Por Fernanda Nunes
Nos últimos anos, pudemos testemunhar uma era de transformações na comunicação. As inquietações a respeito do futuro do jornalismo não são mais direcionadas à sua permanência, mas sim em relação à forma como ele irá continuar existindo, afinal, os padrões de consumo e produção de notícia mudaram e cada vez mais o avanço das tecnologias de comunicação instigam o público a uma apropriação das narrativas antes invisibilizadas ou pautadas a partir de um ponto de vista hegemônico pelos grandes veículos, incapaz de compreendê-las e retratá-las com propriedade.
Dentro desse contexto, as rádios comunitárias se popularizaram no Brasil no início dos anos 90 com a importante missão de promover uma transformação social por meio da comunicação de base, abrindo portas para uma nova era do jornalismo alternativo.
O jornalista Ismael Lopes, um dos fundadores da primeira rádio comunitária do Brasil em 1991, a Rádio Novos Rumos, em Queimados, ainda em funcionamento no município da Baixada Fluminense (RJ), compartilha sua experiência como radialista neste período: “Eu lembro que a Novo Rumos foi uma experiência riquíssima. Nós tínhamos um programa chamado Manhã Novos Rumos, que eram quatro horas de programa, de oito da manhã até meio dia, direto. Éramos três comunicadores, gente na rua fazendo reportagem e tal, e a cidade parava para ouvir a gente, um negócio impressionante. Você passava nos camelôs e nas lojas, todos os rádios ligados lá na Novos Rumos. Quando saía de casa e ia caminhando pela praça até chegar à rádio, eu ia ouvindo como se fosse um som ambiente no meio da rua, porque as pessoas estavam ligadas aguardando a programação começar e era um negócio fantástico”.
Ismael encara iniciativas de comunicação comunitária nos territórios de periferia como frentes de enfrentamento a um monopólio de comunicação e destaca seu papel político e social “É uma ferramenta de integração social, um espaço de convivência democrática, de ideias, reivindicações, é um espaço muito importante para uma comunidade. As rádios comunitárias surgiram no rastro da luta pela democratização da comunicação do país”.
Com a chegada dos anos 2000 e a progressiva popularização da internet, os blogs, rádios e revistas online se tornaram aos poucos espaços comuns de troca de informação e entretenimento, mas a virada de chave para que esse espaço fosse encarado e utilizado como uma plataforma potente para o jornalismo foi durante as históricas manifestações de 2013. As mobilizações populares que aconteceram por todo o país naquele ano impulsionaram a criação de alguns portais ativistas de notícias que hoje são reconhecidos em todo território nacional, como o Mídia Ninja, além de um novo perfil de comunicadores independentes, que precisavam apenas de um dispositivo móvel e coragem para pautar suas narrativas de um ângulo até então não explorado pelos grandes veículos.
Um dos comunicadores independentes que surgiu nesse período foi o fotojornalista Lucas Landau. Hoje conhecido por seus registros sobre Amazônia e ativismo indígena para a revista internacional Reuters, Landau conta que foi em meio às manifestações que fez seus primeiros cliques voltados para o jornalismo e logo seu trabalho foi reconhecido pela revista, onde até hoje cobre, de maneira freelancer, eventos políticos importantes no país para a imprensa internacional.
“Eu diria que 2013 foi uma escola. Eu fui aprendendo como fazia o jornalismo de agência, como fazia o jornalismo local, eu via a diferença das pautas do jornalismo que eu fazia para o Internacional, pro jornalismo local. O fotógrafo do Globo fazia um tipo de abordagem, o fotógrafo do Mídia Ninja fazia outro, eu também tinha outro tipo de abordagem. Então isso foi muito legal de aprender: a diferença de jornalismo, a diferença de visão, a diferença de assunto”, conta o profissional.
Ele ainda destaca a importância da diversidade de olhares trazidos por jornalistas independentes naquele contexto. “Eu acho que eles são fundamentais porque acessam pessoas e lugares onde a Reuters e a Globo não estão, eles comunicam para pessoas que essas e outras grandes empresas não comunicam. Eu acho que eles contam a história de um jeito muito mais próximo das pessoas que estão assistindo do que a gente conta”
Segundo o Digital News Report de 2023, apenas 22% dos entrevistados na pesquisa afirmam consumir notícias diariamente por meio de sites ou aplicativos, a maioria das pessoas utiliza as redes sociais para ler o noticiário. . Com dados tão expressivos quanto esses, até mesmo os grandes veículos de comunicação tradicional se adaptaram a essa nova tendência, porém, no mundo virtual, a realidade é bem diferente, como observa Ismael Lopes
”Nós vivíamos e ainda vivemos, numa certa medida, uma espécie de monopólio da comunicação pelos grandes veículos. Hoje, a internet acabou quebrando isso de certa forma. O maior golpe, acredito, que os grandes meios de comunicação sofreram foi o surgimento das redes sociais, com todo esse vigor que têm, com toda essa liberdade, isso tirou muito o poderio dos grandes jornais, revistas, rádios. Democratizou mais um pouco”.
A jornalista e produtora de conteúdo Nathália Braga é um dos exemplos de como a internet pode viabilizar que narrativas não-convencionais ganhem espaço por meio das redes sociais.
Após trabalhar como apresentadora no The Intercept Brasil, Nathália vem utilizando sua plataforma para falar de assuntos relativos à comunicação, raça, gênero e sexualidade, partindo de uma perspectiva que foge do padrão do jornalismo tradicional, e dando luz a temas que pouco são abordados pela grande mídia. Ela conta que mesmo com poucos recursos, os jornalistas independentes e populares conseguem fazer um trabalho de alta qualidade que muitas vezes são “abocanhados” por empresas de comunicação maiores e que, apesar disso ser um indicativo do potencial de impacto da comunicação popular, a distinção feita dentro do próprio meio pode ser um impeditivo para a evolução do jornalismo como um todo.
“Acho que [os comunicadores populares e independentes] são tratados como uma subcategoria profissional no jornalismo, em termos de relevância, de qualidade, mesmo aquelas que trabalham com isso há anos a fio, sustentam projetos. Não é comum olhar para essas pessoas e encará-las como grandes administradores, jornalistas renomados, pessoas experientes em entrevista, investigação, edição de conteúdo, todo tipo de coisa. Eu acho que é um olhar muito mais rígido, e desnecessariamente rígido, que fecha oportunidades de parcerias e de inovação também, porque acaba que muito do que é feito seriam excelentes tendências de inovação pro jornalismo que não são aproveitadas.”
Aliás, oportunidade é a palavra-chave quando se trata de comunicação popular e jornalismo independente, e tanto Landau quanto Nathália destacam a falta de investimento como fatores inibidores do fortalecimento dos seus trabalhos.
“Eu acho que as as oportunidades de negócio, assim como as bolsas de financiamento, são muito escassas, escondidas e burocráticas também […] No dia a dia é um negócio ultracomplicado de você se inscrever, cheio de detalhes. Nessa, acaba se tornando inacessível por conta da forma como é divulgado, do modo de preenchimento e do que te exige”, diz Nathália.
Nesse contexto, o diálogo com instituições públicas se torna primordial para a regularização e incentivo do trabalho de profissionais que visam uma transformação social por meio da comunicação popular.
Pensando nisso, após 14 anos em hiato, jornalistas, pesquisadores e representantes de iniciativas de comunicação comunitária de Niterói e redondezas se reuniram com representantes da prefeitura na II Conferência de Comunicação de Niterói. Os encontros, que ocorreram do dia 7 a 10 de março de 2023, promoveram uma série de debates com a sociedade civil sobre democratização da comunicação, comunicação comunitária e empreendedorismo, e culminaram em uma plenária na Câmara dos Vereadores, onde foram definidas e aprovadas 41 iniciativas de fortalecimento da comunicação popular cidade. Entre elas, estão: a criação de um Conselho responsável pela articulação com a sociedade civil, educação midiática nas escolas, internet em comunidades, redes de acesso público em determinados pontos da cidade, dentre outras.
O professor universitário e integrante do Conselho à frente dessas mobilizações, Adilson Cabral, explica que essas propostas não atendem somente os interesses dos profissionais de comunicação, mas perpassam diversas demandas sociais
“A oferta de banda larga nas comunidades, hoje, passa pela necessidade de uma segurança pública que viabilize a entrada dos técnicos das operadoras de telefonia de telecomunicações para viabilizar instalações adequadas para a população. E isso é um problema que envolve não só comunicação, como segurança pública também”, exemplifica.
Mesmo com toda essa mobilização e um indício de progresso, com a aprovação dessas iniciativas no ano passado, até hoje não houve um retorno por parte da prefeitura quanto à viabilização efetiva dessas propostas. Para Landau, quando se trata do diálogo com o governo, as expectativas não são das melhores. “O jornalismo incomoda, né? Ainda mais governos. Então eu acho que o pensamento de um governo em não incentivar e investir em educação é a mesma cabeça de não incentivar a investir em jornalismo: ‘Por que a gente vai fazer isso se depois vai voltar contra a gente?’, ao que complementa Nathália: “É mais fácil um comunicador popular incomodar e ser, indiretamente ou por encomenda, atacado ou morto por incomodar o governo do que ser fomentado”. Mas para o professor Adilson, a mudança desse cenário não é impossível e pode ser alcançada através da união. “ Precisamos de gente demandando essa política fora do status de decisão para que tenha valor em relação à agenda dos tomadores de decisão. Então a gente precisa fazer o quê? Uma mobilização mais ampla de movimentos sociais que estiveram na segunda conferência, mas também estão acompanhando esse debate hoje, também compreendem a importância da existência do conselho pra gente falar: “olha, seu prefeito, a gente precisa realmente que esse conselho vá pra frente de uma certa forma o mais rápido possível”, diz.
Durante a penúltima semana de maio, eles voltaram a se reunir com os vereadores e gestores da comunicação pública para retomar a discussão sobre as propostas. As expectativas são altas, mas Adilson conta com o engajamento de todos para que isso dê certo “Quanto mais engajamento, quanto mais consciência tiver em torno da necessidade dessas propostas, mais a gente vai levá-las adiante e criando política pública”.