aprovadas, incluindo 15 para doenças raras.

Segundo gestores públicos, as mudanças estabelecidas pelo STF podem fortalecer o papel da Conitec, assegurando que medicamentos incorporados sejam avaliados com base em evidências científicas sólidas. “Esses critérios impedem o sistema de ser capturado por demandas individuais e privilegiam uma abordagem mais ampla, garantindo a sustentabilidade”, afirma um especialista em políticas públicas.

No entanto, a rapidez nas avaliações e o diálogo contínuo com a sociedade são desafios que ainda precisam ser enfrentados.

Desafios e caminhos: O equilíbrio entre direito e gestão eficiente

A decisão do STF reforça a necessidade de diálogo entre gestores públicos, associações e pacientes. Embora os critérios tragam maior organização para o sistema, é essencial que as políticas públicas sejam inclusivas e reflitam as reais necessidades das populações vulneráveis. A criação de linhas de cuidado integral, como as promovidas pela Conitec, é um passo importante, mas especialistas defendem maior celeridade nos processos e mais incentivos à pesquisa. O desafio, portanto, é garantir que o direito à saúde seja preservado sem comprometer a sustentabilidade do SUS.

Números da Judicialização no Brasil em 2024

Em 2024, a judicialização da saúde no Brasil, especialmente no que se refere ao fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde, resultou em uma média de 61 mil novas ações judiciais por mês, totalizando cerca de 732 mil processos ao longo do ano (gov.br).

Critérios da Decisão do STF:

  • Ausência de substituto terapêutico no SUS.
  • Evidências científicas de eficácia e segurança.
  • Comprovação de incapacidade financeira.

Doenças Raras no Brasil

  • Estima-se que 15 milhões de brasileiros vivam com doenças raras (OMS).

Exemplo de Avanços no SUS:

  • 15 tecnologias incorporadas para doenças raras.

Impacto da Conitec (2024)

  • 117 consultas públicas realizadas.
  • 16.038 contribuições analisadas.
  • Em 2024, a Conitec analisou novas tecnologias para o SUS, com destaque para o inotersena, que geraria um custo de R$ 99 milhões no primeiro ano e R$ 559 milhões em cinco anos. A comissão também implementou limiares de custo-efetividade para garantir que os tratamentos incorporados sejam financeiramente viáveis para o sistema público de saúde (gov.br).

À medida que a judicialização de medicamentos continua a impactar a saúde pública no Brasil, o equilíbrio entre o direito à saúde e a sustentabilidade do SUS segue sendo um desafio.

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