Atravessando os desafios midiáticos, políticos e econômicos, a maior roda de rima do estado do Rio retorna com mais fomento
Por Davi Martins
O retorno da Roda Cultural, na quadra da Unidos da Porto da Pedra, foi um dos grandes eventos que ocorreram em São Gonçalo no final de 2023. O encontro não apenas teve a tradicional Batalha do Tanque, que contou com todos os grandes MC’s precursores do freestyle em São Gonçalo, mas também com a participação de grandes nomes do Rap Nacional, como MC Marechal, e um show do MC Orochi, cada vez mais consolidado na cena do trap carioca. A Batalha do Tanque é um fenômeno cultural da cidade de Gonçalo que alcançou enorme magnitude nos últimos anos, revelando grandes nomes da cena artística contemporânea.
O Início como Manifestação Cultural
A maior Roda Cultural de Rima não apenas de São Gonçalo, mas do Rio de Janeiro, completa 11 anos. A Batalha do Tanque, que ganha seu nome em homenagem ao grande tanque de guerra posto na Praça das Combatentes, ocorre toda quarta-feira, às 20h, em frente a Faculdade de Formação de Professores da UERJ, no bairro do Patronato, próxima ao Morro do Feijão. Começou como uma roda entre jovens fãs de rap/funk/trap que enxergaram no rap freestyle uma nova forma de expressão diante dos preconceitos e das desigualdades que presenciaram e viam, sendo em sua maioria jovens negros e periféricos, e foi atraindo cada vez mais atenção desses jovens, que compareciam para ouvir os MC’s que vinham se destacando na cena do rap nacional.
O evento logo começou a viralizar nas redes sociais, se tornando a roda de rima mais assistida no Youtube entre 2015 e 2017, com batalhas que atingiram a marca de milhões de visualizações (a mais assistida possui mais de 8 milhões de visualizações), sempre se destacando por ter um tom mais satírico em comparação com as outras rodas de rima que possuíam por essência o tom crítico em relação a diversos problemas da sociedade. Com rimas mais descontraídas e humorísticas, mas sem deixar de lado a crítica, a Batalha do Tanque foi conquistando a cena do Rap brasileiro.
MC’s como Orochi, Samurai, Choice, Jhony, Fael, Pelé MilFlows, MZ, Knust, Azzy, PK, Buddy Poke e Lya foram se destacando e ganhando cada vez mais espaço entre os demais do Brasil, sendo o próprio Orochi campeão do Duelo de MC’s Nacional de 2015, realizado anualmente embaixo do Viaduto Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte, enfrentando grandes nomes do Rap como Alves e Noventa (ES). Em 2016 também esteve um remanescente do Tanque na final do Nacional. Samurai MC perdeu a disputa para o Sid MC (DF). Já em 2017, coube a Choice representar o Rio, mas acabou sendo eliminado nas quartas-de-final diante do Krawk MC (SP).
Somado a esse sucesso dentro do campo do Rap Freestyle, muitos desses MC’s também seguiram em carreira musical fora das rodas de rima. A partir de 2015, surgem inúmeros grupos de rap melódico e rap acústico que causaram enorme sucesso, ganhando maior destaque os grupos ‘ModestiaParte’ (Orochi), ‘Class A’ (PK) e ‘1Kilo’(Pelé MilFlows, MZ, Knust, Xamã). Hoje, muitos deles estão consolidados na cena artística como jovens promissores, seja Orochi, como fundador da Gravadora Mainstreet, Xamã e Azzy como cantores e também atores de novelas da Globo, e tantos outros.
Como poderia então, a Batalha do Tanque ter vivido um longo hiato sem a realização de batalhas, para agora voltarem a ser realizadas?
As Principais Dificuldades
A Roda Cultural de São Gonçalo foi a precursora da digitalização das Batalhas de Rima. Seja a Batalha do Coliseu (RJ), Batalha da Aldeia (SP), Batalha da Leste (SP), Batalha do Museu (DF), Batalha do Mar de Monstros (ES) e tantas outras, essas rodas de rima ganharam enorme massificação de acessos e seguidores nas redes sociais na marca dos milhões, construindo um mercado que movimenta gravadoras e empresas de comunicação.
MZ MC, hoje um dos apresentadores da Batalha do Tanque e expoente do Rap fluminense, deu uma entrevista ao canal Rap Box ainda em 2017, analisando o boom comercial que envolveu a batalha e a forma como o público mais antigo iria reagir à essa nova face das batalhas, com uma mensagem demasiadamente satírica. Durante a entrevista, MZ faz um apelo para uma possível mudança na mensagem trazida durante as batalhas:
“Então está na hora de o público tomar uma atitude, os MC’s tomarem uma atitude, porque isso é um retrato do rap. Todo mundo coligado agindo e não uma galera em cima do palco, fazendo um espetáculo pra nego rir e bater palma, então vamos valorizar o que a gente tem, enquanto a gente ainda tem”.
Como era esperado, a grande leva de MC’s acontece. De um lado, grandes MC’s iam se consolidando na indústria musical com seus grupos (Orochi, Xamã, Pelé, Azzy, Choice, Knust, MZ, PK). Do outro, inúmeros MC’s buscavam outras rodas de rima pelo Brasil afora para rimar (Jhonny, Fael, Nego Drama, Doug, Lya, Samurai), como a Batalha da Aldeia que foi ocupando o posto de batalha mais viralizada nas redes sociais. Todos os grandes MC’s da Roda de São Gonçalo participaram nela, que ocorre em Barueri, toda terça-feira.
Passada a era dourada da Batalha do Tanque, a sensação era de que o evento parou no tempo, não sabendo acompanhar essa onda de viralização das rodas de rima dentro das redes sociais, perdendo o espaço midiático.
A partir de 2021, uma parceria traria mudanças significativas ao resgate da Batalha do Tanque. A Secretaria de Turismo e Cultura de São Gonçalo lançou apoio público à realização da batalha, o que é um fato inédito na história da Roda Cultural. Desde os primórdios da Batalha, não havia qualquer resguardo ou fomento por parte do poder público para a realização segura da Batalha, sendo sempre por meio do organizador Felipe Gaspary com colaboração do público e dos MC’s, que sempre buscaram contribuir dentro do seu alcance, em uma roda composta por pessoas periféricas, de menor poder aquisitivo e muitas vezes marginalizadas.
Segundo o vereador gonçalense Romário Régis (PSB), um dos primeiros políticos da cidade a lutar pelo apoio do poder público à Batalha do Tanque, o grande desafio político é gerar não apenas na sociedade, mas na classe política, uma reflexão coletiva de que cultura é investimento, tornando a Batalha do Tanque não apenas um evento, mas uma atividade cultural que consolida uma imagem de pertencimento de dentro e para fora da cidade, como Claudinho e Buchecha, Palhaço Carequinha e tantos outros.
“Há uma falta de conhecimento da classe política sobre as novas maneiras de organização dos jovens. É um fato que a classe política se distanciou das ruas, das pessoas e também há um preconceito histórico de produções culturais de territórios populares.Muita gente associa a Batalha do Tanque à desorganização, a coisas que não têm nada a ver com a cultura hip-hop”, reconhece o vereador.
Contudo, nos últimos anos se tem visto um aumento de participação do poder público na cena do Rap. No final de 2021, por exemplo, o Teatro Municipal de São Gonçalo recebeu a Liga Gonçalense de Freestyle, que reuniu rodas de rima de mais de 5 bairros no município. O retorno da Batalha do Tanque está cada vez mais sendo concretizado, com maior presença também nas redes sociais e com a presença de MC’s de destaque de outros estados, como Prado (SP), Moita Treta (SP) e muitos outros.