Considerado como um dos negócios que mais dá lucro no mundo, hoje o futebol destrói aqueles que o criaram e, muitas vezes, privilegia aqueles que visam apenas o dinheiro.

Por Davi Esteves, Felipe Teófilo e João Paulo Souza

A crescente elitização do esporte mais popular do mundo tem levantado preocupações sobre o acesso igualitário e a autenticidade do jogo, à medida que os clubes de futebol se tornam megaempresas globais, os ingressos e as assinaturas de streaming de jogos aumentam de preço cada vez mais, afastando muitos fãs tradicionais. O tema voltou a ser debatido após os dois jogos da final da Copa do Brasil entre Flamengo e São Paulo, realizados nos dias 17 e 24 de setembro.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo portal Pluri Consultoria, o preço dos ingressos mais baratos subiu 300% nos últimos 10 anos, período em que a inflação (medida pelo IPCA-IBGE) foi de 73%, a Cesta Básica subiu 84% e o salário-mínimo aumentou 183%. É lógico que o aumento do preço dos ingressos não é o único motivo que anda causando o afastamento das camadas mais populares, mas é um dos mais relevantes, visto que se cobra um alto preço para um produto de qualidade cada vez pior e em ambientes, muitas vezes, precários.

Preço dos Ingressos

O aumento significativo nos preços dos ingressos afeta diretamente a acessibilidade ao futebol para diferentes classes sociais. As famílias de baixa renda, que costumavam frequentar os estádios regularmente, agora encontram dificuldades em arcar com os custos, o que resulta em uma audiência cada vez mais elitizada nos estádios, onde a presença de torcedores de classe média e alta se torna predominante. Além de claro, por conta também do aumento dos preços para alimentação e transporte, o povo passou a acompanhar os jogos pela televisão, e não mais nos estádios.

Nos dias 17 e 24 de setembro de 2023, teve-se a realização nos dois jogos da final da Copa do Brasil, entre Flamengo e São Paulo, onde o São Paulo conseguiu se consagrar campeão. O primeiro jogo, no Maracanã, teve a maior renda bruta da história do futebol brasileiro com R$ 26,3 milhões, já o segundo, no Morumbi, registrou a segunda maior renda bruta da história do futebol no Brasil com R$24,5 milhões.

Apesar de ser um jogo diferente da maioria, por se tratar de uma final, essa arrecadação imensa nos deixa um questionamento do que está virando o futebol e de como os dirigentes dos clubes estão se preocupando cada vez mais com o lucro extremo, o que se reflete por meios dos investimentos que crescem ao longo do tempo e dos salários que fogem muito da realidade. Eduardo Gomes, professor de história pela UERJ e jornalista pela Unesa, comentou um pouco sobre o assunto:

“Acho que eles tentam colocar uma suposta justificativa de modernização, com a criação dessas novas arenas, que é fruto de um avanço do esporte, só que essa justificativa também levou como consequência essa elitização do esporte e que exclui camadas da sociedade. Um exemplo é a geral do Maracanã, onde um torcedor com 5 reais conseguia assistir um jogo, então uma camada da população que tinha acesso, passou a não ter mais.”

É entendível que o futebol precisou passar por um processo de mudança e modernização, assim como tudo precisa, mas, ao mesmo tempo, não era necessária essa exclusão extrema da camada mais pobre por conta de visar o dinheiro acima de tudo. “A nível do Brasil deveria se buscar um equilíbrio, você pode reformar e modernizar seu estádio, como fez o Maracanã, mas também precisa garantir acesso à camada popular, fazendo ingressos em conta e com sócios-torcedores mais acessíveis, por exemplo.” disse Eduardo.

O Caso São Januário

Uma decisão judicial, publicada no dia 23 de junho deste ano, determinou a interdição do estádio de São Januário, após os confrontos entre policiais e torcedores, inconformados com a derrota do Vasco para o Goiás, em jogo válido pela 11ª rodada do Brasileirão. Como punição, uma liminar suspendeu por 30 dias a realização de jogos no local. 

Estádio de São Januário, Rio de Janeiro

Porém, o que vimos não foi bem isso. Diferente de outros estádios que passaram pela mesma situação e após 30 dias foram liberados para a volta do público, como a Vila Belmiro, no caso de São Januário a justiça prorrogou a interdição em duas oportunidades, fazendo uso de argumentos discriminatórios e elitistas. O juiz de plantão, Marcelo Rubioli, em um relatório afirmou: 

“Para contextualizar a total falta de condições de operação do local, partindo da área externa à interna, vê-se que todo o complexo é cercado pela comunidade da Barreira do Vasco, de onde houve comumente estampidos de disparos de armas de fogo oriundos do tráfico de drogas lá instalado o que gera clima de insegurança para chegar e sair do estádio. São ruas estreitas, sem área de escape, que sempre ficam lotadas de torcedores se embriagando antes de entrar no estádio”

As aspas de Marcelo geraram grande revolta, tanto do clube Vasco da Gama e de sua torcida, quanto dos moradores da Barreira do Vasco. Na época, Vânia Rodrigues, presidente da Associação de Moradores da Barreira do Vasco declarou que a visão do juiz estava ‘distorcida da realidade’. 

Além de prejudicar a torcida, a liminar afetou o comércio local. Por se tratar de uma região carente e esquecida por políticas públicas, muitos moradores da comunidade Barreira do Vasco dependem da realização de jogos para aumentar sua renda. Com a interdição, que perdurou por três meses, muitos desses comerciantes se viram numa crise: segundo pesquisa do UOL estima-se que 60% da receita dos comércio caiu durante este período, afetando em torno de 18 mil pessoas que foram afetadas por uma decisão judicial. 

Beto, proprietário do quiosque da Colina, calcula o prejuízo que seu negócio teve durante este período em que o estádio ficou sem o público: “Acabei tendo prejuízo, com público, planeja tudo semanas antes, investe, sem a torcida, é difícil, não tem muito movimento, o meu freezer ficava vazio e tinha mercadoria parada. Em dia de jogo chego a ter lucro de quase 4 mil reais, ou seja, num dia, consigo ter o lucro de uma semana normal, então faz toda diferença ter a torcida”

Com a volta de São Januário tendo data marcada, Vânia Rodrigues se manifestou comemorando a decisão:

“Foram semanas de angústia e muita luta. Nos humilharam e tentaram nos excluir mais uma vez. Não conseguiram. O Vasco e a Barreira do Vasco são uma coisa só. Mexeu com um, mexeu com todo mundo. Agradecemos a todos que estiveram ao nosso lado e convidamos para a festa na Barreira, que é o melhor pré-jogo do Brasil”, afirmou ela. 

O que se viu no dia 21/09 nos arredores do Estádio São Januário foi muita festa e sensação de pertencimento. Torcedores foram em peso matar a saudade do clube que tanto amam. Dentro do estádio, ingressos esgotados, fora dele, uma grande massa de apaixonados pelo Vasco da Gama que, apesar de não terem ingresso, queriam estar perto e fazer parte daquele momento. Foi o que afirmou Victor Gonçalves: 

“Estar de volta é sempre bom, mas dessa vez tem um gostinho a mais. Tentaram calar o Vasco e a Barreira, mas vão precisar muito mais do que isso. Estamos aqui prontos para festejar, curtir esse momento.”

A alegria não estava apenas na fala dos torcedores. “Foram 90 dias bem difíceis, que nós tivemos que recorrer a outros tipos de trabalho para não faltar dinheiro em casa. Fomos vender em outro lugar, trabalhar com outras coisas. Mas estar fazendo o nosso trabalho em casa não tem preço”, disse Caio Miranda, que é vendedor ambulante há 6 anos e trabalha vendendo bebidas e comidas nos arredores de São Januário.

Torcida do Vasco durante partida contra Coritiba no estádio São Januário pelo Campeonato Brasileiro em 2023 |Foto: Thiago Ribeiro/AGIF

Antes de a bola rolar, a torcida do Vasco juntamente com a Barreira mandaram um recado para todos que estivessem assistindo ao jogo. Um grande mosaico, com uma palavra marcante que simboliza tudo que foi vivido naqueles 90 dias, foi erguido no setor social, de frente para as câmeras. Junto dele, a grande massa vascaína cantou a música “Camisas Negras”, que conta a história de resistência e luta contra o preconceito feita no século passado. A mensagem foi curta, mas com um significado impactante. “Resistiremos”.

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