Apenas seis das vinte equipes do Brasileirão se posicionaram no dia 1º de abril
Por Kayky Resende
O golpe militar de 1964, que instaurou a ditadura no Brasil, completou 61 anos em 1º de abril — uma data significativa para a memória histórica e a defesa da democracia. No entanto, poucos clubes brasileiros se manifestaram sobre o tema, revelando uma postura de omissão política por parte da maioria das instituições. Das vinte equipes que disputam atualmente a Série A do Campeonato Brasileiro, apenas seis se pronunciaram: Bahia, Botafogo, Corinthians, Internacional, Sport e Vasco.
O primeiro a se manifestar nas redes sociais foi o Vasco – clube que tradicionalmente se posiciona sobre assuntos políticos – com a mensagem “Ditadura nunca mais”. O Bahia, por sua vez, citou um trecho da música “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. O Corinthians, único clube paulista a realizar uma declaração, relembrou o movimento “Democracia Corinthiana”, símbolo da resistência ao regime militar na década de 1980.

Fotos: Bahia / Botafogo / Corinthians / Vasco da Gama
Entre os que se pronunciaram, o Botafogo sofreu diretamente com a repressão durante o período ditatorial. Em 1968, jovens planejavam marchar do campus Praia Vermelha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), até o Ministério da Educação (MEC) para protestar contra a violência estatal, após o assassinato do estudante Edson Luís. Segundo o Jornal dos Sports, três grupos de manifestantes foram reprimidos de forma truculenta pelas forças policiais em vários pontos da cidade. No pátio do MEC, um estudante de 16 anos chegou a ser detido por um soldado.
Cerca de 200 pessoas, impedidas de alcançar o centro da cidade, buscaram abrigo na sede social do Botafogo, na Rua General Severiano, próxima ao campus da UFRJ. O presidente do clube na época, Altemar Dutra de Castilho, permitiu que o grupo se abrigasse e tentou impedir a entrada da polícia. Ainda assim, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) invadiram o local utilizando bombas de gás, ameaçando os presentes com armas. De acordo com o jornal, atletas, funcionários, sócios e até mesmo crianças sofreram com a brutalidade policial.

Foto: Jornal dos Sports / Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME/UFRJ)
Apesar de pouco lembrado, esse episódio é resgatado por torcedores como símbolo da resistência institucional à repressão. Entre eles, destaca-se o coletivo Botafogo Antifascista, formado por torcedores engajados na luta contra o fascismo. O grupo realiza ações sociais como os projetos “Povo no Estádio” e “Antifas Contra a Fome”.
Para a presidente do coletivo, Maria Isabel Rodovalho, o posicionamento do Botafogo reforça-o como clube favorável à democracia.
“A gente esperava que o Botafogo se posicionasse contra a Ditadura, até pela história do clube durante o período ditatorial, mas entendemos que as pessoas no comando não se importam cem por cento com isso, porque financeiramente é mais positivo evitar o posicionamento nesses casos. Mas, quando o clube se posicionou, reafirmou a identidade do Botafogo de se colocar ao lado da democracia”.
Apesar da emergência de torcidas politizadas, cresce nas redes sociais um discurso contrário à associação entre futebol e política. Muitos torcedores reagem negativamente quando os clubes se posicionam em temas como a ditadura, alegando que o futebol deveria ser “apolítico”.
Para o historiador Theo Flores, a falta de posicionamento político dos clubes é um reflexo de como a sociedade brasileira se distancia gradualmente da política. Nos últimos anos, diante da extrema politização entre direita e esquerda, os eleitores que não se posicionaram politicamente foram chamados de “isentões”.
“A gente cresce ouvindo que política é chato e, mesmo com o crescimento da polarização, as discussões políticas são postas como distantes do cotidiano. Além disso, a falta de declarações sobre a ditadura é um dos sintomas do tratamento inadequado sobre o regime militar durante a redemocratização. Ao contrário de Chile e Argentina, o Brasil não realizou julgamentos a quem esteve ativo no golpe e anistiou os militares torturadores”.
O especialista lembra que, durante o impeachment da presidente Dilma, em 2016, deputados federais apareceram na Câmara de Deputados com camisas que faziam homenagens a torturadores, incluindo o coronel Brilhante Ustra. Apesar da Comissão Nacional da Verdade ter restaurado investigações e entregado certidões de óbitos, não levou os torturadores a julgamentos concretos, diferentemente de outros países sul americanos. O distanciamento criado pela falta de medidas contra a ditadura militar se reflete diretamente na forma como as instituições futebolísticas brasileiras se manifestam sobre o período.
“Quando você se posiciona e finca a bandeira ao lado da democracia, em um país tão polarizado quanto o Brasil, acaba por sofrer críticas e pode, de alguma forma, perder dinheiro também. A gente vê que muitas torcidas organizadas antifascistas são de internet, sem ação direta e cunho social. O coletivo Botafogo Antifascista quer ter significado, além de ideológico, na vida dos cidadãos cariocas, principalmente através de ações sociais”, conclui a líder do movimento, Maria Isabel.

Foto: Instagram (@botafogoantifascista)
Futebol e ditadura: uma relação de conveniência
Ao contrário de ditaduras ao redor do mundo, o regime brasileiro não explorou intensamente a influência política dos clubes na sociedade. Ainda assim, durante o período, as instituições optaram por não criticar o governo militar, principalmente por medo de perder a verba recebida da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atualmente Confederação Brasileira de Futebol), afirma o especialista.
“Aquela época não era como hoje, que os clubes são patrocinados e podem se transformar em SAF (Sociedade Anônima do Futebol). Então, era um período em que o dinheiro era relativamente escasso no nível esportivo, e o montante recebido vinha da CBD ou das federações estaduais. Devido a isso, o governo tinha poder sobre os clubes, era uma relação de submissão, ou seja, seria estranho ver as equipes se posicionando institucionalmente contra o regime”.
Apesar disso, o futebol foi utilizado como ferramenta de propaganda política do governo militar, através da seleção brasileira, principalmente após a conquista da Copa do Mundo de 1970. Além disso, de 1971 a 1973 foi realizado o Torneio do Povo, cujo nome oficial era Torneio General Emílio Garrastazu Médici. O apelido surgiu porque o campeonato unia os times de maior torcida nos seus respectivos estados. Inicialmente, o Corinthians era o representante paulista, Flamengo, representante carioca, Atlético Mineiro, representante de Minas Gerais e Internacional, representante gaúcho. A ideia era maquiar a imagem do regime de Médici criando um torneio de apelo nacional utilizando grandes torcidas após o sequestro do embaixador suíço.
“O futebol era usado com a intenção de normalizar o cotidiano e criar uma atmosfera de paz e lazer. No nível dos clubes, o Brasil se assemelhou à Itália de Mussolini, que utilizou muito a seleção como propaganda. A equipe brasileira era levada como uma vitrine do país, buscando mostrar os ideais pensados pelo governo, como a moral e os bons costumes. Temos, por exemplo, o Real Madrid sendo utilizado pela ditadura espanhola. Mas o foco dos militares era criar uma integração entre a população”.
Para a professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) Lívia Gonçalves Magalhães, a relação entre o futebol e a propaganda para a ditadura começou após a vitória brasileira na Copa do Mundo de 1970.
“Depois de 1970, com a vitória da Copa, o futebol passa a ser de fato, um elemento que a ditadura entende como favorável para utilização como propaganda. A copa de 70 consegue fazer uma associação importante entre o discurso dos militares e o discurso da vitória da seleção. Depois, temos a criação do Campeonato Brasileiro em 1971, que entra na questão de como o governo percebe a importância dos clubes para a criação de um vínculo e uma ideia de unidade territorial. O pós-1970 é muito importante para esses projetos do governo”.
O contraste com os clubes argentinos
Se no Brasil a maioria dos clubes permaneceu em silêncio em 1º de abril, na Argentina a mobilização foi ampla. Em 24 de março — data do golpe de 1976 e reconhecida como o “Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça” — 28 dos 30 clubes da primeira divisão publicaram mensagens com a hashtag #NuncaMás nas redes sociais. Apenas Aldosivi e Independiente Rivadavia não se pronunciaram.

“Na Argentina, houve um grande julgamento dos generais, dos arquitetos do golpe e torturadores. Foi aberta uma comissão da verdade praticamente após o fim da ditadura. No Brasil, a comissão da verdade foi extremamente tardia. Além disso, o dia 24 de março é considerado feriado nacional, então há uma comoção nacional para relembrar as pessoas que morreram e desapareceram durante o período. A partir do momento em que uma data é considerada feriado, ajuda a manter a memória viva e conscientizar a população. O movimento dos clubes argentinos se pronunciando é relativamente recente e as postagens são sempre bem pensadas, realizando ações sociais para homenagear as vítimas do regime”, pontua Theo.
Enquanto os clubes argentinos fortalecem a memória coletiva, a postura omissa de grande parte dos clubes brasileiros expõe uma falta de construção de identidade democrática e do enfrentamento do passado autoritário.
“A ideia de democratização virou uma marca e uma discussão de memória, principalmente para dois clubes do Brasil, o Vasco e o Corinthians. Isso não quer dizer que são clubes que sempre lutaram contra o racismo, autoritarismo e pela democracia, mas hoje, a opção dessas instituições é por alcançar uma imagem mais progressista. É interessante percebermos que, nas datas do golpe de 1964, os dois são os primeiros a se posicionar, enquanto a maioria prefere não se manifestar. Essa é uma questão nacional, que vai além do ambiente futebolístico. É a ideia de como as políticas de preservação de memória não avançaram no Brasil, a ponto de não existir uma condenação massiva da ditadura”, afirma a docente.