Herdeiros de raízes patriarcais em áreas como a computação e a engenharia, os games são conhecidos por, ainda hoje, representarem mal as personagens e afastarem jogadoras 

Por Luiza Martins

De produto quase exclusivo da cultura nerd dos anos 1980 para sucesso mainstream do geek e do pop, os jogos eletrônicos percorreram um longo caminho até se consolidarem como um mercado gigantesco e em constante expansão. De acordo com um relatório da Statista de 2022, naquele ano, a indústria global dos games movimentou US$197 bilhões, superando a rentabilidade, por exemplo, do mercado fonográfico norte-americano e do cinema hollywoodiano. E a tendência é que os números alcancem cifras ainda maiores: segundo o relatório Video Game Global Market Overview 2023-2028, a expectativa é que, perto do encerramento da década, o faturamento do setor chegue a impressionantes US$ 376,8 bilhões de dólares anuais.

O Brasil é o maior mercado de games da América Latina e figura entre o top 10 de nações com maior consumo de games do mundo. Não à toa, de acordo com a Pesquisa Games Brasil (PGB) de 2024 feita com mais de 13 mil entrevistados, 73,9% dos brasileiros têm o hábito de jogar videogame. O mesmo estudo, considerado um dos mais importantes sobre o tema no cenário nacional, afirma que os jogos eletrônicos são uma das principais fontes de diversão e entretenimento para esse público. Por aqui, cerca de 70% dos gamers jogam desde criança e a maioria do público está concentrado entre 20 e 39 anos, conforme dados da PGB. 

Para Yuri Hildebrand, editor de jogos e esports do TechTudo, esse processo ocorre, também, por conta da popularização desses games – o que inclui as diversas facilidades, em termos de acesso, que a indústria vem oferecendo. Para o editor, a chegada dos games aos celulares e serviços de assinatura via streaming contribuiu de forma importante para a expansão do mercado. Em entrevista para O Casarão, ele afirmou que “não é mais preciso ser um gamer assíduo para se entreter com jogos, assim como não precisa ser um especialista para ler livros ou assistir a filmes e séries. O patamar ainda não é o mesmo  dessas mídias tradicionais, mas já está próximo”. 

Conforme os jogos foram se consolidando como parte de uma cultura geek mainstream, eles deixaram de ser vistos como algo seleto para alguns grupos específicos e se tornaram uma mídia consumida por pessoas de perfis mais distintos. O editor ressaltou que, hoje, a aceitação dos games é tanta que alguns deles estão entrando em um ecossistema de entretenimento com adaptações televisivas, jogos de tabuleiro e outras mídias. 

Apesar do boom, os jogos eletrônicos são conhecidos pela falta de representatividade e, consequentemente, por terem desenvolvido comunidades pouco receptivas às minorias sociais, como mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas negras e de outras etnias minorizadas. Com as mulheres, especificamente, há um agravante: os games ficaram marcados pela má representação dos personagens, incluindo sexualização extrema, sobretudo nas décadas de 1990 e 2000. Além disso, também era muito comum que, dentro das narrativas, os papéis desempenhados por elas fossem secundários, dependendo da ação de um protagonista masculino.

A Princesa Peach, de Super Mario, é um exemplo clássico de personagem feminina que segue o arquétipo de donzela em perigo. Foto: Divulgação/Nintendo 

De acordo com um levantamento feito pelo site Solitaired, com 150 jogos populares lançados de 1985 a 2022, apenas 6% contam exclusivamente com protagonistas mulheres. O percentual para homens, no entanto, é de quase 70%. Entre eles, pouco menos de 14% apresenta opção de escolher entre um protagonista masculino ou feminino. Pouco menos de 9% dos jogos não atribuem um gênero específico aos seus protagonistas. O mais curioso é que, ainda assim, pelo menos no Brasil, as mulheres representam grande parte do público que consome videogames. Na PGB 2024, elas foram 50,9% dos gamers entrevistados. 

Yuri explica que os games ainda “correm por fora” quando o assunto é a representação de grupos minoritários – sobretudo quando comparados a mídias como o cinema ou a TV. Embora haja uma grande variedade de pessoas envolvidas no desenvolvimento dos jogos, a comunidade gamer mainstream (aquela considerada público-alvo pelas empresas), ainda pode ser muito barulhenta e conservadora. Para o editor, “a recepção do público ainda passa muito por grupos conservadores que estão dentro de uma comunidade que é colocada como nicho. Há, claro, variações dentro dessa comunidade – mulheres, LGBTQIA+ e pessoas racializadas jogam, sim”. 

Parte desse processo tem origem no fato de que, por muito tempo, os games foram desenvolvidos por homens e endereçados a outros homens. Por mais que as mulheres estivessem presentes no desenvolvimento dos games, atuando como roteiristas, designers e programadoras, de acordo com o artigo Mulejes Silenciadas, de Andrea Albano, publicado pela revista Hélice, esse trabalho foi tirado de contexto e até mesmo descredibilizado, o que teve como um dos resultados, as más representações dessas personagens. Por isso, para a autora, o videogame “ainda bebe das estruturas opressoras do heteropatriarcado que herdou da computação e áreas correlatas”.  

Mesmo em jogos mais recentes, como The Witcher 3: Wild Hunt (2015), ainda há resquícios desses efeitos. Foto: Divulgação/CD Projekt Red 

As raízes dos games

Surgidos nos Estados Unidos entre o final da década de 1960 e a meada da de 1970, os games como conhecemos hoje têm, em suas raízes, os feitos alemão Ralph Bayer, que foi o primeiro a criar um equipamento que processava jogos por meio de uma televisão, e a atuação da Atari no país, que foi a primeira a comercializar esse tipo de equipamento. 

É importante ressaltar que, desde o surgimento, os games vieram equilibrando dois fatores importantes que respaldaram o desenvolvimento enquanto mídia: a tecnologia militar e a contracultura universitária estadunidense que, na época, vivia o auge da cultura hippie. Enquanto Bayer era um engenheiro militar que criou o primeiro protótipo, a Brown Box, dentro de um complexo, a Atari surgiu no vale do silício trazendo consigo pontos alinhados com aquele movimento cultural. 

De acordo com Beatriz Blanco, doutoranda na Unisinos em Ciências da Comunicação, professora e pesquisadora especializada em games e cultura digital, nenhuma dessas áreas era conhecida por ter grande representatividade feminina. Em entrevista ao Casarão, ela conta que “durante os primeiros anos da indústria de games, para produzir um jogo, era necessário ter formação em engenharia elétrica, e esse não era um campo com muitas mulheres naquele momento”. A pesquisadora contou que havia, sim, mulheres trabalhando e, inclusive, empresas fora da curva nesse sentido, como a Sierra Entertainment, que era liderada por uma mulher e tinha times de desenvolvedoras. Mas, de fato, essa era muito mais a exceção do que a regra. 

A pesquisadora contou, também, que nos anos 1990, houve um movimento de entrada de mulheres no mercado de games norte americano que ficou conhecido como Girls Game Movement. É válido ressaltar que, até esse momento, a Atari, que era a principal empresa vinculada ao meio, se identificava como uma publisher que desenvolve games pensando em famílias. Por isso, mulheres e crianças até mesmo faziam parte das peças publicitárias da época. Contudo, depois dos crash dos videogames nas décadas de 1980 e 1990, período em que houve uma crise no setor dado o grande número de jogos e consoles sendo lançados (e muitos deles, de baixa qualidade), empresas asiáticas como a Sega e a Nintendo dominaram o mercado dos Estados Unidos e elas, sim, tinham um público bem definido: meninos jovens. 

Com esse novo panorama, uma nova preocupação tomou conta de acadêmicos e empreendedores: se as meninas não jogassem videogame, elas não criariam intimidade com a tecnologia, algo que era fundamental naquele contexto de desenvolvimento e informatização. Logo, havia a chance de que, se não aprendessem a trabalhar com computadores, fossem precarizadas. O Girls Game Movement surge a partir dessa necessidade e, inclusive, algumas empresas dedicadas a criar jogos voltados para meninas surgem a partir de debates oriundos desse momento. Além disso, as personagens femininas passam, então, a serem mais numerosas como uma “estratégia de marketing” para trazer o público feminino para a área. 

O relato de Beatriz sobre a chamada de mulheres para integrar essas empresas reforça outro episódio de igual importância para a representação das mulheres nos games: a estreia de Lara Croft em Tomb Raider (1996). A arqueóloga mais famosa dos videogames se tornou um caso marcante nessa jornada. Isso porque a personagem deu início a um novo momento da representação das mulheres nos games.  De acordo com Andrea Albano, a arqueóloga se tornou uma figura controversa por representar um “momento transitório” para as mulheres do games – do marketing para trazer mais mulheres à indústria para a sexualização dos corpos. 

Lara Croft foi a primeira personagem a ser considerada como sex symbol e deu início a uma nova era de representação ruim das personagens. Foto: Divulgação

Lara foi a primeira entre centenas de personagens que foram transformadas em sex symbol, dando início a uma cultura de representação gráfica diretamente relacionada aos “anseios masculinos”. A personagem foi desenhada para comunicar tanto sua capacidade de ser uma assassina mortal, nessa primeira edição do game, quanto sua sexualidade, um padrão que ficou conhecido como “Fenômeno Lara” por anos em diversas franquias. Até porque esse modelo de representação foi abraçado pela mídia e pelas empresas para garantir a audiência, sobretudo do público masculino. A estratégia, então, passou a ser investir em beleza e atratividade. 

Para Beatriz, entretanto, essas questões não podem ficar isoladas do fato de que os games foram criados a partir das referências no entretenimento nos anos 80 e 90, que também eram, em sua maioria, misóginas. Beatriz ressaltou que, naquele momento, os filmes de terror slasher sexualizados estavam em alta, bem como os de ação onde havia poucas heroínas e, além de tudo, uma ideia de sexo como capital para vendas que permeava toda a publicidade. Para a pesquisadora, “é evidente que as raízes patriarcais são uma das causas pelas quais até hoje as representações são misóginas. Mas não tem como isolar a indústria de games, que ainda estava se firmando como mídia naquela época, da cultura de entretenimento dos anos 80 e 90”, afirma. 

A pesquisadora explica que era comum encontrar referências estereotipadas de mulheres em jogos,filmes, seriados e até mesmo HQs. Além disso, não havia roteiristas especializados em games como acontece hoje e as pessoas que assumiam esses cargos, por vezes, eram os próprios game designers. Logo, não há como dissociar uma coisa da outra. Para Beatriz, “para entender essa questão, é preciso olhar para os jogos em um ecossistema de mídias maior”. 

Yuri faz o mesmo adendo. Falando sobre Lara Croft, o editor citou que, quando ela surge com seus “seios de cone pixelado”, essa representação é algo completamente normalizado no cenário da época. Ele relembra, inclusive, que os corpos femininos eram explorados em praticamente qualquer situação ou mídia dos anos 1990 – desde programas de TV a propagandas, filmes, seriados e, evidentemente, jogos. Os homens, por outro lado, eram heróis másculos, brancos e viris que, em boa parte das vezes, precisavam salvar uma donzela em perigo. 

Os games e o sentimento de “clube do Bolinha”

Dado o panorama de desenvolvimento dos games, que envolveu raízes patriarcais, referências de culturas misóginas e pouca participação feminina, os games se tornaram um “lugar seguro” para expressar a masculinidade. É nisso que se baseia o livro Die Trying (2008), de Derek A. Burrill, que trabalha com a ideia de boyhood – um estado idílico de companheirismo entre homens. Na informalidade brasileira, o conceito proposto por Burrill seria o que chamamos de “clube do Bolinha”. 

De acordo com o autor, o boyhood celebra valores tidos como masculinos na visão ocidental capitalista, como violência, competição e o apoio mútuo – tudo isso sendo sustentado dentro do ambiente virtual do videogame. A tese de Burrill é que os games funcionam como um espaço de escapismo para que os homens consigam exercer sua masculinidade – algo que, segundo o autor, precisa estar em constante manutenção. E as representações de mulheres como donzelas em perigo que precisam de salvação ou mesmo a sexualização dos corpos, ambas  citadas por Yuri durante a entrevista, são algumas das estratégias para assegurar  esse lugar.    

Para o autor, os videogames permitem não apenas uma fuga, como também a criação de uma utopia para o imaginário masculino. Um espaço longe do feminismo, sem responsabilidades políticas e sociais ou mesmo imperativos de classe. No livro, o autor explica que boyhood  “é uma experiência e um espaço no qual o menino digital pode ‘morrer tentando’; tentando vencer, tentando derrotar o jogo e tentando provar sua masculinidade (e, portanto, seu lugar no patriarcado, no mundo do capital e na Lei)”.

Beatriz também atribui o conceito a um dos grandes motivos pelos quais a mídia se construiu como algo patriarcal e que, até hoje, carrega alguns desses fardos. Mencionando o estudo de Burrill, a pesquisadora explicou que “o videogame é o espaço onde os homens podem exercer suas fantasias escapistas de poder. Por isso, esse é um lugar que é excludente para mulheres. Quando alguém  tenta trazer uma discussão social mais aprofundada para esse espaço, quebra a fantasia. E se chega uma mulher ali e diz ‘deveria haver mais mulheres aqui’, você causa uma perturbação e eles reagem agressivamente”, conclui. 

Stellar Blade está, atualmente, no olho de um furacão sobre discussões a respeito dos corpos femininos nos games. Foto: Reprodução/Luiza M. Martins

E o que acontece quando uma mulher rompe esse lugar?

Você descobre na segunda parte da reportagem d’O Casarão. 

Fontes:  

https://www.tecmundo.com.br/voxel/281459-73-brasileiros-jogam-videogame-aponta-pesquisa.htm#:~:text=No%20grande%20grupo%2C%2073%2C9,de%20jogos%20eletr%C3%B4nicos%20no%20Brasil.

https://materiais.pesquisagamebrasil.com.br/2024-painel-gratuito-pgb24?_gl=1*1f1e0jr*_ga*MTUyODI5MzQ1LjE3MTM4OTkyMjA.*_ga_RFEK9N8LH4*MTcxMzg5OTIxOS4xLjEuMTcxMzg5OTIzMC40OS4wLjA.

https://www.reportlinker.com/market-report/Video-Game/6108/Video-Game?term=video%20game%20industry&matchtype=b&loc_interest=&loc_physical=1001650&utm_group=standard&utm_term=video%20game%20industry&utm_campaign=ppc&utm_source=google_ads&utm_medium=paid_ads&utm_content=transactionnel-1&gad_source=1&gclid=CjwKCAjwuJ2xBhA3EiwAMVjkVNnRrk2-4-8KUpRzZuDw3vsA_1R_YNJzVBwS5VD5ZR5jfOy1pBx6KBoCp2gQAvD_BwE

https://veja.abril.com.br/tecnologia/mudou-de-fase-mercado-de-games-ja-fatura-mais-que-o-de-cinema

https://www.techtudo.com.br/noticias/2023/11/brasil-e-o-maior-mercado-gamer-da-america-latina-e-top-10-mundial-em-2023-esports.ghtml

https://mobile-magazine.com/articles/just-6-of-global-video-games-feature-a-female-protagonist

https://gamerant.com/video-games-with-female-protagonists-how-many/

https://www.digitaljournal.com/entertainment/pixelated-ceiling-only-6-percent-of-video-games-feature-a-female-protagonist/article

https://www.revistahelice.com/revista_textos/n_25/Helice.%202019%20Oto%C3%B1o-Invierno%20MUJERES%20SILENCIADAS.pdf

https://www.tecmundo.com.br/mercado/212272-crise-video-games-1983-afetou-mercado.htm

Referências Bibliográficas:

ALBANO, Andrea. Mujeres silenciadas: La representación del género y la técnica narrativa en el videojuego The Last of Us de Naughty Dog. Revista Hélice, Número 11. Volume IV, p. 26 – 44, 2018.  

BURRILL, D. A. Die Tryin: Videogames, Masculinity, Culture. New York: Peter Lang Publishing, 2008.

JANSZ, Jeroen; Raynel MARTIS. The Lara Phenomenon: Powerful Female Characters in Video Games. Sex Roles, vol. 56, [s.l.] p. 141-148, fev. 2007. 

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