Entre gramados e polêmicas, persiste a controvérsia sobre a origem do termo mulambo e o seu significado no futebol brasileiro
Por Davi Esteves
O primeiro dia do Enem 2023 e a comemoração do título da Libertadores pelo Fluminense tiveram algo em comum: em ambos o termo mulambo esteve presente. No dia 05 de novembro, o exame nacional trouxe uma questão abordando o sentido da palavra. Uma semana depois, em 12 de novembro, o lateral do Fluminense, Guga, entoou durante a comemoração pela conquista da taça um canto chamando os torcedores do Flamengo de mulambos. Os dois casos reacenderam nas redes sociais, empresas famosas como a ESPN, TNT Sports, Globo debateram o assunto em programas semanais, além de influenciadores e usuários torcedores de ambos os times, o debate sobre o termo. Trata-se de racismo?
De acordo com o dicionário, mulambo é um pedaço de pano velho, roto e sujo, roupa esfarrapada. A origem em si já carrega um pensamento preconceituoso, porque a palavra era usada na época da escravidão para se referir aos escravos e pobres, pela perspectiva de que essas pessoas não eram bem arrumadas. Em entrevista dada para a revista Lance!, a pesquisadora Monique Cassiano, mestre em estudos da linguagem pela PUC-RIO, falou sobre a origem do termo:
“Com uma pesquisa um pouco mais apurada, é possível descobrir que “molambo” se inseriu em nosso vocabulário por meio dos negros escravizados, pois dava nome ao pano que algumas tribos africanas amarravam à cintura. Com o passar do tempo, o termo foi tomando a forma depreciativa e de insulto e passou a ser usado como um adjetivo para caracterizar alguém sujo ou mal arrumado (…). Com isso, a palavra “molambo” permanece nos dias de hoje com a denotação negativa e de xingamento por conta de suas bases históricas e aos povos aos quais ela remete”.
A relação entre o termo “mulambo” e o futebol brasileiro está intimamente ligada ao Clube de Regatas do Flamengo, um dos mais populares e bem-sucedidos do Brasil. Os torcedores rivais do Flamengo, em especial os torcedores de times como Fluminense, Botafogo e Vasco da Gama, começaram a utilizar o termo de forma pejorativa para se referirem aos flamenguistas.
A origem dessa associação tem diversas versões, mas uma delas remonta aos anos 1940, quando o Flamengo vivia um período de dificuldades financeiras e seu uniforme muitas vezes ficava desgastado. Por conta disso, os adversários chegaram a chamar os torcedores do Flamengo de “mulambentos”, indicando que eles vestiam roupas velhas e em mau estado. E ao longo do tempo, a palavra passou a ser usado para inferiorizar o Flamengo, à medida que os torcedores flamenguistas passaram a ser estereotipados como favelados, sem educação e demais termos pejorativos que se referem às classes sociais mais baixas, sendo mulambo uma delas.
Ambas as torcidas do Vasco e Fluminense possuem músicas onde o termo mulambo aparece se referindo aos torcedores rubro-negros. A música “Mulambo, me diz como se sente”, do Vasco, possui o seguinte trecho: “Mulambo, me diz como se sente, não ter estádio pra jogar, ganhar somente no apito e a mídia suja te apoiar”, enquanto a música do Fluminense “Desde pequeno eu te sigo”, tem a seguinte frase: “E pra você, flamenguista, me escuta, mulambo imundo, filha da p***, mulambo imundo, filha da p***”.
Algo que acontece constantemente são falas dos torcedores rivais tentando justificar o uso da palavra, como “mulambo não é racista”, “mulambo é sobre as roupas velhas e feias”, o que acaba negligenciando e fazendo com que se invente qualquer tipo de narrativa para esconder o racismo, como uma espécie de preconceito disfarçado de opinião. Para o torecedor Pedro Henryque, torcedor do Flamengo, trata-se, sim, de racismo: “É a mesma coisa que chamar de macaco, o intuito de ofender é o mesmo, todo mundo sabe da origem e do sentido que a palavra tem. É feio porque soa hipócrita, já que as torcidas rivais dizem e se vangloriam por combaterem o racismo, mas quando é contra o Flamengo vale tudo”.
O influenciador vascaíno Wallace Neguere publicou em seu perfil no twitter, no ano de 2022, sua opinião sobre esses cantos preconceituosos: “Eu não uso mais o termo mulambo, convencido de ser uma palavra racista e nem canto mais as músicas que têm cunho machista e homofóbico, independente da época que ela foi criada. Já chegou a hora da gente se posicionar. Eu gostaria de levantar uma questão muito importante para as torcidas organizadas. Será que já não estaria na hora de rever alguns cânticos? Existe um momento diferente hoje na nossa sociedade, que não podemos tratar como fato isolado”.
A posição do Flamengo
Apesar de muitos entenderem como ofensa e julgamento serem chamados de mulambos, parte da torcida rubro-negra acolheu de forma orgulhosa o termo mulambo, como uma atitude de resistência, assim como a história do mascote da equipe. “Tem uma parte da torcida que até adotou o mulambada como algo positivo, mas é inadmissível, até porque hoje em dia tem tantos debates de pautas sociais” – disse Pedro Henryque.
Até por isso, a torcida criou uma música onde assume o mulambo como característica do flamenguista: “Me chamam de mulambo e sem dinheiro, faço parte da nação que é seu pesadelo, me chamam de favelado, de pobre, preto, não importa a cor da pele, só o sentimento. Sou rubro-negro! Sou rubro-negro! Sou rubro-negro! Sou rubro-negro!”.
O escritor Claudio Sampaio resumiu esse sentimento no site Coluna do Fla, publicada em 2017: “Somos intensos, somos bagunçados, somos carismáticos, a emoção nos norteia, o time nos incendeia, conseguimos amar, xingar, sorrir, odiar, confraternizar e abraçar, até estranhos e desdentados, tudo isso dentro de um único minuto. Nossa torcida é branca, negra, amarela, brasileira, carioca, nordestina, colombiana e africana, rica e pobre, tem gente feia e gente bonita, gordos e magros, mas o certo é que, quando se junta em uma união de vozes apaixonadas, os mulambos formam a massa torcedora mais linda e temida do futebol mundial”.