Memes, vício e vínculos no jeito geração z de se comunicar
Por Luana Rafael
Você provavelmente já viu alguém se definir como “cronicamente online” ou talvez tenha até feito isso. A expressão, popularizada em postagens irônicas e memes que circulam diariamente nas redes sociais, vai além da piada sobre excesso de tempo de tela. O termo revela uma dimensão dos hábitos digitais contemporâneos, especialmente entre os jovens.
Para a professora de Comunicação Digital da UFF e pesquisadora de consumo, linguagem e cultura na internet, Priscilla Paranhos, o fenômeno ultrapassa a brincadeira: “Estar cronicamente online é muito mais profundo do que apenas um meme. Não é apenas estar ligado o tempo todo: é viver numa lógica em que a rede se torna o espaço central de existência, interação, expressão e reconhecimento”.

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“Eu não consigo ter uma conversa sem fazer referência a um TikTok ou alguma coisa que vi no Instagram”, conta a estudante de jornalismo Gabrielle Oliveira, de 23 anos. A afirmação mostra uma geração que cresceu no ambiente digital e hoje se comunica, pensa e se relaciona a partir da linguagem dos memes.
A cultura digital deixou de ser um acessório da vida cotidiana e passou a ocupar um papel central na formação dos jovens. Essa geração já nasce conectada e constrói a própria identidade em um ambiente onde o online atravessa relações sociais, afetivas, políticas e simbólicas. A exposição constante às redes, somada à facilidade de estar conectado em qualquer lugar, potencializa esse modo de viver e se expressar.
Na rotina de Gabrielle, os conteúdos mais compartilhados são vídeos curtos e espontâneos, muitas vezes produzidos por meninas como ela, falando de experiências pessoais, mercado de trabalho ou apenas comentando o mundo pop com humor ácido. “Tem um meme que sempre falo com minhas amigas: ‘I am just a girl [Eu sou apenas uma garota]”, brinca.
O influenciador digital Daniel Mota, criador de conteúdo, que acumula mais de 120 mil seguidores no TikTok e que produz vídeos com foco justamente no universo “cronicamente online”, explica que o termo não é exagero. “Eu me considero cronicamente online, apesar de não me orgulhar muito disso. Uso esse termo para caracterizar quem está sempre conectado ao mundo da internet, seja por meio de notícias, memes, vídeos ou fofocas. Além disso, essas pessoas relacionam acontecimentos do digital e, principalmente, memes com situações reais do cotidiano”.
Segundo a psicóloga Sherry Turkle, professora do MIT e referência em estudos sobre tecnologia e subjetividade, os ambientes digitais não apenas refletem o que somos, mas participam da construção de quem somos; o que ela chama de “vida no espelho da tela”. O “cronicamente online”, nesse sentido, é um sintoma visível de uma nova forma de sociabilidade, onde os limites entre o real e o virtual já não são tão claros.
O meme se transforma em linguagem emocional. Gabrielle admite que já usou esse tipo de conteúdo em conversas sérias e afetivas. “Sempre! Eu sinceramente não sei por quê, mas acho que é o humor”, diz. O humor, nesse caso, é também uma proteção, um código compartilhado.
Para a professora Priscilla, é preciso reconhecer a sofisticação dessa linguagem: “Os memes se estabeleceram como uma linguagem simbólica porque condensam ideias, sentimentos e posicionamentos de forma acessível, visual e imediata. Dizer que os memes substituem as conversas reais é flertar com um olhar conservador sobre as transformações comunicacionais. O que muda não é o desejo de conversar – o que muda é o código”.
Daniel compartilha dessa visão, mas faz um alerta: “Acredito que por um lado os memes se tornaram a língua oficial do jovem por serem divertidos e por estimularem a criatividade e o raciocínio para relacioná-los com as situações do dia a dia. Mas eles não podem substituir conversas mais profundas sobre questões sociais, sentimentos ou relações pessoais, por exemplo. Deve existir um limite para a utilização desse ‘dialeto cronicamente online”.

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Escolha ou vício?
Ser “cronicamente online” é mais do que estar sempre com o celular na mão. É atualizar a timeline entre tarefas, assistir a vídeos antes de dormir, conversar com amigos por meio de reels e trends. “Eu ando com o celular na mão até dentro de casa”, confessa a jovem estudante de design de interiores Clara Antunes, de 22 anos.
Essa hiperconectividade tem seu preço. Cansaço mental, ansiedade e dispersão aparecem com frequência nos relatos de jovens que sentem a obrigação constante de estarem presentes nas redes e informados sobre tudo.
Uma pesquisa realizada pela McKinsey, em 2023, com 16 mil jovens de 26 países – incluindo o Brasil –, revela que a geração Z é a que mais passa tempo nas redes sociais. De acordo com o levantamento, 35% dos entrevistados dessa faixa etária passam pelo menos 2 horas por dia conectados, número superior ao dos millennials (24%), da geração X (17%) e dos baby boomers (14%). O estudo também mostrou que os Gen Zs lideram o ranking entre os que mais acessam as contas ao longo do dia.
Daniel, que trabalha com a internet, sente os efeitos da hiperconectividade na própria vida: “Depois que comecei a trabalhar com redes sociais, meu consumo de internet aumentou muito. Isso afetou minha capacidade de concentração, foco e paciência para assistir a algo maior que um minuto. Às vezes deixo de ler um livro ou de fazer algo que gosto para ficar nas redes sociais. Acho extremamente prejudicial”.
Desconectar para se conectar
Gabrielle tentou controlar o tempo que gasta nas redes com temporizadores nos aplicativos, mas passou a ignorá-los. “Eu passava do limite todos os dias. A solução foi desinstalar o Instagram e o TikTok”. Hoje, ela ainda entra, em alguns momentos, pelo navegador, mas não passa mais do que alguns minutos. “Estou mais paciente, concentrada e mentalmente disposta”, relata.
Segundo Priscilla, essa tensão entre presença e esgotamento é própria da lógica digital: “A gente faz parte do mundo real, mas o real está cada vez mais intrínseco ao digital. Não é à toa que expressões como FOMO (Fear of Missing Out – medo de ficar de fora), FOBO (Fear of Better Options – medo de tomar decisões erradas) e até JOMO (Joy of Missing Out – a alegria de ficar por fora) se popularizaram tanto. Isso mostra como a presença – ou ausência – nas redes atravessa um modo operante social que nos engatilha numa eterna dúvida entre participar ou se preservar”.
Daniel afirma tentar equilibrar a necessidade de estar conectado por conta do trabalho, com a vontade de se dedicar a outras atividades: “Apesar de estar trabalhando quando estou na internet, acredito que é preciso existir um limite de uso das redes. Estou tentando voltar a ler com frequência, assistir conteúdos mais longos e controlar meu tempo de tela. Aos poucos vou conseguindo deixar meu cérebro mais ‘cronicamente offline”.
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Se os memes se tornaram a principal forma de expressão digital entre os jovens, é importante entender também como eles circulam e o que os faz viralizar – a lógica algorítmica tem um papel central nesse processo. O humor que chega ao nosso feed não é aleatório: é moldado pelas interações anteriores, por filtros-bolha e por decisões invisíveis sobre o que vale mais engajamento.
“O humor está diretamente ligado à nossa capacidade de interpretar e decodificar narrativas”, explica Priscilla. “Os algoritmos atuam como mediadores invisíveis que filtram e organizam os conteúdos com base em dados. O humor que chega até o usuário, portanto, já passou por uma espécie de curadoria algorítmica. Isso pode significar o apagamento de outras expressões culturais, formas de comicidade ou até o reforço de estereótipos já validados por grupos dominantes”, afirma a professora.
“Meus vídeos sobre ‘memes que apenas pessoas cronicamente online conhecem’, apesar de não estar muito explícito, são também um alerta para as pessoas dizendo ‘talvez seja hora de dar um tempo na internet e ir ler um livro’. Muitas pessoas comentam ‘Meu Deus, eu conheço todos os memes, o que estou fazendo com a minha vida?”, complementa Daniel.
Apesar das críticas e das preocupações em relação ao excesso de tela, o digital também tem se mostrado uma ferramenta legítima de conexão afetiva. Clara diz acreditar que estar online aproxima: “Tem amigos com quem eu falo todo dia só mandando vídeos com os quais a gente se identifica”.
Para Priscilla, não se trata de hierarquizar as experiências online e offline, mas de entender como elas se relacionam: “Não há esvaziamento emocional. Somos seres de afeto – com ou sem wi-fi. O que precisamos é evitar criar uma escala de valor entre o real e o virtual. Os dois modos produzem sentido, geram vínculo e constroem memórias”.

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Ser “cronicamente online” não é apenas sobre vício ou excesso de estímulos. É também sobre as formas de se comunicar, proteger e pertencer a algo maior – mesmo que seja uma trend que dura três dias ou um meme que logo vai “saturar”. Para muitos jovens, as redes são palco, abrigo e campo de batalha ao mesmo tempo.
Mas, há também quem comece a ensaiar pequenas fugas e pausas. Desconectar, ainda que por poucas horas, é cada vez mais um gesto de resistência: uma tentativa de voltar a ter o controle do tempo e de viver mais o momento presente – sem pensar na foto aesthetic que renderia no Instagram.
Para a professora, o desafio não está em sair da internet, mas em aprender a conviver com ela. “É preciso compreender que um jovem que envia um meme como resposta não está ‘emudecido’, mas está se comunicando dentro de um léxico próprio, onde imagens, textos e até silêncios carregam significados”.