Desigualdade racial nas comissões técnicas contrasta com protagonismo de atletas negros em campo

Por João Arthur Santos

Apesar de a maioria dos jogadores do futebol brasileiro se declarar negro, essa representatividade não se reflete nas comissões técnicas dos principais clubes do país. Atualmente, técnicos negros são exceção na elite do futebol nacional, em um cenário que permanece inalterado há décadas e expõe o racismo estrutural presente no esporte.

O levantamento realizado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol revelou que, entre os 81 treinadores que comandaram equipes das Séries A e B do Campeonato Brasileiro de 2024, apenas seis se declaravam negros ou pardos. O dado revela um abismo entre o que se vê dentro de campo e o que ocorre fora dele.

Na atual temporada do Brasileirão, o único representante negro é Roger Machado, do Internacional. O treinador está no comando da equipe desde julho de 2024 e, no início deste ano, levou o Colorado ao título gaúcho após quase nove anos de jejum.

Roger Machado, o único treinador negro da série A do Campeonato Brasileiro. Sob o comando do Internacional foram 51 jogos: 26 vitórias, 16 empates e 9 derrotas.
Foto: Ricardo Duarte/SCI

De acordo com dados do IBGE, mais da metade da população brasileira é negra (pretos e pardos). No futebol, esse grupo domina as escalações: em 2023, segundo a pesquisa da Escola de Educação Física e Esportes da USP mais de 60% dos atletas da Série A eram negros. Ainda assim, o número de técnicos com esse perfil racial é extremamente reduzido.

A forte presença e luta antirracista dos jogadores negros, até então, não se traduziu em ocupação dos espaços de poder no futebol. Técnicos como Andrade, campeão brasileiro com o Flamengo em 2009, e Cristóvão Borges figuram entre as poucas exceções ao longo da história recente.

Andrade, técnico campeão brasileiro de 2009 com o Flamengo
Foto: CRF

Racismo estrutural e redes fechadas

Pesquisadores e ex-profissionais ouvidos apontam o racismo estrutural como principal obstáculo. Estereótipos históricos ainda associam a liderança e o pensamento tático a treinadores brancos, especialmente com formação europeia.

Outro entrave citado é a dificuldade de acesso às redes de contato que impulsionam a carreira de técnicos no Brasil. Muitas contratações seguem baseadas em indicações pessoais ou histórico em grandes clubes, espaços ainda pouco acessíveis para treinadores negros.

“Há uma visão persistente e preconceituosa de que o jogador negro é mais valorizado pela sua habilidade física do que pela capacidade de liderança ou pelo raciocínio estratégico. Isso acaba refletindo na hora de contratar um técnico, onde o estereótipo da competência tática ainda é muito ligado a um perfil branco”, comenta um treinador com experiência nas divisões de base, que preferiu não se identificar.

Ausência de políticas de inclusão

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não possui iniciativas voltadas à promoção da diversidade racial entre os técnicos, já que seus programas de treinamento mantêm um caráter excludente. O curso de Licença Pro, exigido para atuar como treinador em clubes da Série A, custa em torno de 20 mil reais, o que também restringe o acesso de candidatos de origem mais humilde.

Enquanto isso, clubes e federações não adotam metas de inclusão ou monitoramento da diversidade nas comissões técnicas. Sem política pública ou pressão institucional, a mudança tende a ocorrer lentamente, ou não ocorrer.

Movimentos da sociedade civil e iniciativas independentes tentam abrir caminho para a equidade. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol atua no monitoramento de desigualdades e promove ações de visibilidade para técnicos e dirigentes negros.

Outro tema em debate é a adoção de uma versão brasileira da “Rooney Rule”, norma da NFL (liga de futebol americano dos EUA) que obriga clubes a entrevistarem candidatos negros para cargos de técnico. No Brasil, a proposta ainda enfrenta resistência e não há previsão de regulamentação.

Caminho depende de mudança institucional

A superação desse quadro exige mudanças estruturais. Especialistas sugerem políticas de formação e incentivo para técnicos negros, além da adoção de metas de diversidade nos clubes e maior fiscalização sobre os critérios de contratação.

Sem isso, o futebol brasileiro continuará sendo um reflexo da sociedade: um ambiente onde a maior parte da força de trabalho é negra, mas o poder de decisão continua concentrado nas mãos de uma elite branca.

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