Mesmo com o aumento na participação esportiva, mulheres ainda precisam “provar” conhecimento para serem consideradas fãs
Por Ana Beatriz Caparroz
De acordo com uma pesquisa da Monks, em parceria com a Floatvibes, sobre o perfil dos fãs no Brasil, 71% dos respondentes consideram os brasileiros como os fãs mais engajados da internet. De acordo com o levantamento, a mobilização dos fãs tem quatro eixos: esporte, música, audiovisual e games. Em 2024, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) divulgou que o Campeonato Brasileiro levou mais de 9,6 milhões de torcedores pagantes aos estádios, uma média de 22.773 pessoas por jogo. No automobilismo, os números não são diferentes: a Fórmula 1, com apenas uma corrida por ano em terras brasileiras, registrou 291 mil pessoas em Interlagos durante os três dias de evento no ano passado, um aumento de 9,2% em relação a 2023, e estabeleceu novo recorde de público no Grande Prêmio do Brasil.
O automobilismo é uma modalidade esportiva que tem crescido entre os jovens. De acordo com o IBOPE Repucom, nos últimos cinco anos, a popularidade dos esportes de motor cresceu 63% entre as pessoas com 18 anos ou mais, totalizando 65 milhões de brasileiros que acompanham o esporte. Dentre esses novos fãs, a maior fatia é representada pelo público feminino e, hoje, as mulheres representam quase metade (46%) dos torcedores de motorsport. Com esse aumento, surge também o preconceito: quanto mais mulheres gostando de um esporte, mais os homens questionam conhecimento e medem se a mulher é “fã de verdade”.
Há muito tempo, o esporte é visto como uma área de dominância masculina, na qual as mulheres não participavam e não eram bem-vindas. Ainda hoje, mesmo com a conquista de espaço nas arquibancadas, mulheres ainda enfrentam preconceitos e discursos de ódio por serem fãs de esportes e de atletas. De acordo com Joana d’Arc de Nantes, professora e pesquisadora sobre cultura fã, a sociedade cria hierarquias, através das quais eles definem o que é cultura, o que é valorizado e o que é considerado bom. Ao redor dessas hierarquias, os fãs se organizam de forma que o nível de conhecimento define quem é um verdadeiro fã, e quem não é.
“Dentro do esporte, o machismo é ainda mais latente. Então, certamente, isso atravessa esse discurso do verdadeiro fã. E esse costume de perguntar, questionar o conhecimento das mulheres, tem relação com o machismo. Usa-se esse ‘saber mais’ como artifício para ditar quem é mais fã — ou até colocar a mulher como não fã, por não saber de algo ou conhecer“, complementa a pesquisadora.
Lívia Galvão, estudante de jornalismo e criadora de conteúdo sobre automobilismo, já viveu uma situação dessas após a Copa Paulista, quando trabalhou no evento. Um mecânico de umas das categorias começou a seguí-la no Instagram e a interagir com ela na DM (direct messages ou, na tradução, mensagens diretas). Quando não respondeu uma de suas perguntas em um momento de interação com os seguidores, “ele começou a me xingar, falando que eu não sabia de nada, que eu não era uma fã e que só estava ali procurando um marido pra entrar no mundo do automobilismo”. A estudante conta que se sentiu muito desconfortável com a situação e o removeu de suas redes sociais.

Fotos: Instagram Livia Galvão / Montagem: Ana Beatriz Caparroz
Em outra experiência profissional, dessa vez na Porsche Cup pelo projeto FIA Girls On Track, Lívia também sentiu uma resistência dos profissionais técnicos da categoria. Apesar de estar trabalhando, e devidamente identificada, os mecânicos tinham certo receio por ela estar dentro do box.
“No meio da comunicação, como você não tá ali colocando a mão na massa, eles pensam que você não está agregando na construção de algo. A visão deles, e das pessoas de fora, é que você tá ali porque você é fã do piloto, e não porque você está trabalhando”.
Para Daniel Câmara, jornalista e torcedor, as piadas e questionamentos sobre o conhecimento das mulheres ainda são frequentes entre os homens como uma forma de reforçarem seu pertencimento a um grupo. Ele revela que já presenciou esse tipo de situação e, inclusive, já participou disso em algum momento, mas que percebe os problemas de agir dessa forma. “Quando a gente faz [a piada], a gente enxerga como algo natural, mas analisando o que foi feito, ou dito, percebemos que é algo sem noção, e uma situação não tão legal para a pessoa que foi questionada”, explicou.
A estudante de jornalismo Evelyn Saminey já teve experiências nas quais foi questionada sobre o quanto sabia da história do time. “Sou muito flamenguista, e eu busco sempre estar conhecendo a história do meu time, mas vira-e-volta tem alguém falando sobre um ato que aconteceu com o time e que eu muito provavelmente não sei porque é insignificante na história, e aparentemente só ele sabe, como se fosse um erro eu não saber disso. É o tal do mansplaining”.
O termo mansplaining é muito recorrente no meio esportivo, e consiste na prática de homens tentarem explicar coisas para mulheres, pressupondo que elas não tenham conhecimento prévio sobre o assunto. Evelyn também já precisou lidar com comentários machistas que afirmavam que o motivo para ela acompanhar Fórmula 1 era a beleza dos pilotos.
Além dos questionamentos constantes, outro aspecto muito utilizado para invalidar as fãs mulheres são os sentimentos. As mulheres são sempre vistas como histéricas e emotivas, enquanto os homens estão curtindo o momento ou frustrados por uma derrota, por exemplo. Segundo Joana d’Arc, essa visão estereotipada dos fãs teve início nos anos 1960. “Tem autores que vão trazer exemplos de mulheres histéricas, falando das fãs de Beatles, que já tinham essa associação na mídia e no senso comum. Não vem de hoje, e podemos trazer a própria etimologia da palavra, que vem de ‘fanático’ e tem uma carga pejorativa”.
Ela reforça que isso não se restringe apenas ao senso comum, mas também era visto de forma depreciativa dentro da própria Academia. Com o passar do tempo, “passa-se a olhar de uma forma mais complexificada do fenômeno, entender a cultura, a subjetividade, com sua produtividade, olhar como um grupo”.
As mulheres que demonstram emoções ao assistirem um esporte ainda lidam com preconceitos e julgamentos por parte dos homens, mesmo que de forma inconsciente. “Uma vez, estava assistindo Fórmula 1 com a minha namorada e ela começou a chorar com a vitória do [Charles] Leclerc. Eu não entendi o porquê, mas imagino que ela tenha se colocado no lugar do piloto, de vencer em casa”, conta Daniel.
Charles Leclerc é um piloto monegasco da Fórmula 1, na qual corre pela Ferrari, e é considerado um dos pilotos mais bonitos da categoria e, por isso, muitos homens acreditam que mulheres acompanham a modalidade por causa da aparência dos pilotos. Ele, por outro lado, conta que não costuma se emocionar com esportes, e que o único momento foi com a vitória do Flamengo na Libertadores 2019, quando curtiu o momento com seu pai, hoje já falecido.
Os dois lados das redes sociais

Montagem: Ana Beatriz Caparroz
Com o surgimento da internet e das redes sociais, criou-se um espaço propício para disseminação de preconceitos e discursos de ódio entre fãs, em especial opondo homens e mulheres, como aponta Joana. Um estudo feito pelo Laboratório de Estudos de Internet da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) revela que entre 2018 e 2024, 137 canais no Youtube pregaram diferentes discursos de ódio contra mulheres e ganharam dinheiro com isso — com vendas de livros, cursos e monetização dos próprios vídeos.
Vídeos com discursos de ódio semelhantes também são fáceis de serem encontrados no Tiktok, e, muitas vezes, são impulsionados pelo próprio algoritmo. Daniel acredita também que as redes sociais dão voz para as pessoas, inclusive para o mal, e “tem situações que a pessoa nem acha que é uma reação exagerada, mas quer fazer a pessoa se sentir mal”.
Apesar do lado negativo, a internet também se torna um local para criação de comunidades em torno de um gosto comum. Joana reforça que, mesmo com o lado ruim, “as redes também são um ambiente de potência para alguns nichos, para produção de conteúdo dos fãs”. Um exemplo disso é a criação de conteúdo para as redes sociais, que aproxima pessoas, geram entretenimento e favorecem a socialização entre torcedores de diferentes localidades.
Lívia decidiu começar a produzir conteúdo em busca de experiência profissional, mas também de ter pessoas para conversar sobre o tema. “Eu não tinha nenhuma amiga ou amigo que gostasse do automobilismo, então eu queria muito falar sobre alguma coisa, mas não tinha com quem conversar. Então criei o perfil para falar sobre as coisas que eu gosto”, explica a estudante. A partir desse trabalho nas redes, Lívia conseguiu uma oportunidade em um site especializado. Ela já cobriu in loco o campeonato mundial de endurance, WEC, em São Paulo e conseguiu entrevistar o piloto Mick Schumacher, filho da lenda da Fórmula 1 Michael Schumacher.
Hoje, Lívia conta com quase mil seguidores no Instagram que a acompanham diariamente. “Eu conheci muita gente que realmente me ajudou muito tanto para produzir quanto para acompanhar o meu trabalho. As pessoas apoiam minhas postagens, divulgam o que eu posto, então é legal para todo mundo”. Além dela, várias outras meninas se dedicam à produção de conteúdo e para criar um ambiente acolhedor e inclusivo para outras meninas que acompanham esportes, como o automobilismo.
Malu Koerich também produz conteúdos para o Instagram e Tiktok sobre automobilismo, mas com associações ao mundo feminino, para que mais meninas consigam entender sobre o esporte e com coisas próximas ao dia-a-dia delas, como maquiagem e divas pop. “Eu criei essa plataforma para ser uma plataforma de acolhimento. Quero que as meninas entrem nos comentários dos meus vídeos e tirem dúvidas, criem grupos de amigas porque gostam do mesmo piloto ou equipe”.
Muitas mulheres hoje também são criadoras de conteúdo de Fórmula 1 e hoje formam uma comunidade que se apoia e incentiva nas redes. Malu reforça que, para que mais mulheres tenham espaço e oportunidades de parcerias e trabalhos grandes com marcas e equipes, é importante que todas se ajudem e deem palco umas às outras.
“Se a gente quer mais mulheres recebendo essas oportunidades, a gente tem que dar palco para essas mulheres. Então a gente tem que crescer o conteúdo delas, a gente tem que colocar elas em pauta, porque não adianta nada a gente reclamar que não tem meninas tendo tantas parcerias e oportunidades, se a gente não fornece para elas a oportunidade de ter esse destaque”.