A realidade de quem depende dos ônibus nas capitais brasileiras ainda é marcada por trânsito e cansaço

Por Yana Flávia

De segunda a sexta, o alarme de Jamile Santos toca às 7h30. A moradora do bairro Barra do Ceará, em Fortaleza, tem que estar às 8h30 na parada de ônibus, com o vale transporte em mãos, esperando o coletivo que a levará até um dos terminais da cidade. Lá, pega outro ônibus para chegar no trabalho, na Aldeota, no leste da capital cearense. São cerca de 1h30min de deslocamento até o endereço da empresa, que fica a 10,3 quilômetros de sua residência. Na volta para casa, mais 1 hora. De acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT), publicada em agosto deste ano, o tempo médio para percorrer 10 quilômetros em uma capital brasileira pode chegar a 58 minutos. Para quem utiliza ônibus, esse tempo pode ser ainda maior.

Ainda de acordo com o levantamento, 52,7% dos brasileiros, assim como Jamile, têm esse transporte como principal alternativa para se locomover no cotidiano. Os ônibus possibilitam que as pessoas acessem oportunidades de emprego, estudo e lazer. Mas o tempo excessivo gasto dentro deles resulta em uma rotina corrida e com menos descanso. “O tempo de deslocamento é muito estressante”, afirma Jamile, que cursava Publicidade e Propaganda presencialmente e mudou para a modalidade à distância, porque ir até a faculdade tornou-se impraticável para ela. “Eu saía mais de 22h da faculdade e depois ainda tinha que passar pelo terminal para chegar em casa”, explica.

Em Fortaleza, os ônibus são responsáveis pelo deslocamento da maioria da população, pois os transportes sobre trilhos (metrô e VLT) ainda não abrangem grande parte da cidade. Foto: Yana Flávia

Mesmo em uma cidade como o Rio de Janeiro, que tem diversas opções de transportes públicos — como metrô, VLT e barca — os ônibus ainda são escolhidos pela população. É o caso de Laryssa Leite, que mora em Nova Iguaçu, na Região Metropolitana do Rio. Ela conta que perde 4 horas do dia para ir e voltar da universidade, que fica em Botafogo, na capital fluminense. “Quando o trânsito está pior, esse tempo aumenta”, afirma a estudante. O trajeto, de aproximadamente 46km, poderia ser ainda mais demorado se não existisse a faixa seletiva de ônibus da Avenida Brasil, que é de uso exclusivo de coletivos em dias úteis, de 5h às 10h, e de 16h às 20h. “Antes da faixa, eu chegava a demorar 3 horas para chegar na faculdade”, conta.

Tem que ter vontade política

Os modais ferroviários frequentemente aparecem como sugestão para melhorar a mobilidade urbana, principalmente por não serem reféns do trânsito. Porém, de acordo com um balanço feito em 2023 pela Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), apenas 11 capitais brasileiras possuem metrô, trem, veículo leve sobre trilhos (VLT), monotrilho ou people mover. Manaus, assim como todas as outras cidades da região Norte, não conta com nenhum desses modais. Mesmo com 2 milhõs de habitantes, a capital do Amazonas só tem opções rodoviárias para se locomover no cotidiano. Lucas Corrêa, que nasceu e vive na cidade até hoje, relata que atrasos e viagens demoradas são comuns. “Se tivesse metrô ligando, pelo menos, cada zona ao centro, já seria excelente. Eu não usaria carro para ir a algum lugar que desse para ir de metrô”, completou o servidor público.

Mapeamento do CNT expõe baixa presença de modais sobre trilhos no Brasil. Infográfico: CNT

O gerente de desenvolvimento urbano do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), Iuri Moura, explicou que fatores distintos podem explicar a ausência de transporte sobre trilhos nas capitais do país. “Esses sistemas demandam um volume de investimento elevado, capacidade de planejamento e desenvolvimento de bons projetos para alcançar os recursos necessários” , contou o especialista. Em cidades que ainda têm dificuldade de criar uma faixa exclusiva para circulação de coletivos — como Manaus que, desde 2016, tenta implantar a medida — o sonho de possuir mais de um meio de transporte público parece distante.

Iuri pontua ainda que é preciso avaliar a demanda dos usuários e as características do local, buscando alternativas adequadas ao contexto. “Pode ser que não seja preciso adotar modais sob trilhos. Uma solução que é implementada em outra capital não necessariamente se adequa à realidade de Manaus ou de outra metrópole”, explica o mestre em engenharia urbana e ambiental.

Jamile acredita que aumentar a quantidade de ônibus em circulação diminuiria o tempo perdido ao ter que se deslocar. Ela citou um exemplo que ocorreu no dia anterior ao da entrevista, em que saiu do trabalho às 17h e o coletivo, que costuma passar por volta de 17:15, chegou 25 minutos depois. “Fiquei todo esse tempo esperando. Deveria ter chegado em casa às 18h e só cheguei às 19h. Então foi 1 hora a mais perdida por conta do atraso do ônibus” explicou a jovem. Já Laryssa enxerga que ampliar a quantidade de faixas exclusivas pela cidade contribuiria para redução do tempo das viagens, além de ter mais opções de transportes indo para pontos de grande interesse da população, como o centro da cidade. A estudante fez outra sugestão em relação aos ônibus: “melhoria nos veículos, porque às vezes acontece de o atraso acontecer porque o coletivo quebrou no caminho”.

Crise de mobilidade

Outro dado observado pela pesquisa do CNT foi o crescimento da porcentagem de pessoas que usam com frequência veículo próprio ou aplicativos de transporte. Em 2017, apenas 1% da população utilizava plataformas como Uber ou 99, mas em 2024 esse número saltou para 11,1%. Lucas Corrêa ilustra os dois casos. “Geralmente vou para o trabalho no meu carro. Quando estou sem, vou de Uber, porque não tem ônibus indo direto de casa para onde eu trabalho”. A viagem que é feita em 8 minutos no veículo individual vai para 35 minutos no coletivo. Do outro lado do país, Pedro, que mora em Natal e é funcionário de teleatendimento, também trocou o ônibus pelo carro. Na ida, o pai vai deixá-lo com o dinheiro do vale-combustível que a empresa de Pedro fornece. No fim do expediente, volta com motorista de aplicativo. “Acabo gastando dinheiro do meu bolso mesmo para pagar a corrida”, contou o teleatendente.

Por mais que pareça uma boa solução, o carro e a moto são uma alternativa pouco eficiente, com diversos impactos negativos no âmbito da segurança, do meio ambiente e da saúde da população. O gerente de desenvolvimento urbano do ITDP avalia que a tendência ao uso do transporte individual é fruto de políticas que deram muita ênfase a esse tipo de transporte. “A gente enfrenta há algumas décadas uma crise de mobilidade em função do uso não racional de carros e motos nas nossas capitais. Se esse processo continuar, a gente vai vivenciar uma piora da crise de mobilidade com maiores perdas para a poulação e para a economia”, explicou Iuri.

“Eu poderia estar descansando”

Transportes precários e viagens longas dificultam a garantia do direito à cidade. Foto: Yana Flávia

Atividades simples, mas que causam bem-estar, são negligenciadas por conta da falta de tempo ou mesmo do cansaço acumulado ao fim do dia. Laryssa disse que, se pudesse diminuir as horas que gasta no transporte, usaria o tempo livre para passar mais tempo com seu filho, de 1 ano, ou fazer algo para si mesma: “eu poderia estar descansando, que vida de mãe é muito trabalhosa”. Já Jamile contou que faria atividade física, pois não consegue encaixar isso na sua rotina atual. O sedentarismo relatado pela estudante também é consequência da falta de planejamento urbano adequado às grandes populações — tanto para quem usa ônibus e não consegue encaixar exercícios no cotidiano, quanto para quem usa carro e moto, em vez de caminhar ou usar bicicleta. Por isso, Iuri argumenta que é preciso “criar uma cidade que seja mais amigável e humana para que as pessoas possam se deslocar a pé e não depender tanto do automóvel”. 

Um olhar diferente para o planejamento das cidades e dos transportes também é defendido nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas, no item 11: “proporcionar acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis e sustentáveis […] com especial atenção para as necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade, mulheres, crianças, pessoas com deficiência e idosos”. Apesar de ser signatário dos ODS, o Brasil ainda não conseguiu cumprir essas medidas nem nas maiores cidades do país. 
Para Iuri, algumas sugestões possíveis para as capitais brasileiras são: dar maior ênfase aos meios sustentáveis e eficientes, como o transporte coletivo, seja ele baseado em trilhos ou em ônibus com vias exclusivas; ampliação da frota, para garantir qualidade de serviço e confiabilidade; e infraestrutura para uso de bicicletas, que são boas para o meio ambiente e para a movimentação do corpo.

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