Racismo e desrespeito aos direitos fundamentais são a realidade de milhares de jovens no sistema socioeducativo brasileiro

Por Ana Clara Nascimento e Lívia Mendes

Desde o início da humanidade, medidas de reclusão, detenção e encarceramento são aplicadas como formas de punição e controle social. Na obra “Vigiar e Punir”,o filósofo Michel Foucault fala sobre o surgimento das prisões e os seus objetivos. Para ele, o ato de prender um indivíduo está ligado diretamente à institucionalização do poder e do controle social. Ou seja, as prisões não servem apenas para punir um crime, mas para transformar os indivíduos em “corpos dóceis”, que podem ser facilmente submetidos e controlados.

Até o surgimento das primeiras instituições prisionais, a maneira de punir os indivíduos pelos seus atos variava de acordo com a cultura e a civilização do local e da época.No Brasil, o sistema penitenciário se iniciou com a criação da Carta Régia de 1796. O documento determinava a construção da primeira prisão no Brasil, a Casa de Correção da Corte, posteriormente inaugurada em 6 de julho de 1850.

Imaginar um adulto em uma prisão, encarcerado, com sua liberdade restrita pode parecer comum no imaginário da maioria das pessoas. Mas imaginar um adolescente, cumprindo uma pena, recluso e privado de sua liberdade já causa uma sensação de estranheza. No entanto, esse “cenário imaginário” é a realidade de muitos jovens no Brasil.

De acordo com o último Levantamento Anual do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) apresentado pelo Ministério dos Direitos Humanos em dezembro de 2023, cerca de 11.664 adolescentes estão inseridos ao sistema socioeducativo nas modalidades de restrição e privação de liberdade, sendo 9656 em cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade  e internação, 222 em internação sanção e 1786 em internação provisória. 

A criação do Sinase foi aprovada em 11 de dezembro de 2006 através da resolução 119 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes. Tanto o Sinase quanto o ECA são os órgãos responsáveis por garantir os direitos e a implantação das medidas socioeducativas para os jovens.

A assistente social e coordenadora do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Niterói, Brenda Costa, explicou como funciona o processo desde a apreensão do jovem até o início do cumprimento das medidas e quais são os tipos de medidas aplicáveis. Quando o jovem comete algum Ato Infracional, podem ser aplicadas seis medidas socioeducativas previstas pelo ECA: I: advertência, II:obrigação de reparar dano, II: prestação de serviços à comunidade; IV:liberdade assistida, V: inserção em regime de semiliberdade, VI: internação em estabelecimento educacional.

Segundo Brenda Costa, as medidas que ocorrem em total liberdade, ou seja, sem privação, são de responsabilidade dos órgãos municipais, como o CREAS: “O processo pode acontecer direto, ou seja, o adolescente cometeu um ato infracional. Gerando um processo ele vai passar pela Vara da Infância, vai ser julgado, e aí pode vir direto para cumprir a medida socioeducativa em liberdade”, disse Brenda.

A coordenadora explicou que as medidas de semiliberdade e internação são responsabilidades do Estado. A medida de semiliberdade é gerida pelo Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (CRIAAD) e a de internação, pelo Departamento Geral de ações socioeducativas (DEGASE), onde o jovem passa por um julgamento e recebe a sua “pena”.

Alguns termos são usados para diferenciar o tratamento entre jovens e adultos que fazem parte do sistema prisional, como “apreensão”, no lugar de “prisão”, e “internação”, no lugar de “cadeia”. Brenda Costa relembrou a fala de uma adolescente que tinha passado pelo sistema: “Era uma menina e ela falou assim: ‘você fica falando para a gente usar esses termos, mas a gente estava na cadeia sim, a gente foi presa, sim, porque é tudo igual ao adulto, só que é um monte de adolescente””.

A professora de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Juliana Vinuto, explica que a implementação das medidas socioeducativas parte da premissa de que o adolescente vive uma fase diferente do adulto.

“Vivendo um período de amadurecimento físico, mental e moral o adolescente teria mais chances de ser modificado, ressocializado, com base em intervenções realizadas durante a medida socioeducativa”, analisa Vinuto.

No entanto, ressalta a crítica ao termo “ressocialização”, usado muitas vezes para se referir às medidas socioeducativas. “Por ser essencialmente seletiva, a ‘ressocialização’ não atinge todos os adolescentes que cometem atos infracionais, mas seleciona apenas adolescentes pobres e negros. Sua função não é a de transformar o adolescente, mas a de controlar e segregar pelo encarceramento”, concluiu a professora.

Qual é o perfil do sistema socioeducativo?

O estudo “Trajetória Escolar e de Vida de Jovens em Situação de Risco e Vulnerabilidade Social Acusados de Cometimento de Ato infracional”, feito pela UFF, apontou que 97% dos jovens entrevistados eram homens; 76% eram negros e 70% deles estavam na faixa etária entre 15 e 17 anos. O levantamento também relatou que 34% dos adolescentes possuíam renda familiar de 1 a 3 salários mínimos e mais de 70% moravam em áreas de conflito armado. 

Outro dado que chamou atenção é que mais de 90% dos 142 mil adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de liberdade assistida, semiliberdade, internação restrita e prestação de serviços à comunidade, não chegaram a completar o Ensino Fundamental.

Analisando esses dados é perceptível a predominancia de jovens negros, perifericos, pobres e com baixa escolaridade no sistema socieducativo. A socióloga Juliana Nuvito pontua que a execução das medidas socioeducativas acaba se orientando pelo racismo institucional, porque a maioria dos adolescentes que são responsabilizados deste modo são negros.

“Neste contexto de maioria negra, se naturaliza o fato de que o objetivo da medida socioeducativa é controle, ordem e disciplina, o que muitas vezes marginaliza as atividades educativas que legalmente devem ser realizadas”.

A coordenadora do Creas recordou o caso de um jovem, cujo processo do julgamento e da aplicação das medidas ela pode acompanhar de perto. Era um menino de 16 anos, negro e morador de uma comunidade, que cometeu um Ato Infracional ao assaltar um comércio local com uma arma. Sua mãe tinha um quadro de saúde mental e seu irmão possuía um diagnóstico neurológico. Esse mesmo jovem já tinha envolvimento com o tráfico local. Durante sua audiência, o jovem explicou que “precisava levar comida para dentro de casa.” 

Racismo estrutural e institucional 

Reprodução: Blog gran cursos online

Quando discutimos a história e a formação do Brasil não podemos deixar de citar que o país foi construído pelas mãos e pelo suor de pessoas pretas escravizadas. Hoje, depois de cerca de 130 anos da abolição – ou falsa abolição – da escravatura no Brasil, ainda é possível dizer que o racismo prevalece como um dos principais sistemas que regem a sociedade e as instituições.

O racismo institucional e estrutural permeia diversas instituições sociais, incluindo as unidades socioeducativas destinadas a menores infratores. Essa forma de discriminação se manifestm de maneiras sutis e explícitas, desde a seleção arbitrária de quem é encaminhado para essas unidades até as disparidades no tratamento e nas oportunidades oferecidas aos jovens dentro delas. A antiga banda brasileira O Rappa escancarou na canção “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” o fato de que fatores como o perfil socioeconômico e étnico dos jovens frequentemente influenciam as decisões das autoridades, resultando em uma super representação de adolescentes negros e de comunidades marginalizadas nessas instituições.

 Vereadora pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e mãe negra, Mônica Cunha,  experimentou na pele as distorções do sistema socioeducativo e hoje luta pelos direitos das crianças e adolescentes. Após seu filho Rafael ser apreendido no DEGASE, Monica presenciou as péssimas condições do local e começou a denunciar abusos, violência policial e discriminação contra jovens negros. Com isso, fundou o “Movimento Moleque”, uma organização de mães de jovens com direitos violados pelo Estado. 

Vereadora Mônica Cunha (PSOL)/ Reprodução: Diário do Rio

A parlamentar destaca que as instituições de socioeducação para menores infratores são constituídas pela discriminação racial, criando uma estrutura que destaca as desigualdades. Para a vereadora, o racismo se estabeleceu como o único projeto bem sucedido, beneficiando aqueles que detêm o poder, e enquanto essa realidade persistir, não haverá mudanças significativas. Ela ressalta que, nesse contexto, o “jovem branco é tratado como o coitadinho, enquanto o jovem preto é visto sempre como bandido”, revelando a disparidade no tratamento dado aos jovens de diferentes origens étnico-raciais no sistema socioeducativo.

O racismo institucional e estrutural se manifesta de forma arraigada na base desse sistema. Um estudo conduzido pelo Ministério dos Direitos Humanos em 2023 confirmou essa realidade, revelando uma predominância gritante de jovens negros nas instituições destinadas aos menores infratores. Esse levantamento apontou que aproximadamente 64% dos internos eram pessoas pretas, um número que ecoa uma discrepância alarmante em relação à desigualdade racial no Brasil. Essa estatística não apenas confirma a existência de um viés racial dentro do sistema socioeducativo, mas também evidencia uma falha sistêmica em proteger e promover os direitos de jovens negros. 

Mestre em Relações Étnico Raciais e jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Vanessa Almeida, 37, abordou o termo “anti negritude” em sua tese de mestrado e comentou sobre seu significado: “Para os afropessimistas  [corrente de pensamentos que discute sobre raça e sofrimento negro no mundo] nós vivemos em um mundo ati-negro, que vai além do racismo, pois correlaciona o ser negro à não-humanidade”. 

Assessora parlamentar, coordenadora do Movimento Moleque e defensora dos direitos da criança e do adolescente, Monalisa Teixeira, 34, que vivenciou de perto a realidade dentro do DEGASE, evidenciou que a maioria dos agentes deixava claro o tratamento diferenciado e, de certo modo, desumano com as meninas negras na instituição. De acordo com ela, “quanto mais escura a pele das meninas, mais abusos e humilhações elas sofriam”. Monalisa relatou que os guardas costumavam usar o termo “dinga” [mendiga] para se referir  às meninas em situação de rua, a maioria delas jovens de pele retinta, evidenciando a forte discriminação racial, e também social. 

Monalisa Teixeira e Mónica Cunha no Degase (RJ) /Reprodução: Arquivo Pessoal

Abusos e violências

O sistema socioeducativo deveria ser uma instância de reabilitação e ressocialização. No entanto, nos corredores dessas instituições, muitos jovens enfrentam um ambiente de terror e abusos, onde a violência é uma realidade diária. Denúncias de violência física, psicológica e sexual dentro do sistema socioeducativo são recorrentes, mas o silêncio e a impunidade muitas vezes encobrem esses crimes. Jovens que deveriam receber apoio e orientação para se reintegrarem à sociedade são vítimas de agressões por parte de agentes, colegas e até mesmo de outros internos.

A antiga FEBEM, criada em 1976, para atender adolescentes em conflito com a lei, foi palco de várias denúncias de violência e abusos contra os jovens que ganharam o noticiário nacional e internacional. Após 30 anos da sua criação, em dezembro de 2006, foi sancionada a lei 12.469/06, que criou a Fundação Casa, que seria uma instituição livre da violência e que seguiria o cumprimento das medidas socioeducativas em conformidade com os direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Mas será que ao longo do tempo, essas instituições conseguiram se livrar da violência e do preconceito impregnado nas raízes da sua criação?

De acordo com informações da reportagem “A Febem Não Morreu”, do jornal “Brasil de Fato”, publicada em 2019, os casos de violência contra os adolescentes não deixaram de existir juntamente com a FEBEM, muito pelo contrário, permaneceram. Ao decorrer da reportagem, quatro agentes educacionais que trabalhavam em unidades da Fundação Casal de São Paulo afirmaram que “A Febem não morreu, só mudou de nome”.

Em 2023, no Ceará, adolescentes internadas no Centro Socioeducativo Feminino Aldaci Barbosa fizeram denúncias de violências física e psicológica e assédio sexual contra a unidade. Esses problemas foram informados em um relatório feito após uma visita de diversos órgãos e publicados pelo G1. As jovens explicaram que durante o banho – em um banheiro sem porta – são constantemente assediadas pelos socioeducadores, que eles gritam e usam linguagem violenta, além de serem algemadas em grades e umas às outras. 

As condições precárias dessas instituições exacerbam ainda mais a vulnerabilidade dos jovens, criando um ambiente propício para abusos. A falta de fiscalização efetiva e de medidas para prevenir a violência contribui para a perpetuação desse ciclo de horror. Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente “trata a criança como um ser imaturo, sem capacidade cognitiva para entender as consequências do ato cometido”, o sistema de ressocialização não garante a proteção conferida pelo ECA a esses jovens. 

Em relato delicado, a assessora parlamentar Monalisa Teixeira afirmou ter passado por momentos muito difíceis dentro do DEGASE, incluindo por abusos sexuais. Para ela, os anos que ficou internada foram os piores de sua vida: “Perdi parte da minha inocência. O sistema, que deveria garantir meus direitos, foi o maior violador deles”. A assessora contou que foi abusada pelos agentes durante certo período em que ela “não tinha sabão, absorvente e os produtos básicos de higiene”, e o agente começou a trocar esses produtos por favores sexuais. Monalisa desabafou e revelou que só se deu conta dos abusos 15 anos depois, aos 30 anos de idade. 

Na opinião da vereadora Mônica Cunha, é necessário agir conforme o Estatuto e finalmente garantir que os direitos desses jovens sejam cumpridos. “Tem que dar dignidade, respeito e olhar aquele adolescente como ser humano, não como bandido”. Ao questionar Monalisa sobre a funcionalidade do sistema, ela respondeu que “o sistema funciona porque ele não quer educar e ressocializar, ele quer criminalizar e marginalizar aquele jovem”. 

Juliana Vinuto, afirma que para mudar as medidas socioeducativas é necessário pensar coletivamente em formas alternativas de responsabilização que não passam pela privação de liberdade.

“Vivemos em um contexto global, mas especialmente no Rio de Janeiro, em que o Estado gasta mais com polícia e outros sistemas de controle do que com educação, assistência social, lazer, cultura, trabalho, etc. A mudança na responsabilização de adolescentes só vai acontecer quando colocarmos no poder pessoas que estejam mais preocupadas com o bem-estar da população do que com o controle social desta população”, conclui a professora de Sociologia da UFF.

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