Brasil tem 23 milhões de aposentados, mas benefício nem sempre é suficiente para cobrir todos os gastos e se torna uma forma de complementar renda
Por Clarice Viana
Na Rua Visconde do Rio Branco, número 11, centro de Niterói, uma senhora segue a mesma rotina 3 vezes por semana: chega às 7h40 da manhã, vai à padaria comprar pão, faz café para todos do prédio, e começa a se preparar para limpar o local. Copeira há 24 anos, a funcionária sai do trabalho às 17h e, quando chega em casa, precisa fazer tarefas domésticas e cuidar do seu filho. Zuleide de Oliveira, carinhosamente apelidada de “Zuzu” pelos outros funcionários do local, tem 69 anos, trabalha na Secretaria de Conservação e Serviços Públicos de Niterói (SECONSER) e se aposentou com 60 anos, mas nunca parou de trabalhar. Assim como ela, no Brasil, outros diversos aposentados continuam trabalhando mesmo após a conquista da aposentadoria.
De acordo com o Sistema Único de Informações de Benefício (Suibe), o Brasil possui 23 milhões de aposentados. Segundo ele, quase 70% dos estados brasileiros possuem moradores dependentes de benefícios pagos pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que o número de beneficiários da Previdência pode dobrar até 2060, chegando a 60 milhões, enquanto o número de contribuintes tende a diminuir. Em 2022, o número de trabalhadores que contribuiam para o INSS era de 61,8 milhões. Em 2060, a estimativa é de que esse número caia para 57,2 milhões.
Zuleide, antes de trabalhar na SECONSER, foi gari da Companhia Municipal de Limpeza Urbana de Niterói (CLIN). Mesmo tendo se aposentado há quase uma década, a senhora nunca pôde parar de trabalhar, pois o valor recebido não é suficiente para cobrir todas as suas despesas essenciais. “Está difícil, só a aposentadoria não dá, infelizmente não tem como eu parar de trabalhar”, contou a copeira.
Dentro do seu lar, além da responsabilidade pela limpeza, Zuzu possui outro afazer: cuidar do filho de 45 anos. Carlos, chamado de Carlinhos pela mãe, é diagnosticado com esquizofrenia desde os 21 anos, e antes do diagnóstico, serviu ao exército. Após receber o laudo, ainda se formou em contabilidade. No entanto, o quadro do transtorno evoluiu e fez com que o jovem ficasse incapacitado de trabalhar. Apesar do reconhecimento pelos médicos do distúrbio de esquizofrenia de Carlinhos, o rapaz não conseguiu a aposentadoria por invalidez, mas recebia um auxílio do governo: o BPC LOAS. No entanto, esse benefício foi cortado há cerca de quatro anos atrás, e ele não consegue auxiliar Zuleide com os custos de casa. “Quando o auxílio foi retirado eu já recebia o valor da aposentadoria e o meu salário, daí alegaram que eu tinha duas rendas e por isso eu conseguia manter nós dois”, contou a mãe do jovem.
O BPC LOAS é um auxílio oferecido a pessoas idosas e/ou pessoas deficientes de baixa renda. O valor recebido é de um salário mínimo e, para ser aprovado, a renda por pessoa do grupo familiar deve ser igual ou menor que ¼ desse valor. Atualmente, o salário mínimo é de R$1.412. Logo, para receber o benefício, a renda por pessoa deveria ser menor ou até R$353.
Segundo Victor Leonardo de Araújo, economista e professor de Economia da UFF, o principal fator que leva os aposentados a continuarem trabalhando é o valor recebido. “O baixo valor das aposentadorias faz com que o trabalhador encare o dinheiro como uma complementação de renda, então ele se aposenta e continua trabalhando para dispor de uma renda adicional”. O pesquisador conta que, como consequência disso, o propósito da aposentadoria é deturpado. “Isso, na verdade, é uma perversão do próprio conceito de aposentadoria, uma vez que a ideia dela é prover uma renda para o trabalhador quando ele perde suas condições laborais”, compartilhou.
Uma pesquisa realizada pelo Serasa em 2023 apontou que 70% dos idosos consideram o dinheiro da aposentadoria insuficiente para viver. Dos entrevistados, 58% afirmam que não se prepararam financeiramente para a terceira idade e um terço deles está usando reservas financeiras que fizeram durante a vida. Em 2024, um outro estudo da mesma empresa revelou que 60% dos brasileiros aposentados continuam trabalhando, e 6 em cada 10 dos participantes da pesquisa observaram uma queda no seu padrão de vida.
Não existem leis que proíbam aposentados de trabalharem ou uma legislação que incentive os empregadores a contratarem estes trabalhadores. De acordo com José Lucas Paixão, advogado trabalhista e previdenciário, existem seis tipos de aposentadoria: aposentadoria por idade, que se subdivide em aposentadoria por idade urbana, rural e híbrida; aposentadoria especial; aposentadoria por invalidez; aposentadoria por tempo de contribuição; aposentadoria do professor e aposentadoria da pessoa com deficiência. “Com exceção da aposentadoria por invalidez (incapacidade permanente) e aposentadoria especial, a legislação não impõe outras proibições para quem se aposenta continuar trabalhando. Mas algumas mudanças acontecem”, conta o advogado.
Um aposentado que continua a exercer atividade laboral possui o mesmo direito a férias, hora extra e 13° que seus colegas de trabalho, deve continuar contribuindo para o INSS e pode sacar seu FGTS mensalmente ou deixar acumular, desde que continue na mesma empresa. No entanto, esse trabalhador precisa ficar atento a alguns fatores: “Um aposentado pode perder seu direito a alguns benefícios, como auxílio acidente. Além disso, aqueles que possuem aposentadoria por idade devem monitorar a remuneração recebida, pois o benefício pode ser suspenso ou reduzido se ultrapassar o teto da Previdência Social”, compartilhou José Lucas.
Em outro canto do país, no interior do estado do Maranhão, um homem tem uma rotina diferente da de Zuleide, mas as situações se assemelham. Enquanto a niteroiense pega a condução para chegar às 7h40 no trabalho, um maranhense trabalha no turno da tarde na Secretaria Estadual de Educação. Coordenador pedagógico, Antonio de Pádua tem 71 anos e, assim como Zuleide, é aposentado, mas não teve a chance de parar de trabalhar. Antes de ser coordenador pedagógico, o idoso foi professor estadual do Centro de Ensino Raimundo Soares da Cunha, em Imperatriz do Maranhão. Com 30 anos de contribuição cumpridos, Antonio se aposentou das atividades laborais com 68 anos, em 2022. “Antes de me aposentar, eu trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Pela manhã, eu trabalhava na escola pública, de tarde na Secretaria e pela noite no setor privado, na FEST [universidade privada do Maranhão]. Eu tenho três filhos que ainda estudam, e a renda apenas da aposentadoria não é suficiente para custear as despesas”, contou o educador.
Após se aposentar do trabalho como professor estadual, Antônio saiu do cargo que ocupava no setor privado e continuou atuando apenas como coordenador pedagógico, agora, apenas no turno da tarde. Ainda assim, a rotina permanece desgastante. “Antes era mais prazeroso e tranquilo trabalhar, mas agora, tem se tornado algo cansativo. Se eu pudesse, pararia de trabalhar hoje tranquilamente, mas não posso. Pretendo parar aos 71 ou 72 anos”, finalizou o educador.
Apesar das origens, trajetórias e carreiras diferentes, Antônio e Zuleide compartilham de um desejo em comum: descansar de uma longa jornada de trabalho, que deveria ter sido encerrada ao completar 30 anos no mercado. No entanto, a realidade do país não os deu outra escolha a não ser permanecer trabalhando.
Quando uma empresa contrata uma pessoa idosa para trabalhar, algumas adaptações devem ser feitas no ambiente profissional para entregar melhores condições para esse funcionário, uma vez que, por conta da idade avançada, ela tem algumas capacidades reduzidas, segundo a psicóloga Michele Moucherek. “Quando envelhecemos, nós temos mudanças sensoriais, como alterações na visão e na audição. Por isso, é preciso fazer ajustes no local de trabalho com relação à iluminação e redução de ruído”. Ainda segundo a profissional, o idoso também enfrenta mudanças cognitivas. Por esse motivo, tarefas que exigem um raciocínio mais ágil podem ser mais difíceis para um funcionário que está na terceira idade.
No entanto, apesar das limitações físicas, as pessoas da terceira idade têm outras habilidades para oferecer. “Existe todo um acúmulo de conhecimento, de expertise, que precisa ser considerado a respeito desse sujeito que ainda trabalha. E apesar de ter dificuldades, às vezes, com a memória de trabalho, essa pessoa tem uma memória de longo prazo que é incrível, tem um histórico que pode ser resgatado a partir de seu conhecimento”, afirmou Michele.
O trabalho como complemento de renda e ferramenta para manutenção do bem-estar
Iraceli de Sousa tem 57 anos, é de Imperatriz do Maranhão, trabalha como comerciante e é aposentada, mas, assim como Zuleide e Antônio, ela continua trabalhando. No entanto, além do complemento de renda, um outro fator a influenciou a permanecer exercendo atividades laborais: a necessidade de se movimentar e a idade jovem com a qual se aposentou. Com 57 anos, a proprietária do “Mercantil Júlia”, ainda não é considerada idosa, uma vez que a terceira idade se inicia a partir dos 60 anos. No entanto, ela já conquistou a sua aposentadoria: Iraceli se aposentou por contribuição, cumprindo 30 anos. A aposentada começou a trabalhar com 18 anos e, aos 48, já estava apta para se aposentar. A maranhense se aposentou há nove anos atrás, em 2016, quando a idade de aposentadoria ainda era de 55 anos. Apesar de preencher o requisito dos anos de contribuição, ela não atendia aos critérios de idade e, por isso, Iraceli recebe apenas 60% do valor que poderia receber caso se aposentasse com 55 anos.
A imperatrizense é formada em Ciências Econômicas e, antes de ser comerciante, trabalhou na Caixa Econômica. Mesmo depois de conquistar a aposentadoria, ela escolheu não parar de trabalhar por dois motivos. “Na época, meus filhos ainda eram pequenos e eu me sentia muito nova para parar de trabalhar. Por conta dos meninos ainda serem crianças, eu queria ter uma renda maior para poder dar para eles mais do que só alimentação, mas também não queria ficar parada só cuidando deles”.
Segundo ela, o valor que recebe da previdência é suficiente para as contas essenciais, como luz, água e comida, mas ela desejava mais que isso para os filhos. “Eu queria poder proporcionar uma vida mais confortável para eles, por isso continuei trabalhando”, compartilhou. Atualmente, ela conta que planeja parar de trabalhar, mas ainda é um plano em construção. “Minha rotina do dia a dia não é algo que me sufoca, pois o meu negócio não exige muito de mim, já que não quero que ele cresça e tenha muitos funcionários. Sou só eu que trabalho aqui [no mercantil]. Hoje eu não quero parar de trabalhar, e eu penso que ainda consigo ficar mais três ou quatro anos assim. Quando eu chegar aos 60 ou 61 anos, aí sim penso em me organizar para me aquietar”, finalizou.
Assim como Iraceli, outros aposentados escolhem não parar de trabalhar, não só por necessidade, mas por sentirem que não estão prontos para abdicar desta rotina. Segundo o IBGE, pessoas idosas são as maiores afetadas pela depressão. A pesquisa, divulgada em 2019, apontou que o transtorno atinge 13% da população entre 60 e 64 anos. Esse transtorno é causado em pessoas da terceira idade principalmente pela solidão, assim como também pelo sentimento de inutilidade e inércia, que afeta muitos dos idosos que se aposentaram e não exercem mais atividades laborais. Nesse momento, o trabalho entra como uma ferramenta para a manutenção das interações sociais do idoso e também da autoestima, do senso de propósito. “As pessoas encontram um propósito, um significado no seu trabalho e isso pode ser perdido com a aposentadoria. Então, continuar trabalhando ajuda essas pessoas a manter esse senso. É por isso que muitos idosos se recusam a parar de trabalhar, porque eles precisam desse senso de utilidade. Socialmente a gente tem como valor o trabalho. Se você não trabalha, não é produtivo, que significado você tem?”, disse Michele.
Reforma da previdência
Em janeiro de 2024, a Previdência Social do Brasil completou 101 anos de existência. Desde sua criação, foram onze reformas até o sistema que temos hoje. O primeiro passo para a aposentadoria no Brasil foi dado em 1923, através da Lei Eloy Chaves, estabelecida durante a presidência de Artur Bernardes (1922-1926). Essa legislação criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões para os trabalhadores do setor ferroviário e, para se aposentar, era necessário ter 50 anos de idade e 30 anos de contribuição. Um detalhe intrínseco às CAPS é que a gestão da previdência era feita pelo setor privado: um conselho composto pelos empregadores e empregados era o responsável por gerir a previdência.
O valor da aposentadoria era menor que o recebido pelo trabalho ativo antes da aposentadoria. Na época, ainda não existiam as leis trabalhistas que garantissem ao trabalhador o direito a pagamento por hora extra noturna, auxílio médico e férias. Esses direitos foram aprovados 15 anos depois, durante a ditadura do Estado Novo. A Previdência Social foi reconhecida oficialmente como um direito de todos os cidadãos em 1988, com a promulgação da Constituição Brasileira.
Em 1930, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi criado, durante a Era Vargas. A partir desse momento, o CAPS é extinto, Vargas cria os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), o fundo previdenciário não é mais gerido pela iniciativa privada, e o Estado começa a tomar conta. Em 1988, a Constituição usa o termo “Seguridade Social” para englobar ações de saúde, previdência social e assistência. Desde então, a previdência passou por diversas reformas.
A primeira mudança nesse sistema aconteceu em 1991, durante o governo Collor (1990-1992). O ex-presidente estabeleceu que o valor da aposentadoria deveria levar a correção monetária em conta. Ou seja, o valor da aposentadoria deveria ser pago de forma atualizada, considerando a inflação do país. A segunda alteração significativa foi feita por FHC (1995-2002), com a criação de idade mínima para funcionários públicos se aposentarem: 48 anos para mulheres e 53 anos para homens. Além disso, ele também criou o fator previdenciário, um cálculo que leva em conta a idade da pessoa que deseja se aposentar, o tempo de contribuição dela para o INSS e a expectativa de sobrevida da população. Na prática, essa variável foi estabelecida para desestimular a aposentadoria precoce, uma vez que reduz o valor que será recebido.
No decorrer do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma terceira alteração foi feita na previdência. Dessa vez, ela foi direcionada para os servidores federais. De 48 anos para mulheres e 53 anos para homens, agora, a idade mínima passa a ser 55 anos para mulheres e 60 anos para homens. A aposentadoria integral, com o último salário, também foi restringida, e o valor passou a ser calculado com a média da contribuição para a Previdência. Durante o governo Dilma (2010-2016), a presidente realizou uma alteração na soma das idades da previdência, criando a chamada “regra 85/95 progressiva”. Para se aposentar pelo valor integral, uma mulher precisaria acumular 85 pontos, com a soma dos anos de contribuição e idade, enquanto os homens precisariam alcançar 95 pontos. Em 2019, esse valor progrediu para 86/96.
A nova Reforma, proposta pelo PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), foi aprovada em 2019. O texto estabelece mudanças nos tempos de contribuição, na aposentadoria por idade, nas aposentadorias de servidores públicos e na regra 86/96, que começaram a valer a partir do ano de 2024.
O que muda com a nova Reforma da Previdência:
- Tempo de contribuição: A soma da idade e do tempo de contribuição, para mulheres, deve ser de 91 pontos. Para os homens, o número alcançado deve ser 101. Para os servidores públicos homens, a idade mínima é de 62 anos e 35 anos de contribuição. Para mulheres, 57 anos de idade e 30 de contribuição, com 20 anos de serviço público e 5 anos no cargo em que está se aposentando.
- Idade mínima: A idade mínima para trabalhadores que contribuíram pouco para a previdência subiu para 65 para homens e 62 para mulheres, com o mínimo de contribuição de 15 anos.
Para o economista Victor Leonardo, a reforma da previdência foi danosa para a população brasileira. “Até então, o cálculo da aposentadoria levava em consideração a média dos 80% maiores salários, e a Reforma da Previdência de 2019 instituiu a média dos 100% dos salários no cálculo do benefício. Então isso reduz o valor da aposentadoria. Eu não vejo nenhuma mudança positiva nas mudanças aprovadas em 2019”, compartilhou o professor. Segundo o estudiosos, para que a previdência do Brasil atenda a todos os beneficiários de forma que eles não precisem voltar para o mercado de trabalho, o primeiro passo é reajustar o salário mínimo acima da inflação. “Isso é muito importante, porque o salário mínimo constitui o piso previdenciário no país, então isso contribuiria bastante, mas não é só isso. A gente também teria que ter novas formas de cálculo do valor do benefício para que o trabalhador, no momento em que vai se aposentar, não tenha tantas perdas na renda”, finalizou o professor.