Mulheres adultas enfrentam dificuldades e desafios para permanecer frequentando as salas de aula e concluir o ensino básico
Por Francielly Barbosa
Maria das Dores Gomes da Silva tem 47 anos, a pele negra queimada de sol e os olhos cansados. Ao começar a falar, ela se inclina no assento e olha firme para a frente, como quem observa o passado como um filme. Maria foi à escola pela primeira vez aos sete anos, isso quando a maioria das crianças começa a estudar por volta dos três, no jardim de infância. Conta que o motivo de ter começado tão tarde foi a distância dos colégios da cidade onde morava, em São Vicente Férrer, um pequeno município no interior de Pernambuco, na fronteira com o estado da Paraíba.
A escola mais próxima com vagas disponíveis para novos alunos ficava a cerca de 1h30 de distância e a única forma de chegar à sala de aula era a pé. “Não tinha nenhum carro ou ônibus para levar a gente, porque eram quatro passagens de rios que atravessávamos, subíamos muita ladeira e, quando chovia, não tinha como voltar, ficávamos presos do outro lado do rio e voltávamos só no outro dia”, relembra. As aulas começavam cedo, às 7h, e continuavam até o meio-dia, quando o sol sertanejo estava alto no céu. Na única sala de aula, com um único professor para ensinar todos os assuntos que os alunos deveriam aprender — Ciências, História, Matemática e Português —, não tinha divisão de turmas. Alunos dos sete aos 14 anos estudavam juntos as mesmas coisas. Às vezes, poderia ter até mesmo adultos sentados aprendendo ao lado das crianças. A ausência de espaço para as crianças em idade escolar não era um caso único.
O cenário do sistema educacional brasileiro
Para as mulheres, são muitos os desafios enfrentados para permanecer e concluir os anos de estudo, e a própria forma como o sistema educacional público brasileiro se constituiu contribui para essa condição. Como explica a professora Raquel Guilherme de Lima, do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), o primeiro desafio é encontrar uma vaga para os alunos. Por anos, o sistema educacional não conseguia oferecer espaço para todas as crianças em idade escolar, especialmente em regiões mais vulneráveis como nas áreas rurais. Ir à escola poderia se tornar uma verdadeira odisseia literária, que muitas vezes não compensava o perigo, o cansaço e o tempo para aprender a escrever o próprio nome e matemática básica.
“É fato que desde o final da década de 1990, o sistema educacional ampliou a sua capacidade de cobertura. Tínhamos um sistema no qual várias pessoas não encontravam vaga no ensino básico, que compreende o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. É apenas no final dessa década que o estado brasileiro garante que todas as crianças em idade elegível para o Ensino Fundamental encontrarão uma vaga em uma escola”, explica a professora. A mudança dessa situação apenas na última década do século passado mostra como esse processo é recente na história da educação do país e como a desigualdade nos espaços de aprendizagem se acumulam até o momento atual.
Segundo dados do Relatório do 4o Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação, divulgado em 2022, entre 2012 e 2021, a taxa de alfabetização no Brasil passou de 91,8% para 95%, mas essa mudança não foi igual para todas as regiões. Enquanto o Rio de Janeiro tem a maior taxa de alfabetização do país, com 98,4%, a Paraíba tem a menor taxa do Brasil, com 86,4%, 8,6 pontos percentuais abaixo da média nacional. Quanto ao analfabetismo funcional, os mesmos estados se repetem: Rio de Janeiro com a menor taxa, de 6,1%, e Paraíba com a maior, de 22,9%, quase o dobro da média nacional no ano da pesquisa, que era de 11,4%.
São vários os fatores por trás desses dados que, como exemplifica a professora Elisabete Cruvello, também do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF, têm diferentes dimensões para além da educacional, como econômica e política. “Do ponto de vista econômico, o acesso e a permanência na escola têm um custo elevado de passagens, de alimentação e de materiais de apoio”. Somado a isso, muitas crianças e jovens interrompem os estudos para contribuir com a renda familiar, cuidar de irmãos menores ou de parentes mais velhos que necessitam de atenção. Muitas vezes esses alunos acabam não retornando aos estudos e desenvolvem atividades informais no futuro.
Para as gerações nascidas antes da década de 1990, antes de tudo o grande desafio era poder se matriculas nas escolas, mas no meio da trajetória outras dificuldades surgem que afetam desproporcionalmente diferentes grupos da sociedade. “Temos as desigualdades chamadas de persistentes, em que entra a diferença de performance entre estudantes brancos e negros, que não é aleatória. É dada pela pertencimento racial desse grupo, penalizado de diversas maneiras no sistema educacional brasileiro”, comenta Lima. Associado à desigualdade racial, acrescenta-se também a desigualdade financeira e Lima explica que enquanto muitas famílias possuem recursos para acompanhar o filho nos primeiros anos de escola, em outras casas, os pais tiveram pouquíssimas oportunidades educacionais e por vários fatores não conseguem oferecer suporte necessário para os filhos.
“A questão socioeconômica é muito importante e muito impactante. Posso ter uma família com uma mãe que gostaria muito de acompanhar seus filhos durante o percurso escolar, mas essa mulher trabalha horas a fio e enfrenta o transporte público por muito tempo. Qual vai ser a disponibilidade de tempo que ela vai ter para participar dessa rotina? Praticamente nenhuma”, comenta Lima. “Dentro do sistema, a chance de progredir é muito impactada pelas condições socioeconômicas de origem, então o estado brasileiro deve buscar formas de minimizar os efeitos dessas desigualdades sociais”, conclui.
Maria foi uma dessas crianças que até tentaram persistir, mas infelizmente não conseguiram permanecer indo às aulas. Aos 11 anos, precisou parar de frequentar a escola para dar conta do pai doente. Tentou retornar, mas como não havia nenhuma escola próxima com vaga para a turma que iria iniciar, só conseguiu voltar a se sentar em uma sala de aula com 14 para 15, quando por sorte surgiu uma vaga em um colégio da sua cidade e um transporte para levar os estudantes à escola. Um ano depois, a única forma dos alunos chegarem ao colégio deixou de existir e Maria precisou novamente interromper os estudos. A distância e trajeto perigoso de ida e volta, feito a pé, eram impossíveis para a aluna.
Aos 34, já em outro estado, com família e filha pequena, Maria voltou à escola pela terceira vez porque tinha o desejo de aprender a ler e escrever bem para poder contar histórias para a filha e porque acreditava fielmente que “ter um pouco de estudo é importante para todos nós”. Conseguiu a duras penas seguir até metade do Ensino Médio, quando teve que parar os estudos novamente por não ter quem cuidar da filha que atingia a idade escolar. A voz falha um pouco quando diz: “Eu não me arrependo do que fiz, não, mas, se fosse hoje, queria fazer tudo diferente”.
Mulheres adultas e a evasão escolar
No geral, as mulheres sobrevivem mais no sistema educacional do que os homens, explica a professora Raquel, e dá o exemplo de que “mesmo quando comparamos mulheres negras e pobres com homens negros e pobres, as mulheres possuem mais anos de estudo do que seus pares do sexo masculino. Esse é o padrão, mas sabemos que não é uma média e temos diferentes casos de mulheres”. São múltiplas as razões que dificultam a permanência e a conclusão do ensino básico por elas, como a necessidade de conciliar trabalho e escola, um dos principais motivos para a evasão escolar desse grupo. “Quando a pessoa precisa produzir recurso financeiro para se sustentar, ainda mais quando faz essa entrada no mercado de trabalho muito cedo, acaba que ela não vai ter qualificação educacional, então encontra apenas empregos precários”. Por necessidade, essas mulheres acabam por escolher abandonar os estudos para dar conta do trabalho, algumas vezes enfrentando mais do que uma jornada laboral por dia para conseguir complementar a renda familiar.
“Quando falamos de mulheres negras pobres, quando fazem essa entrada no mercado de trabalho provavelmente vão entrar em empregos que dizemos que estão na base da pirâmide ocupacional: são muito precários, que exigem muito esforço, muito trabalho e que devolvem pouco em termos de garantia, de segurança e de retorno material”, continua a socióloga. Mesmo em casa, a jornada de trabalho não remunerada também leva a exclusão das mulheres das salas de aula já que no Brasil observa-se uma sobrerepresentação de mulheres negras e de baixa renda como chefes de domicílio.
Para Lima, “as mulheres engravidam, são abandonadas pelos seus parceiros e acabam tendo que dar conta dos seus filhos de maneira solo, por isso, acabam tendo que priorizar o trabalho e a geração de renda em vez dos seus estudos”. Até mesmo esmo em lares não monoparentais o cuidado é dividido desproporcionalmente entre homens e mulheres, ainda mais quando se consideram famílias racializadas. Às mulheres, cabe a atenção familiar e o trabalho doméstico, inconciliáveis com os estudos. “Quando essa mulher vai para o sistema educacional tem que enfrentar uma dupla jornada, então acontece ali uma disputa de energia e de tempo que é cruel. Muitas vezes essa mulher não consegue dar conta dessa sobrecarga de tarefas”, explica a socióloga.
Aquelas que perseveram e tentam encontrar uma forma de retornar à escola ainda precisam aprender a se readaptar ao ambiente escolar que conheceram na infância ou na adolescência. Novamente na posição de estudantes, seja no ensino público ou privado, precisam dividir a sala de aula com pessoas muito mais jovens, o que afeta a autoestima e o emocional dessas mulheres que se sentem incapazes de aprender por serem mais velhas. “Todo sistema educacional é organizado por etapas de vida, então você entra na educação infantil, depois vai para a pré-escola, depois para o Fundamental, mas isso é uma construção social que se vincula às necessidades sociais de ter um espaço para as crianças aprenderem a socializarem e garantir que os seus familiares vão estar atuantes no mercado de trabalho”, explica Lima. “A sociedade cobra um preço alto das pessoas que subvertem isso, então quando a gente vê mulheres com 40 ou 50 anos de volta ao sistema educacional é um choque. Muitas dessas mulheres sentem uma pressão, um preconceito, porque têm uma mentalidade muito diferente dos estudantes ‘na idade correta’ sentados ao lado delas. Isso causa uma estranheza”.
Mudanças para a permanência e conclusão do Ensino Básico
Como destaca a socióloga e professora, é necessário adaptar o ensino básico oferecido pelo sistema educacional brasileiro atual. “Há aspectos de ordem pedagógica que a gente deve se atentar, como a qualidade da educação que está sendo ofertada e os mecanismos de avaliação. Temos que adaptar esses mecanismos, porque essas pessoas vão precisar de mais tempo para desenvolver habilidades fundamentais para o seu desenvolvimento no sistema educacional, como habilidade de escrita e de expor as suas ideias. O sistema educacional funciona bem em termos de inclusão e qualidade quando ele percebe o tipo de aluno com o qual está lidando”.
Outro ponto é a importância de uma rede de apoio confiável, que auxilie as mães na jornada exaustiva de trabalho fora e dentro de casa, possibilitando que ao menos tentem frequentar a escola, já que “as dimensões econômicas e políticas educacionais precisam ser consideradas ao avaliar o sistema educacional nacional. Além disso, na fase adulta, as mulheres são quase sempre as chefes de família, respondendo pela proteção social de seus filhos”, comenta Cruvello. A professora do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais comenta que também é preciso se perguntar se há uma evasão escolar maior de alunos negros por abandono ou por exclusão pela “falta de acolhimento e de perspectiva sobre o seu futuro profissional”.
Mesmo com o difícil caminho para concluir os estudos, algumas vezes ainda há um resquício de esperança. Maria sorri sonhadora quando diz que gostaria do diploma de conclusão do Ensino Médio e talvez chegar a cursar faculdade de fisioterapia. Ela lista que trabalhar longe, precisar acordar muito cedo, a falta de horário e a distância do colégio impedem o retorno, mas tem um tom de esperança quando se pergunta, ainda assistindo ao mesmo filme nostálgico, “quem sabe algum dia consigo concluir esse sonho?”