A diversidade na representação étnica obteve avanços importantes nos últimos anos. Mas ainda há caminho a percorrer, principalmente para pessoas indígenas e amarelas 

Por Douglas Ribeiro

Se o telespectador ligar a televisão hoje, para assistir à novelas inéditas na Rede Globo, em todas verá protagonistas negros. O fato foi notado até mesmo pelo jornal britâncio The Guardian, sob a manchete: “Brasileiros negros reivindicam o horário nobre, enquanto as telenovelas finalmente refletem a diversidade”. No SBT, a atual novela infanto-juvenil A infância de Romeu e Julieta, também conta com um protagonista negro. Esse cenário só ocorre hoje, num país em que as telenovelas já completaram mais de 70 anos.

Esse movimento é algo ainda recente. Hoje, na faixa das seis horas da Globo, Amor Perfeito conta com metade do elenco formado por atores pretos. Em Vai na Fé, atual novela das sete, eles são 70% do elenco. Mas apenas cinco anos atrás, o mesmo The Guardian criticou a telenovela Segundo Sol, exibida no horário nobre da emissora carioca: “Bahia é o estado mais negro do Brasil, mas você não perceberá isso na nova novela da TV”. Somente cinco personagens da trama eram negros.

Em 2015, o jornal britânico já havia destacado a série Mister Brau por mostrar um inédito casal negro e rico no papel principal. O Jornal ainda chamou Taís Araújo e Lázaro Ramos de “Jay Z e Beyoncé do Brasil”.

Nas primeiras décadas de 2000, Lázaro e Taís, casados também na vida real, foram parte dos poucos atores negros com status de estrelas em ascenção. Em 1996 Tais estreou na televisão como Xica da Silva, primeira protagonista negra da Manchete e, naquele momento, a única da TV, desde os anos 60.

Só em 2004, a Globo teve a primeira protagonista negra: Taís Araújo foi a Preta, de Da cor do pecado, novela das 18h de João Emanuel Carneiro, mesmo autor de Segundo Sol. E quando foi a vez do horário nobre ganhar a primeira protagonista negra, a Helena em Viver a Vida, também foi Taís a atriz escalada.

A doutora em comunicação Maria Amélia Abrão, pesquisadora do Centro de Estudos em Telenovela (CETVN), da USP, faz um retrospecto do brasileiro que era visto nas telas. “Eu vejo que há um movimento de buscar representatividade nas telenovelas, principalmente nos últimos três anos. Na década de 90, a representação do brasileiro nas novelas era muito falsa. Você via pessoas majoritariamente brancas. No final da década, as pessoas pretas começam a fazer parte das histórias, mas sempre em papéis secundários. A gente começa a ver uma mudança nos anos 2000 e somente agora, podemos dizer, de fato, que a televisão percebeu que a representatividade de raça e etnia não é branca.”

Essas mudanças, ainda recentes, mostram como a demanda por representatividade tem atingido as empresas produtoras de audiovisual. Para o pesquisador e crítico de TV Nilson Xavier, os avanços são fruto de uma adaptação das empresas à demanda mercadológica.  “A mídia reage ao seu público, e quando o público se conscientiza de seus direitos e situações é a mídia que precisa correr atrás.”

As redes sociais contribuíram ativamente para as mudanças. Para Maria Amélia Abrão, “hoje as marcas estão mais atentas, porque qualquer deslize vai ser amplificado. Antes da internet, quando um grupo não se sentia representado, ou até mesmo agredido, era um caso isolado. Hoje a internet amplificou as vozes dos ativistas. Então a participação popular foi essencial ao pedir mudanças, querer se ver na tela.”

A pesquisadora aponta ainda que a luta para a inserção de elencos negros foi longa, mas a diversidade etnica brasileira ainda não está consolidada na teledramaturgia: “Daqui pra frente é uma reivindicação que precisa ser constante, não só uma novela aqui e outra ali. Mas, ainda há uma luta muito grande para outros grupos. Se pensarmos nos asiáticos e nos indígenas, existe um apagamento histórico e um caminho ainda longo para que haja de fato uma representatividade eficiente de grupos étnico raciais”.

Representatividade: Questão de sentir

O doutor em mídia e cotidiano Pedro Henrique Conceição entende que representatividade é diferente da simples representação de alguém na tela. Para ele, o conceito está relacionado com as sensações que a representação desperta em quem assiste. “A representatividade é um sentimento estético, mas também político. Existe essa esfera mais quantitativa, de quantas pessoas há na tv, mas também existe a esfera qualitativa de quais são as categorias políticas que essas pessoas estão sendo representadas. ”

Thaís Pontes é roteirista na TV Globo e criadora da série Encantado’s, junto da roteirista Renata Andrade, sua amiga há mais de 25 anos. Taís conta que sempre foi fã de televisão e antes do twitter era pelo telefone que ela e Renata comentavam os assuntos da tv. A roteirista reflete sobre como a televisão pode ser importante para apresentar possibilidades às novas gerações:

“A gente dificilmente se via na televisão. Apenas em caixinhas, lugares muito limitados. A empregada, o escravizado, cenários de violência, prostituição. Na favela não tem só violência, mas isso vende. Era comum ver mulher negra na televisão como empregada e eu olhava para o lado e minha mãe também era. Por isso eu acho muito importante esse movimento de criação de novos imaginários. Hoje em dia, crianças e adolescentes podem se ver na televisão de outras formas”.

No ano passado, Rudson Martins entrou para o time de produtores de elenco da rede Globo. Ele é a primeira pessoa negra nessa posição. Para Thaís o momento da escalação de elenco é uma das evidências de mudança:

“Geralmente, quando as pessoas escreviam um roteiro e queriam que algum ator fosse negro tinham que colocar negro entre parênteses. No Encantado’s, como a maioria do elenco é negro, as vezes preciso colocar branco entre parenteses. Então todas as vezes que coloco esses parênteses sei que venci de alguma forma e conseguimos dar uma quebrada no sistema.”

Personagens pretos: Um olhar para o passado

Hoje, em Amor Perfeito, Diogo Almeida interpreta o médico Orlando. Já em Vai na fé, Samuel de Assis interpreta o advogado Benjamim. Ambos são personagens negros e bem suscedidos. Em 1975, o ator Milton Gonçalves também interpretou um doutor: o psiquiatra Percival, em Pecado Capital, de Janete Clair. Mas, naquele momento, o perfil do personagem foi uma novidade em sua carreira. O papel só chegou após Milton pedir para interpretar alguém que usasse terno, gravata e tivesse todos os dentes.

A roteirista Tais Pontes, destaca a presença da atriz Neuza Borges no elenco da série Encantado’s: “Ela é a história da televisão. Na equipe, fazemos questão de chamá-la de dona Neuza Borges. Assim como outras grandes atrizes são tratadas assim, como dona Fernanda Montenegro e dona Laura Cardoso. Ela é uma mulher que trabalha há 65 anos na televisão e não tem o devido reconhecimento. Assim como dona Léa Garcia, uma mulher de 90 anos, que é a televisão”. 

Para Léa, Thaís Pontes escreveu a peça Mãe Baiana. “Quando conversamos, ela me diz que só agora, depois de velha, está recebendo reconhecimento. Quantas atrizes negras morreram sem isso? Dona Xica Xavier fazia papéis pequenos. São grandes damas da televisão que não tiveram muitas oportunidades por conta da cor”

Em 1964, a tv Tupi exibia “O Direito de Nascer”. Na trama, a atriz Isaura Bruno, intrepretava mamãe Dolores. A personagem hoje é vista como representante do estereótipo de mommie (empregadas domésticas negras com índole maternal e zelo aos patrões), mas naquele momento ela era a primeira atriz negra com um papel de destaque em telenovelas. Esse legado do pioneirismo de Isaura pode ser lembrado hoje, mas para ela foi apenas algo que ficou em seu passado. Trabalhou em televisão nos cinco anos seguintes até os papéis rarearam. Isaura terminou os dias vendendo doces pelas ruas de Campinas.

No ano seguinte à estreia de “O Direito de Nascer”, a Tupi lançou “A cor de sua pele”. O conflito central era um relacionamento interracial. Dessa vez, havia uma atriz negra como a mocinha da história: Yolanda Braga interpretou Clotilde, uma empregada doméstica que vive um romance com o patrão. Yolanda tinha olhos verdes, negra de pele clara, e foi destacada pela imprensa do período como mulata e morena jambo.

Na época, em entrevista à Revista Intervalo, Yolanda afirmou: “A minha atuação em A cor da tua pele pode abrir muitas portas para as pessoas de côr na televisão. Não há necessidade de atrizes brancas pintarem o rosto para interpretarem gente de côr. Nós mesmas podemos fazê-lo, e melhor do que ninguém.”

A prática, destacada por Yolanda na entrevista, de atores brancos pintarem o rosto para parecerem negros passou a ser conhecida como blackface. Um dos casos mais emblemáticos aconteceu em “A cabana do Pai Tomás”, em 1969. A trama era protagonizada por Ruth de Souza, atriz negra, e Sérgio Cardoso, ator branco, que se caracterizava para viver o Pai Tomás. Na época, Cardoso já era um ator prestigiado. A sua escolha para protagonizar a história foi solicitada pela Colgate-Palmolive, patrocinadora do horário. A escalação, impensável hoje, gerou repercussões naquele momento. O cenário da novela se passava na Guerra de Secessão, nos EUA, e além do protagonista negro, Sergio interpretava um personagem chamado Dimitrius e o própio Abraham Lincon. 

Na revista Intervalo, o ator Plínio Marcos afirmou de forma dura: “Então o panaca do Sérgio faz o pai Tomás, o Lincoln e não sei mais quem, só lavando e tingindo a cara, e bons atôres negros ficam esquecidos, desprestigiados, a perigo? Tá aí o ótimo Milton Gonçalves dando uma de cômico na televisão, porque acham preto ótimo pra fazer graça. Só. Tem também o Bené Silva, o Samuel, o Dalmo Ferreira, o Carlos Caxambu, todos sem oportunidade de mostrar o que sabem fazer.”

Ainda os primeiros

Em Encantado’s Luis Miranda e Vilma Melo, que interpretam os irmãos Olímpia e Eraldo, são protagonistas pela primeira vez na tv. Vilma Melo, inclusive, foi a primeira atriz negra a ganhar o prêmio Shell de teatro. “Estamos falando de primeiros. Isso é muito bom e muito triste”, pondera Thaís Pontes, criadora da série.

Para Yumo Apurinã, ator de origem indígena, o tempo dos pioneirismos também precisa terminar. “Eu acho que quanto mais a gente falar e dar visibilidade a outros corpos vamos começar a questionar o que nós somos também. Eu demorei a entender que eu sou ator, porque eu não tive uma referência. Eu ficava pensando: que atores vão ser minha família em cinema, televisão e teatro? Eu não quero ser só o adotado. Por muito tempo, a Globo usou Lázaro Ramos e Taís Araújo como os únicos atores pretos”. 

Pensando na representação indígena, Yumo reflete: “Se eu ou qualquer outro parente consegue um lugar de visibilidade, essa ideia de primeiro e único precisa acabar. Chega de primeiros, de únicos, chega do topo. Se existe um topo existe uma base.”

A televisão e os povos originários

A novela exibida atualmente no horário nobre da rede Globo traz um núcleo de povos originários, da etnia Guató. Quebrando um paradigma que foi comum durante muito tempo, os atores que interpretam os personagens, são, de fato, indígenas. O pajé Jurucê é vivido por Daniel Munduruku, autor de mais de 50 livros infanto-juvenis, com temas da cultura indígena.

Apesar da ação positiva na escalação de elenco, a novela enfrenta a controvérsia de trazer a questão indígena numa obra que, ao mesmo tempo, é protagonizada por fazendeiros. A heroína, vivida por Bárbara Reis, atriz negra, é uma mulher que sonha em ser uma produtora rural bem sucedida. A trama ainda está no começo e resta saber como a história dos personagens do povo Guató irá se desenvolver daqui para frente e se produções futuras apresentarão novos personagens indígenas.

Yumo Apurinã é ator, natural de Rondônia e tem origem indígena, no povo Apurinã. Para ele, há um esforço de representatividade, mas ainda está muito devagar. Mesmo interpretados por atores indígenas, os personagens da novela das nove ainda estão subvalorizados. “Servem totalmente de escada para os protagonistas. Mudam os atores, mas estão no mesmo contexto. A figura que o Daniel Munduruku está representando eu já conheço. Eu quero assistir ele em outros lugares”.

Para Apurinã, a arte tem um poder transformador e espera ver os povos originários em contextos diferentes. “Eu quero ver os meus em outros lugares. Não necessariamente de protagonismo, mas de narrativas diferentes. Eu quero poder sonhar com outras possibilidades. Quero ver um personagem indígena sonhando, simplesmente existindo, vivendo um romance, ou um conflito que não seja somente de identidade ou território, embora isso nos atravesse muito.”

Yumo destaca o especial Falas da Terra, exibido em abril, também pela Rede Globo, como um exemplo positivo de uma narrativa diferente para personagens indígenas. Na história, protagonizada pelas atrizes indígenas Ellie Makuxi, Dandara Queiroz e Isabela Santana, elas vão à floresta para produzir um clipe para a personagem de Dandara, que é rapper. “A questão de território atravessou as personagens, mas, pela primeira vez, eu vi três jovens atrizes indígenas sorrindo, gravando um clipe e isso já é uma mudança. Eu queria mais produtos dessa forma”, destacou.

“O imaginário da sociedade brasileira está muito limitado. A maior parte da população pensa muito no “índio” e não pensa nos povos originários daqui. É sempre o índio da Amazônia, lá com sua tribo. Nosso maior produto de audiovisual é a novela, todos são apaixonados, do interior à grande metrópole. As pessoas na aldeia também assistem novela. Quando a gente começa a criar novas narrativas nessas produções que são consumidas por grande parte do público, a gente vai começar a discutir e criar novos imaginários,” conclui.

A mestre em comunicação e pesquisadora da presença do indígena na ficção audiovisual, Vívian Carvalho, pondera que os discursos, sobre o indígena, propagados na teledramaturgia ao longo dos anos, não são ações isoladas de diretores, mas estão enraizadas no pensamento da sociedade: “A sociedade pensa assim e o diretor, inserido nessa sociedade, coloca o indígena como alguém que não sabe se comunicar, uma pessoa que vive numa floresta distante, parado no tempo. Esses discursos estão instituídos em nós, não indígenas, e reverberam nas tramas das telenovelas.”

A pesquisadora menciona como os estereótipos reverberam no senso-comum. “Eu analiso muitos filmes indígenas que estão no YouTube e vejo, na sessão de comentários, esse tipo de discurso, de que a personagem perdeu as suas raízes porque  está usando uma roupa de marca ou qualquer coisa que não indígenas também usam. Então tem sempre uma ideia de que o indígena é um ser cristalizado, parado no tempo e se ele mudar, se ele fizer coisas do ambiente urbano, ele deixa de ser indígena”.

A linguagem dos personagens indígenas também é destacada pela pesquisadora como um estereótipo muito comum ao longo dos anos: “Um discurso regular em várias novelas é a ideia de que o indígena é uma pessoa que não sabe se comunicar e por isso não aprofunda as conversas. Isso despreza todas as mais de 200 línguas nativas que existem no Brasil. Muitas histórias com indígenas constroem a ideia de um sujeito bobo, que só pode falar coisas simples. Algo presente em novelas da década de 70, como Aritana, e também em Uga-Uga e Alma Gêmea, já dos anos 2000, onde a Serena era alguém infantilizada e excessivamente bondosa”, conclui.

O cacique Aritana Yawalapiti inspirou o nome do personagem homônimo, da novela de 1978. Na época, o jornal Cena Brasileira: Subúrbio Carioca publicou uma declaração da liderança sobre o personagem inspirado nele. “Aquele Aritana lá é uma criança boba e não um índio orgulhoso e forte como devia ser”.

Por trás das telas

A presença de atores de origem indígena no horário nobre, e a exibição de produtos como Falas da Terra pode ser um embrião para a quebra de estereótipos, mas para o ator Yumo Apurinã, essa inclusão precisa estar também por trás das telas. “Não adianta escalar atores indígenas, se no figurino, na escrita, na direção, não tem pessoas assim. É preciso haver outros lugares de inclusão”.

Essa é uma demanda comum a outros grupos que lutam por representatividade.  Marcos Miura é um ator de ascendência asiática e menciona que em roteiros sem a indicação de etnia a produção costuma pensar em atores brancos:

“Geralmente os atores amarelos só fazem testes se no roteiro está escrito: ator amarelo ou ator japonês, ou ator asiático. Por isso é muito importante termos roteiristas amarelos que escrevam personagens amarelos. Eu sei que tem produtores de elenco que já têm a consciência de buscar mais diversidade e negociam com a direção, mas, muitas vezes, quem define não é o produtor, mas sim o diretor ou roteirista.”

O Brasil também é Amarelo

No ano passado, a repercussão nas redes sociais fez com que uma cena de Cara e Coragem, novela das 19h pela Globo, não fosse ao ar. Na cena, os personagens que, na história, trabalhavam como dublês, estavam num cenário de temática oriental, mas os atores para quem os personagens iriam executar o trabalho de dublês, não possuíam ascendência asiática. O anúncio da cena, que iria ao ar em breve, repercutiu e motivou a sua retirada.

Esse caso mostra o crescimento do  movimento amarelo no Brasil. Apenas alguns anos atrás, as reivindicações não foram suficientes para impedir situações semelhantes. Em 2014, Rodrigo Pandolfo, ator branco, era caracterizado com fita crepe para puxar os olhos e se tornar um personagem coreano.

A escassez de atores amarelos na teledramaturgia brasileira está associada à forma como o audiovisual buscou representar a identidade nacional, ao longo dos anos. Para Hugo Katsuo, cineasta e pesquisador de políticas de representação racializadas, “a identidade nacional brasileira está vinculada a uma lógica do mito das três raças, onde o fenótipo amarelo é excluído. Não faz sentido, nem pro cinema, nem pra teledramaturgia trazer a representação amarela que era vista como estrangeira e não dialogaria com a brasilidade difundida”.

Esse problema também é apontado por Marcos Miura,  ele é membro do coletivo Oriente-se, grupo que reúne atores amarelos. Marcos possui ascendência japonesa, mas é brasilero. “Já são cinco gerações de pessoas que nascem no Brasil, mas a sociedade ainda nos vê como estrangeiros, como imigrantes.”

O ator acredita que o audiovisual tem um impacto relevante para essa imagem: “Existe uma resistência em inserir um amarelo no audiovisual como brasileiro. Os personagens são geralmente colocados como um estrangeiro ou turista, que fala com sotaque carregado.  Isso vai educando a população para ver o amarelo não como brasileiro, mas imigrante. Alguém que veio de fora, veste quimono e só come sushi e sashimi.”

No Brasil está a maior população de origem japonesa fora do Japão. A Embaixada do país estima que cerca de 2 milhões de japoneses e descendentes vivem no Brasil. Marcos Miura questiona a invisibilidade que as produções audiovisuais impõem ao grupo mesmo diante do grande contingente populacional: “Se você faz uma história em São Paulo, como não escalar um ator amarelo? É diferente se uma trama é no interior de Pernambuco, mas em São Paulo não há como não colocar amarelos.”

Miura ainda pontua como um exemplo positivo a escalação da atriz Bruna Aiiso, na novela Terra e Paixão, para um papel que não faz referência a sua etnia. Para ele, é uma forma de normalizar os amarelos como brasileiros. Mas ao mesmo tempo, ele conta que ainda precisa recusar roteiros com características estereotipadas. “Sempre quando recebo uma proposta de trabalho que tenha estereótipo eu recuso e explico para produção por que eu não estou aceitando para que eles tentem mudar. Mas às vezes insistem no estereótipo e procuram outro ator até achar alguém que faça.”

Um caso recente que ele se recorda ocorreu no ano passado, quando uma produtora de elenco entrou em contato para o papel de um japonês em um episódio do seriado Família Paraíso, do Multishow. Mesmo com a recusa e a ciência do problema apontado, o episódio foi ao ar.

O Coletivo Oriente-se surgiu, em 2016, após um caso de Yellowface, na novela Sol Nascente, quando Luís Melo, ator branco, foi escalado para interpretar Kazuo Tanaka, descendente de japoneses. Como justificativa, a novela apresentou o personagem como metade norte-americano. Mas em flashbacks era um ator amarelo que o interpretava. 

A trama, que tinha a imigração como tema principal, trouxe Giovanna Antonelli como protagonista. Na história, ela foi adotada por Tanaka, algo que pode ser entendido como um whitewashing, termo inglês para embranquecimento, quando o roteiro é adaptado para comportar um personagem branco num papel associado a outra etnia.

Nos últimos anos, artistas e influenciadores amarelos conseguiram mais visibilidade. O cineasta Hugo Katsuo enxerga os avanços, mas ainda identifica uma escassez de atores amarelos escalados. “Na época de Sol Nascente, a tentativa de organizar o movimento amarelo brasileiro estava começando. O debate conseguiu avançar bastante desde que ocorreu esse whitewashing. Logo em seguida, em 2017, estreou Malhação Viva a Diferença, com a Ana Hikari, primeira protagonista amarela da Globo. Mas, ainda assim, eu percebo como se só houvesse espaço para uma pessoa de cada vez ocupar esse espaço na televisão.”

Antes de Ana Hikari, a última vez em que uma atriz amarela havia protagonizado uma novela foi em 1967, com Yoshico, um poema de amor, novela da TV Tupi, que trouxe Rosa Miyake no papel principal. Rosa também era cantora e uma figura popular na época da Jovem Guarda. Anos depois viria a apresentar o programa Imagens do Japão. 

Nos anos 60, a Globo também exibiu uma trama com uma personagem oriental, a Sombra de Rebeca, mas quem interpretava a protagonista, Suzuki, era Yoná Magalhães. A atriz precisava usar bastante maquiagem para compor a personagem, conforme contou em depoimento ao site Memória Globo. Também teve aulas sobre a cultura japonesa e foi orientada por um funcionário do consulado do Japão no Rio de Janeiro.

Para Katsuo, o audiovisual pode fortalecer a luta por representatividade não só com produções de denúncia mas, simplesmente, trazendo representações mais diversas:

“Quanto mais diversos forem os papéis e menos focados só na dor e na denúncia, mais eu consigo abrir um leque de possibilidades de existência. Ao ponto de que as pessoas assistam, às vezes mocinhos, às vezes vilões; às vezes pobres ou ricos; sofrendo por amor ou se realizando romanticamente. Assim, você  cria um imaginário de que esse grupo tem muitas possibilidades de ser. Não só para pessoas não amarelas, mas para as próprias pessoas amarelas que assistam e consigam construir uma subjetividade para entender que elas podem ser muito mais do que os estereótipos dizem.”

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