Com a Política Nacional de Cuidados Paliativos aprovada em dezembro (2023), o assunto ganha força e nos faz repensar as partidas
Por Luiza Menezes
O mês de dezembro de 2023 foi marcado por muitas conquistas para os defensores dos cuidados paliativos, vertente da medicina que prioriza a humanização e o conforto dos pacientes em fim de vida. A aprovação do Projeto de Lei 2460/22 assegurou a criação do Programa Nacional de Cuidados Paliativos, que promete a estruturação do serviço que hoje funciona por meio de iniciativas isoladas. O projeto prevê a liberação de R$851 milhões para a montagem de 1.321 equipes multidisciplinares no SUS, a inclusão da abordagem no currículo dos profissionais e a confecção pelo ANCP de um Atlas que servirá de material de consulta para que o Ministério da Saúde organize e direcione melhor os serviços nos estados.
Em 2025, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) vai comemorar seus 20 anos enquanto principal entidade de representação comprometida com o desenvolvimento e reconhecimento da área de atuação no Brasil. Mas o assunto ainda chega como novidade para muitos, dada a falta de informação, o preconceito e pouca preocupação com a dignidade, que se estabelece hoje como recurso de luxo no país considerado o 3º pior lugar para morrer.
A especialidade médica dos cuidados paliativos propõe uma nova visão, seja para a passagem no hospital ou para a transição entre vida e morte. A cultura privilegia procedimentos não invasivos, a tomada de decisões conjuntas e o acompanhamento de equipes multidisciplinares, tanto para o paciente como para sua família.
Durante a votação que gerou a aprovação do Projeto de Lei, a deputada Luísa Canziani citou os resultados de um estudo publicado no periódico acadêmico Journal of Pain and Symptom Management, ouvindo 181 especialistas: segundo o artigo, a saúde terminal dos brasileiros recebeu nota ‘F’, classificação pior que a do Haiti, país mais pobre da América.
Para a Dra. Renata Corrêa, o estranhamento sobre os cuidados paliativos pode estar ligado ao comportamento cultural de cada tempo em relação à morte: “Eu acho que a gente conversa muito pouco sobre a morte. Antigamente, ela fazia muito mais parte da nossa vida do que agora. As pessoas eram veladas em casa, faleciam em casa, e à medida que o conhecimento científico e tecnológico foi evoluindo, a morte foi parar dentro de hospitais. Um lugar frio, com pacientes em tubos, cheios de fios e horários restritos para estar com seus entes queridos”.
Renata Corrêa, médica geriatra especializada em cuidados paliativos, conta que teve o primeiro contato com a área em 2009, em uma capacitação na Universidade Aberta da Terceira Idade (CEPUERJ/UERJ).
“Eu resolvi fazer a formação por conta dos meus pacientes da Geriatria. No início era tudo muito voltado para os casos oncológicos, mas as doenças degenerativas começaram a chamar atenção (demência senil, parkinson, alzheimer, etc). Como a cultura estava muito pouco difundida, passamos por situações desafiadoras até no meio médico. Ganhamos a confiança das pessoas aos poucos, mas desde o princípio consegui testemunhar aquilo que o trabalho planta na vida das pessoas. A gente cuida do paciente até ele chegar na fase de fim de vida e atuamos diretamente nesse fim, trabalhando perspectivas, alinhando desejos, respeitando escolhas e aliviando o sofrimento. Quando acontece a partida, mesmo em um momento de dor da perda de um parente, o que a gente recebe das famílias são agradecimentos. O carinho e a dignidade criada com os cuidados paliativos transformam para sempre a percepção e a experiência médica”, detalhou a médica.
Cuidados paliativos como oportunidade de aprendizado
“Os cuidados paliativos chegaram na minha família junto a um sentimento de impotência e perda de controle da doença. Havíamos percebido uma queda brusca das funções de minha mãe, quando a neurologista me aconselhou a buscar auxílio psicológico. Eu estava vivendo o luto em vida, segundo suas palavras. Mas a cultura paliativista me apresentou uma forma digna de lidar com a finitude, me mostrou que cada dia a mais vivido é uma oportunidade de dar o nosso melhor ao outro e agradecer a oportunidade de estar ao seu lado. É quando compreende-se o ciclo da vida e constata-se que existe o momento de nadar a favor da corrente, e não deter a correnteza, mas sair dela sem esgotamento físico, mental e espiritual”, descreve Irma Rocha, filha de uma paciente de 86 anos que hoje recebe os cuidados paliativos em casa.
Irma conta que o quarto da mãe foi adaptado de acordo com as novas necessidades e que ficou acordado que sua partida ocorrerá preferencialmente no lar. Hoje, a idosa pode aproveitar seu tempo ao lado da família, que conhece como ninguém os melhores estímulos para fazê-la, dentro de suas limitações, se conectar: “Músicas, sons, histórias, nomes, estamos sempre falando ao pé de seu ouvido para que se sinta parte. E aqui ela ainda está longe dos riscos de um ambiente hospitalar”.
Embora sejam claros os benefícios desse tipo de tratamento, o acesso a ele ainda é um privilégio. Irma se diz grata por ter tido a oportunidade de dar a sua mãe o serviço particular, mas destaca que o desgaste existe em todo lugar: “A maioria não tem condições de obter um plano particular, e mesmo nos casos de quem tem, hospitais especializados em cuidados paliativos não são cobertos por todos eles. O serviço de internação domiciliar gera ainda mais problemas. O governo tem a sua versão, o programa Melhor Em Casa. Já o particular, proporciona o Homecare. Ele determina a frequência de atendimento, materiais e medicações de acordo com a pontuação de dependência e morbidade do paciente. Logo nos primeiros momentos, pude sentir a visão comercial da avaliação. Entre cliente e plano há sempre resistência para conceder aquilo que é um direito. Com dinheiro ou sem dinheiro, a sensação é de implorar pelos serviços enquanto assistimos à situação de mãos atadas”.
A edição de 2023 do Atlas de Cuidados Paliativos mostrou que a maior parte de serviços se concentra no SUS (52,5%), que oferta 123 unidades. Enquanto isso, 75 unidades (32%) são instaladas em hospitais privados e 36 (15,3%) em instituições de atendimento público e privado. Desde 2019, foram registrados 128 novas entradas (+22,51%), mas a média ainda não é boa: 75,3% da população brasileira dependem exclusivamente do SUS, que hoje oferta 1 serviço para cada 1,6 milhões de pessoas na rede pública.
Caminhando a curtos passos: Os cuidados paliativos já têm espaço nas faculdades?
Nas faculdades de Medicina, a mesma realidade: a cultura paliativista caminha a pequenos passos. O estudante do 9º período, Victor Hugo Goulart, realiza hoje o internato, período no qual o aluno ganha experiência prática intercalando entre diversos hospitais. Da intensa parte teórica atrelada ao currículo do curso, Victor se lembra de ter tido contato somente uma vez com os cuidados paliativos.
“Meu primeiro contato com cuidados paliativos foi em uma aula sobre o assunto, no 3° período da faculdade. Era início de pandemia, naquela transição para o início do online, e lembro que na época os alunos trataram como mais uma aula, mesmo com a professora frisando sua necessidade. Com o passar dos períodos, o assunto era sempre citado, e hoje, aliando a prática com o ganho de maturidade, passamos a valorizar um conteúdo que antes era visto como chato. Os cuidados paliativos estão no dia a dia do internato, no trato com pacientes em estágios mais avançados de câncer, sequelas de AVC e doenças terminais”, detalhou o interno.
Dra. Renata Corrêa encara com normalidade a postura dos alunos e aprecia a beleza do momento em que as abordagens mais cobiçadas dão lugar às preferenciais: “Nos cuidados paliativos, a gente não costuma ser muito invasivo. Não escolhemos, por exemplo, a intubação, às vezes não fazemos nem mesmo os procedimentos que envolvem acesso venoso, que podem ser incômodos e repetitivos, sobretudo para pacientes que já têm um certa fragilidade. Como alternativa, usamos a hipodermóclise, uma hidratação pelo subcutâneo. O estudante de medicina, quando entra na faculdade, ele quer salvar vidas, quer fazer um corte, participar de uma grande cirurgia e até tirar sangue, a depender do momento, fica chato. É só depois de muitas primeiras vezes, do envolvimento com histórias de familiares e pacientes e de um contato que é totalmente diferente com a morte, que nossas bagagens passam a nos dizer coisas diferentes”, reflete.
“Eu acho que é um assunto que ainda enfrenta muito preconceito, as pessoas ficam com ‘final de vida’ e ‘não tem mais solução’ na cabeça. Como se fosse uma contagem regressiva para a morte mesmo. Enquanto, na verdade, os cuidados paliativos estão aqui para oferecer conforto e melhora da qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares, porque uma doença nesses estágios, quando chega, muda completamente a dinâmica familiar. Não indicar esse tipo de serviço é como tapar os olhos para uma situação que pode ser melhor. Tenho certeza que isso vai melhorar com o passar do tempo e com o aumento da conscientização e dos esforços. Hoje, não me vejo em um futuro onde não queira ser um médico atento e aberto às possibilidades.”, finalizou Victor Hugo, que viu sua perspectiva mudar.