O uso da tecnologia por pessoas dessa faixa etária precisa ser observado pelos responsáveis
Por Carol Peres
Uma pesquisa realizada pelo Google em parceria com a Ipsos, empresa francesa de pesquisa de mercado e opinião pública, revelou que 54% dos brasileiros declararam ter usado ferramentas de inteligência artificial generativas em 2024. Esse número superou a média global, que é de 48%, e evidencia a forte presença da tecnologia na sociedade brasileira.
A estudante do nono ano do ensino fundamental, Milena, de 15 anos, usa o ChatGPT algumas vezes para ajudar a entender os conteúdos da escola. Ela relata que a ferramenta não é perfeita e que existem outros métodos de estudo que funcionam melhor para ela, mas acredita que vale a pena usar a inteligência artificial para estudar.
“Tem vezes que o ChatGPT me ajuda muito, mas também tem vezes que ele me confunde. Por exemplo, ele explica de um jeito super difícil ou diferente do que eu vi na escola”, diz Milena.
A finalidade de uso das ferramentas de inteligência artificial é a mesma para Ana Luísa, de 13 anos, Arthur, de 10, e Alicia, de 11. Além do chatbot da empresa OpenAI, as crianças listaram também a ferramenta Luzia, que é uma assistente virtual de educação.
Ana Luísa contou que precisava escrever um texto para uma das disciplinas da escola. Então, usou o ChatGPT para elaborar algumas partes, e ajustou outras para que se adaptasse ao seu estilo de escrita. Essa foi a única vez que a aluna teve a ajuda da IA para fazer seu trabalho de casa. Por outro lado, Arthur confessou usar a tecnologia com uma certa frequência, inclusive chegou a copiar inteiramente e entregar uma redação feita pela ferramenta.
Ana e Arthur conseguiram bons resultados com o auxílio dos chatbots, já Alícia recebeu algumas respostas erradas da ferramenta Luzia quando buscou ajuda para responder questões. Porém, os efeitos negativos do uso de inteligência artificial podem ser mais impactantes e demorarem mais a surgir do que apenas uma nota baixa.
Inteligência artificial atrapalha o desenvolvimento cognitivo das crianças e adolescentes
A facilidade e rapidez em obter respostas para suas dúvidas é o que chama a atenção dos estudantes que usam inteligência artificial com fins escolares. A professora Ana Paula Ubatuba já percebe o uso das ferramentas por parte dos alunos, e considera que o hábito tem se mostrado prejudicial.
“Nos dias atuais, as crianças e os adolescentes procuram agilidade e menos trabalho de pesquisa e leitura. Então, na minha opinião, o uso de inteligência artificial tem um impacto maior negativo, porque os alunos desenvolvem menos as suas habilidades cognitivas que envolvem a memória, atenção, leitura e escrita”, afirma a docente.
São esses dois pontos que a psicóloga especializada em atendimento de crianças e adolescentes, Jhulia Martins, aponta que podem gerar uma dependência tecnológica.
“Ao ser utilizada de modo excessivo, a IA pode trazer prejuízos justamente por ser algo de fácil acesso, prejudicando o cognitivo e o social, fazendo com que o indivíduo não precise se preocupar em pensar em solucionar os problemas ou ir mais afundo em temas que precisam de uma atenção focada maior. Isso causa uma dependência na tecnologia e aumento da procrastinação”.
Outro ponto crucial em relação ao impacto da inteligência artificial no aprendizado dos alunos é a imprecisão das informações fornecidas através dos chatbots. A empresa de Inteligência Artificial OpenAI descreve o ChatGPT como um modelo de IA generativa que interage de maneira conversacional, ou seja, é um chatbot capaz de gerar textos, imagens, áudios e vídeos. Lucas Martins Lago é estudante de Ciência da Computação e pesquisador na área de aprendizado de máquinas, e explica que essa geração de conteúdo acontece a partir de um treinamento prévio.
Segundo ele, as informações que serão utilizadas para treinar uma ferramenta variam de acordo com o modelo e o objetivo da empresa.“Como eles podem ser ‘alimentados’ com qualquer tipo de informação desejada, o desenvolvedor responsável pode criar um modelo apenas treinado com textos de artigos científicos. Dessa forma, você tem uma IA Generativa com uma especialização em artigos”, exemplifica.
Lucas Martins Lago complementa também que a imprecisão das informações é algo inerente a esses modelos de inteligência artificial. A ferramenta de empresas como OpenAI, Google e Meta é treinada com uma quantidade massiva de dados, e existe a possibilidade de conteúdos incorretos servirem como referência para os chatbots. Como consequência, as respostas geradas não são exatas.
“Uma analogia seria uma criança estudando para sua prova de matemática. Se essa criança estudar a matéria errada para a prova, a chance de ela ir mal na prova é muito alta. Contudo, ainda existe uma probabilidade de acertar uma questão ou outra, visto que os tópicos da matemática dialogam entre si. Da mesma forma acontece com o modelo. Se ele foi treinado com dados ‘ruins’ utilizará esses dados na hora de gerar uma resposta”, resume.
Há ainda um fator de probabilidade que interfere nesses modelos de inteligência artificial de linguagem.“O fato de serem modelos de linguagem quer dizer que calculam justamente a probabilidade do próximo caracter ou da próxima palavra, e não necessariamente refletem se esse conteúdo é certo ou não”, exemplifica.
Em suma, os equívocos podem acontecer e a própria OpenAI recomenda a confirmação da veracidade das respostas. Porém, em muitos casos, as crianças e adolescentes apenas aceitam a resposta da IA, sem cogitar a possibilidade do erro, tal qual Arthur ao copiar inteiramente a redação do ChatGPT.
“Depende do tipo de informação e como essa criança terá acesso a ela, mas na maioria dos casos as crianças e os adolescentes podem acreditar fielmente no que estiver disponível para elas, por isso a necessidade de observar e zelar pelo desenvolvimento delas”, menciona a psicóloga. .
Nesse sentido, Alícia descreveu ter sofrido com esse problema. As ferramentas de inteligência artificial já trouxeram respostas que os professores mostraram estar erradas pelo menos umas três vezes. Caso os docentes não tivessem corrigido os trabalhos de casa, ela não saberia que tais informações estavam incorretas.
A inteligência artificial também tem impactos nas habilidades sociais
Além do comprometimento das funções de memória, atenção e solução de problemas, o uso contínuo de inteligência artificial também afeta as habilidades sociais das crianças e adolescentes.
É importante pontuar que os chatbots são programados para simular conversas humanas. Nesse sentido, Jhulia Martins explica que as crianças podem ter dificuldades em entender que do outro lado da tela não tem uma outra pessoa, e sim um chat inteligente. Isso porque a função cognitiva ainda está em desenvolvimento nessa faixa etária. Futuramente, a criança pode ter dificuldades em lidar com contradições.
“Tem ainda a questão da interação entre os pares. Por exemplo, saber como diferenciar as emoções e como expressar o que está sentindo são habilidades afetadas pela inteligência artificial.”
Essa questão é ainda mais chamativa no caso de plataformas como o “Character AI” e o “PolyBuzz”, que desempenham funções exclusivamente de conversas. O objetivo dessas ferramentas é simular a interação com celebridades ou personagens fictícios, o que causa preocupação quanto à possibilidade de surgimento de um vínculo prejudicial para o jovem usuário.
Uma história que repercutiu recentemente foi a de Sewell Seltzer, um adolescente de 14 anos de Orlando, Flórida. Segundo uma matéria publicada na Folha de S. Paulo, o estudante passou meses conversando com os chatbots da Character.AI. Ele era diagnosticado com síndrome de Asperger, transtorno de ansiedade e transtorno disruptivo de desregulação do humor. Ao demonstrar ideação suicida na conversa com o chatbot, Sewell recebeu respostas de incentivo e cometeu suicídio minutos depois.
Essas ferramentas conhecidas como “inteligência artificial de companhia” apresentam risco de trocas sexuais e mensagens de autoagressão, segundo relatório da organização sem fins lucrativos Common Sense Media. Para a instituição, esses aplicativos não deveriam estar disponíveis para menores de 18 anos.
Tais riscos listados pela Common Sense Media somam-se a outros efeitos negativos associados ao uso do celular que já eram debatidos anteriormente. Outros possíveis danos físicos provocados pelo gasto de tempo excessivo no aparelho são olhos secos e má postura, e impactos psicológicos, como o comprometimento da capacidade de concentração.
A inteligência artificial ainda não é acessível a todos os estudantes
Embora a inteligência artificial esteja cada vez mais presente na sociedade e muitas crianças e adolescentes estejam entrando em contato com a tecnologia pela primeira vez, a pedagoga Valéria Gomes chamou a atenção para o fato de que o acesso ainda é desigual.
“O uso da IA tem ocorrido de maneira discreta por parte do alunado. A proibição do uso dos celulares nas escolas, de certa maneira, incide neste uso ainda discreto. É importante lembrar que, alguns alunos não possuem acesso a aparelhos celulares, computadores e internet em suas casas, pois a escola onde trabalho se localiza numa comunidade vulnerável economicamente”, lembra.
Vale pontuar que a Lei 15.100/25, que proibiu o uso de celulares nas escolas públicas e privadas, foi sancionada em janeiro de 2025 para assegurar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes.
A pedagoga menciona que existe uma preocupação sobre nem todos os estudantes terem a possibilidade de usar essas ferramentas, o que dificulta a implementação de estratégias de ensino que busquem aproximar os alunos da tecnologia de uma forma cautelosa. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua sobre Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad/TIC), divulgada pelo IBGE em agosto de 2024, constatou que 88% das crianças de 10 anos ou mais acessaram a Internet em 2023.
Ela identificou também que 5,9 milhões de domicílios do país não usavam internet. Nenhum morador saber usar a tecnologia foi apontado como o principal motivo, seguido por serviços caros e falta de necessidade. Apesar de ser uma pequena porcentagem da população brasileira, trata-se de um número expressivo.
A pesquisa constatou também uma diferença no acesso à internet entre alunos de escolas públicas e privadas. Os dados mostram que 97,6% dos estudantes da rede privada utilizaram a Internet em 2023, enquanto o percentual foi de 89,1% para matriculados na rede pública de ensino.

O ensino fundamental é uma fase muito importante para a formação de uma pessoa
Os primeiros anos de educação influenciam questões da vida inteira de uma pessoa, por isso o acompanhamento é indispensável. Para a psicóloga, esse momento é essencial para estimular habilidades e observar possíveis atrasos. Portanto, o uso da inteligência artificial pode ser benéfico quando monitorado, prezando sempre por um desenvolvimento saudável para as crianças.
“Assim como a Internet possui seus benefícios e malefícios, quando falamos de inteligência artificial podem surgir semelhanças. Tudo vai depender da forma como a ferramenta será utilizada. Positivamente é uma ferramenta que ajuda a ter respostas mais rápidas em casos emergenciais, ou esclarecer dúvidas e até ajudar em questões mais complexas. Então, é importante observar e intervir o quanto antes para que o desenvolvimento ocorra como esperado”.
Nesse sentido, Valéria sinalizou que a inteligência artificial já tem sido utilizada pela equipe pedagógica e professores. Ainda que nem todos os alunos possam acessar essa tecnologia, a ferramenta ajuda o corpo docente a identificar e encontrar estratégias para atender demandas específicas de aprendizado.
“A inteligência artificial possibilita um atendimento mais adequado às especificidades de cada aluno, principalmente para alunos dos anos iniciais, durante o processo de alfabetização, e daqueles que são do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Esse uso já demonstra uma de suas maiores utilidades nas escolas: facilitar o trabalho pedagógico e oportunizar um olhar mais individualizado sobre as necessidades dos alunos.”
A professora Ana Paula destacou também a utilidade da IA para a otimização de tempo. Entretanto, Milena, Ana Luísa, Arthur e Alícia disseram que não receberam qualquer tipo de orientação sobre como usar as ferramentas de IA ou sobre a questão da imprecisão das informações e necessidade de pesquisar em outras fontes.
O tema é complexo, mas ao considerar a natureza da inteligência artificial e os pontos trazidos pelos especialistas, pode-se concluir que a inclusão das crianças e adolescentes nos debates e reflexões sobre a tecnologia são indispensáveis para garantir uma relação saudável e sem efeitos negativos no desenvolvimento cognitivo dos jovens usuários.