Após viralizar nas redes, a  expressão reacende o debate sobre os bastidores da vida profissional na comunicação

Por Anna Clara Finamor

Redações de moda, campanhas de marketing de luxo e ações criativas: esse é o cenário com que toda “garota legal que faz comunicação” já sonhou um dia. Neste ano, o bordão ultrapassou o universo da fantasia e virou tendência nas redes sociais. Enquanto revelavam suas referências e inspirações na área, jovens mulheres compartilharam o que é ser comunicóloga para além das telas.

Em milhares de vídeos no TikTok, Instagram e até no LinkedIn, elas mostraram personagens comunicadores que são fãs e cenas cotidianas que alimentam o imaginário da profissão: reuniões leves, roupas estilosas, processos criativos e uma rotina digna de um filme dos anos 2000. O tom é nostálgico, inspirador e estético — reforçando a ideia de que trabalhar com comunicação é, também, um estilo de vida.

Mas, por trás dos filtros e das trilhas pop, será que essa realidade se sustenta?

O sonho das comédias românticas 

Desde cedo, a comunicação aparece como um sonho possível para jovens criativas. Referências como Andy Sachs, de O Diabo Veste Prada, Jenna Rink, de De Repente 30, Emily Cooper, de Emily in Paris, e Carrie Bradshaw, de Sex and the City, ajudaram a construir o imaginário da comunicadora ideal: estilosa, divertida, inteligente e sempre envolvida em algo glamouroso.

Esse roteiro ganhou força com o crescimento das redes sociais, onde o cotidiano da área passou a ser exibido com estética e leveza. A promessa? Trabalhar com o que se ama, estar em ambientes descolados, ter liberdade criativa e ser bem remunerada por isso. Mas será que essa imagem corresponde à realidade?

Para Maria Júlia Freitas, formada em jornalismo e atualmente coordenadora de Marketing, o contraste entre o que se mostra e o que se vive no dia a dia é significativo. Ela destaca que a imagem estereotipada das comunicadoras esconde um cenário de sobrecarga e fragilidade estrutural:

“Todo mundo vê a parte legal: estamos na TV, nas redes, sempre com o celular na mão. Mas o bastidor é pesado. Tem excesso de trabalho, pouca valorização, salários baixos e uma saúde mental comprometida. E, sendo mulher, as oportunidades são ainda mais limitadas”, afirma.

Ela também aponta que o glamour vendido nas telas omite questões estruturais graves. “Ser uma ‘garota legal que faz comunicação’ virou um rótulo estético. Mas ele esconde camadas de exploração e desvalorização profissional”, destaca.

Para a repórter Sofia Miranda, suas referências cinematográficas de comunicadoras ajudaram a mascarar a realidade do mercado. “Lembro das comunicadoras de filmes norte-americanos, com um estereótipo de menina muito empenhada e criativa. Gosto disso, mas elas mostram personagens com liberdade para serem elas mesmas e para fazerem o que amam. Sabemos que na realidade não é bem assim”, detalha. 

A realidade do mercado

Para entender como está o mercado de trabalho na comunicação, realizamos uma enquete com mais de 10 mulheres da área em diferentes regiões do país. As participantes, com perfis diversos em idade, formação e cargo, responderam sobre níveis de satisfação com a carreira e percepções sobre valorização profissional.

Os resultados indicam um cenário marcado por descontentamento. Muitas relatam jornadas intensas, funções acumuladas e prazos curtos. A flexibilidade vendida nas telas como um diferencial se converte, na prática, em falta de limites entre vida pessoal e profissional.

A designer gráfica de 27 anos, Louise Cesper, também sente essa desconexão entre a expectativa criativa e a realidade de produção em larga escala. Ela compara o ritmo acelerado de trabalho à lógica industrial.

“Precisamos muitas vezes focar em entregar em muitas demandas e com pressão em cima, viramos uma pastelaria: abrimos a massa, colocamos um recheio padrão, fechamos e entregamos os projetos. Para quem trabalha com criatividade é frustrante”, relata.

Essa precarização, somada à romantização da profissão nas redes sociais, tem gerado frustração em profissionais que investiram tempo e formação na área, mas hoje enfrentam instabilidade e desvalorização.

Na mesma pesquisa, também perguntamos como as comunicadoras avaliam o reconhecimento do próprio trabalho no dia a dia.

Louise também chama atenção para a falta de reconhecimento do trabalho criativo, especialmente quando comparado a outras áreas dentro das empresas:

“Meu maior choque de realidade no mercado de comunicação foi perceber que, para outros setores, o nosso trabalho tem o valor diminuído. É sempre uma ‘artezinha’ ou uma ‘ediçãozinha’. Não levam a sério e acham que tudo se faz em cinco minutos”, destaca Cesper.

Saúde mental e o peso de ser “uma garota legal”

A romantização da comunicação como uma carreira leve, criativa e sempre empolgante pode ter efeitos colaterais profundos na saúde mental das profissionais da área. A psicóloga Flávia Costa, especialista em psicologia organizacional, alerta que essa imagem glamourosa, somada à pressão constante das redes sociais, tem contribuído para quadros de ansiedade, sensação de insuficiência e até burnout.

A glamourização de algumas profissões afeta de várias formas. Primeiro pela comparação constante. Depois, pela cobrança de manter uma produtividade perfeita, estar sempre ‘em alta’ e performar o tempo todo. Essa idealização gera frustração quando a realidade não corresponde”, explica.

A repórter Sofia Miranda relata que enfrentou esses sintomas no próprio corpo. “No ano passado, comecei a ter crises de ansiedade e quase cheguei a um burnout. Tomava muitos analgésicos, tinha insônia, falta de ar e crises de choro frequentes”, afirma.

Além disso, o recorte de gênero ainda pesa. Muitas comunicadoras relatam a necessidade constante de se provar, enfrentar machismo velado e, ao mesmo tempo, manter uma imagem impecável — como se ser “legal” também fosse uma exigência emocional.

“O maior desafio é ser vista como alguém intelectual. Não sou só uma mulher fazendo algo bonito. Por trás do design há pesquisa, estratégia e planejamento. Mas, quando estou numa sala com homens, a voz deles sempre tem mais peso. Ele é o profissional estratégico, e eu, a executora de tarefas”, conta Louise. 

Para a jornalista Maria Júlia Freitas, políticas de diversidade ainda são insuficientes para garantir valorização eficaz das mulheres. “Meu maior choque foi lidar com o machismo no ambiente de trabalho. Entrei em vagas afirmativas, mas percebi uma defasagem nas pautas de gênero e raça. Mesmo com o tema em alta, ainda falta representatividade de verdade”, disserta.

Flávia acrescenta que a disparidade salarial e a baixa presença feminina em cargos de liderança seguem como obstáculos estruturais.

“Ainda existem empresas sem políticas reais de inclusão. Os salários dos homens continuam mais altos e eles ocupam os principais cargos. Isso desestimula as mulheres e reforça a ideia de que não são boas líderes, diminuindo suas chances e seu estímulo no mercado”, conclui. 

Emily em Paris
Divulgação / Netflix

Ainda dá para amar o que se faz?

Apesar dos desafios, muitas mulheres seguem apaixonadas pela comunicação. O que muda é a forma como encaram a profissão: com mais consciência, redes de apoio e menos idealização. 

Para a designer Louise Cesper, a construção de redes entre mulheres é essencial para seguir no mercado e reconhecer o valor do que se produz. “Conversar com outras mulheres sobre como nos sentimos e sobre o nosso espaço profissional é pensar: não estou sozinha. A gente troca medos, inseguranças e referências. Criamos juntas e aplaudimos os trabalhos umas das outras”, diz.

Resgatar o brilho da área exige não apenas autocuidado, mas também melhores condições de trabalho, valorização profissional e um olhar mais crítico sobre o que se vê nas redes sociais. Maria Júlia Freitas reforça a importância de manter a sensibilidade e o olhar feminino, mesmo diante de um mercado que nem sempre acolhe:

“Se eu pudesse dar um conselho para as mulheres da comunicação, seria: sejam divas. Continuem colocando emoção nos conteúdos, esse é o nosso trunfo. Temos um olhar único e vamos ocupar os nossos lugares”, conclui a jornalista.

Afinal, garotas legais fazem comunicação, sim — mas também precisam de respeito, saúde mental e reconhecimento para continuarem fazendo o que amam.

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