Por Maria Clara Machado
Na casa de Letícia Provesi, professora niteroiense de 24 anos, os dias ganharam uma nova cadência desde a chegada de Panqueca, uma gata mestiça de pelo rajado. Diagnosticada com autismo na adolescência, Letícia é verbal e leva uma rotina agitada entre os estudos e o trabalho remoto. Mas é nos momentos de pausa, quando se senta no sofá e Panqueca deita sobre seu colo, que desacelera e sente o mundo de forma mais suave. “A interação com ela me dá uma paz que poucas interações humanas proporcionam”, conta.
A relação entre pessoas autistas e animais de estimação não se resume a ter uma companhia: para muitos, é uma via de conexão emocional, desenvolvimento pessoal e conforto sensorial. Seja para pessoas verbais, como Letícia, ou não verbais, como Miguel, de 8 anos, que vive em São Gonçalo, esses vínculos representam pontes seguras entre o mundo interno e o externo.
Conexões possíveis em qualquer forma de comunicação
Miguel não desenvolveu a fala, mas expressa sentimentos com gestos, olhares e sons. E, desde que o cãozinho Simba entrou na vida da família, sua mãe, a dentista Joana Freitas, notou mudanças importantes. “Antes ele evitava qualquer tipo de toque, até meu colo. Agora, ele deita abraçado com o Simba e ri. É uma alegria que ele não consegue dizer com palavras, mas que a gente sente”.
A ausência da fala não significa ausência de afeto ou de vínculo. Para pessoas autistas não verbais, a relação com um animal pode ser a primeira experiência de troca afetiva que não exige adaptação à lógica neurotípica. “O animal aceita o que a criança pode dar. E isso, por si só, já é terapêutico”, explica a psicóloga Gabriela Lins, especialista em neurodiversidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Gabriela relata que há uma base científica robusta por trás dos efeitos positivos dessa convivência. “Os animais ajudam na regulação emocional, reduzem a ansiedade e criam uma rotina de cuidados que pode ser muito estruturante para quem está no espectro”, diz.
A especialista destaca ainda que, para algumas pessoas, o pet pode servir como um ‘modelo social’ de interação. “Aprendizados como empatia, espera, afeto e limites podem ser vivenciados com mais segurança com um animal do que com humanos”.
Em crianças, o contato com os pets pode impulsionar o desenvolvimento da linguagem, ampliar a tolerância a estímulos e incentivar a autonomia. Já em adultos, os animais ajudam a aliviar os efeitos do estresse, melhorar o sono e fortalecer a autoestima.
Uma pesquisa publicada no Frontiers in Veterinary Science destacou que a Terapia Assistida por Animais (TAA) pode atenuar sintomas centrais do Transtorno do Espectro Autista (TEA), como comunicação social, irritabilidade e habilidades verbais. E, segundo o Journal of Autism and Developmental Disorders, os animais, especialmente cães, são percebidos como facilitadores da comunicação, servindo como reforçadores e captando a atenção dos indivíduos .
Para Letícia, a presença de Panqueca não só proporciona alívio emocional, mas também ajuda na interação social. “Ela é meu assunto favorito, então, quando alguém pergunta sobre ela, eu consigo entrar na conversa com mais facilidade”, explica.
Essa situação é comum. Muitos autistas sentem-se mais confortáveis iniciando uma conversa ou participando de eventos quando há um animal envolvido. Em alguns casos, os pets são reconhecidos como parte da rede de apoio, e, dependendo do nível de suporte necessário, podem ser considerados animais de assistência.
Cuidados na introdução
Apesar dos inúmeros relatos positivos, a introdução de um animal de estimação deve ser feita com cautela e acompanhamento. “Não é toda pessoa autista que vai se beneficiar da mesma forma. Algumas podem se incomodar com cheiros, pelos ou sons. É fundamental respeitar o tempo e os limites de cada um”, destaca Gabriela.
A escolha do animal, sua personalidade, seu nível de energia e as condições da casa devem ser cuidadosamente avaliadas. “O vínculo só será saudável se for bom para ambos, pessoa e pet. Não se trata de forçar um contato, mas de abrir espaço para que ele aconteça naturalmente”, completa. Segundo ela, o primeiro passo é observar se a criança ou adulto demonstra algum interesse espontâneo por animais, mesmo que à distância.
Com crianças, a especialista recomenda um processo gradual e lúdico. “Pode-se começar com livros ilustrados, vídeos curtos e brinquedos que simulem um animal. Depois, fazer pequenas visitas supervisionadas a casas de amigos com pets calmos. Essa introdução deve ser leve, sem imposições. O animal nunca deve ser apresentado como obrigação, ele precisa ser percebido como algo prazeroso”, orienta.
Já no caso de adultos, a abordagem pode variar mais. “Alguns adultos autistas buscam o pet por iniciativa própria, o que facilita bastante o processo. Mas é importante considerar a rotina, a sobrecarga sensorial e a capacidade de manter os cuidados com o animal. Em alguns casos, um peixe ou um gato pode gerar menos estímulo do que um cão ativo, por exemplo”, explica.
A escolha do animal, sua personalidade, seu nível de energia e as condições da casa devem ser cuidadosamente avaliadas. “O vínculo só será saudável se for bom para ambos, pessoa e pet. Não se trata de forçar um contato, mas de abrir espaço para que ele aconteça naturalmente”, reforça Gabriela.
A especialista também ressalta que a relação terapêutica pode ocorrer com diferentes espécies, além de cães e gatos. “Peixes, hamsters, tartarugas, pássaros… Cada um oferece uma forma distinta de interação. Um hamster pode trazer conforto com sua rotina mais tranquila de cuidados e até o simples observar de um aquário pode ter efeito calmante. O mais importante é que o animal combine com o perfil da pessoa”, afirma.
Silêncios que dizem muito
Em um mundo em que pessoas autistas ainda enfrentam barreiras diárias de compreensão e acolhimento, os animais oferecem um tipo diferente de relação, que não exige adaptação às normas de convivência social.
“O Simba não precisa entender o que o Miguel quer dizer. Ele simplesmente está ali, deitado ao lado dele, e isso já basta”, resume Joana.