Por Andrezza Gomes
Acordar cedo, sentar no sofá e assistir à lista de desenhos animados, ou, chegar da escola e ligar nos programas juvenis já é um hábito que ficou para trás. Por muito tempo, a TV foi mais que amiga de gerações, que se identificavam com os produtos que não só dialogavam com assuntos do cotidiano, mas também marcava um papel importante de companheirismo para muitos jovens. Segundo o levantamento realizado em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE), 67,373 milhões de famílias possuem o aparelho em seus lares, número que torna a televisão um dos meios de comunicação mais acessíveis atualmente. Apesar do uso da internet não ficar tão distante disso, a retirada de programas tradicionais da grade da telinha é algo que cria muitas dúvidas, principalmente para aqueles que cresceram com os sucessos de faixas consolidadas, como “Bom dia e Cia” e “Malhação”.
Embora ainda exista o sentimento nostálgico e o apreço principalmente das “crianças adultas”, as emissoras que encerraram essas programações no último ano tiveram motivos econômicos, publicitários e estratégicos pensados com muita cautela antes da decisão final. No ar desde os anos 90, os programas não conseguiram acompanhar as transformações velozes do formato, muito menos a geração, que mudou rapidamente.
“Malhação” e “Bom dia e Cia” não prendem mais a atenção da maioria do público alvo, que vem trocando a TV por outros meios midiáticos. As mudanças de preferências das gerações trouxeram maus números de audiência para a telinha. O folhetim teen, que chegou aos 30 pontos em 2003, foi encerrado com apenas 18 pontos em sua última edição inédita. Já o programa infantil do SBT também teve uma queda em 2012, com a saída dos apresentadores Priscila Alcantara e Yudi Tamashiro e se manteve baixa até 2022, onde marcou apena 2 pontos, segundo o TVPop.
O conflito de gerações é acompanhado de perto pela desenhista Ana Laura Costa, 19, que é irmã de Manuela, de 6 anos. Diferente da pequena, Ana cresceu com a TV aberta, o que a tornou fã de telenovelas e desenhos animados.
“A relação da minha irmã com a televisão aberta é zero, ela não assiste. Primeiro, porque praticamente não tem programa de criança, mas também porque, com o YouTube, ela nem precisa esperar. Nem TV por assinatura ela gosta de ver, porque precisa esperar passar o que ela quer. Manu vai lá, pesquisa o que quer e assiste. E isso é muito engraçado, porque quando eu era criança, tinha que esperar o horário do meu programa e quando eu não estava passando o que eu queria, não tinha o que fazer. Mas ela não, ela tem poder de escolha”, comentou Ana Laura.
O desinteresse dos mais novos não foi a única causa do fim dos programas infantis. Em 1990, o Código de Defesa ao Consumidor decretou a lei nº 8.078, que caracteriza a publicidade infantil como uma prática abusiva e ilegal e, em 2014, O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) estreitou a regulamentação, transformando toda e qualquer publicidade direcionada as crianças e adolescentes ilegais, o que desmotivou as emissoras, que mantém a publicidade como um dos seus pilares. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente exige o monitoramento psicopedagógico dos apresentadores mirins das faixas.
A coordenadora do “AnimaMídia”, projeto de extensão da Universidade Federal Fluminense, Ariane Holzbach relembra que o ECA passou a “dar algumas diretrizes que não haviam antes vinculadas tanto ao trabalho artístico infantil, quanto aos conteúdos a que esse público teria acesso. Então, de um lado, o estatuto trouxe positivamente cuidados que as empresas deveriam tomar para o trabalho artístico infantil, que seria mediado por uma equipe multidisciplinar, mas espantou um pouco a inserção de crianças protagonizando programas. Temos o balão mágico, por exemplo. Isso acaba naturalmente espantando as emissoras para que elas investissem no público infantil como trabalhadores das suas emissoras”.
O SBT manteve crianças em seu tradicional “Bom dia e Cia” até 2015, quando Silvia Abravanel assumiu seu comando, mas ainda conta com conteúdos inteiramente para os pequenos, como as telenovelas, exibidas desde 2012. Quase na mesma época, a TV Globo também acabou definitivamente com a TV Globinho, que ainda resistiu aos sábados diante a substituição diária pelo “Encontro com Fátima Bernardes”, também no ano de 2012.
Cadê a novelinha teen que estava aqui?
Há quase 27 anos no ar, “Malhação” chegou ao fim oficialmente no ano passado, com a reexibição da temporada ‘Sonhos’, de 2014. A faixa deu lugar a uma estendida edição de Vale a Pena Ver de Novo, que entrega o horário diretamente a novela das 6h. De acordo com o site NaTelinha, o seriado não agregava para o público majoritário do horário, liderado por pessoas mais velhas, que ou se interessavam pela reprise de telenovelas clássicas ou pela novela que entregava a programação noturna, além da baixa audiência, que marcou 15,6 pontos em sua última exibição.
Apesar dos maus resultados, a novelinha era o único programa da TV aberta direcionado ao público adolescente. Em anos, outras emissoras tentaram reproduzir o formato da série, mas não obtiveram sucesso. Malhação sempre carregou uma legião de fãs, não só por conversar com os telespectadores, mas por adotar iniciativas que as novelas tradicionais da emissora e até dos canais concorrentes não costumavam entregar, como os recursos transmídia, que incentivavam os jovens a participarem da história.
Para o jornalista Richardson de Sousa, que descobriu o amor pela profissão dedicando seu tempo e admiração às temporadas de Malhação por mais de cinco anos, o fim do seriado carrega uma problemática ainda maior que contribui para a desigualdade social.
“Os programas jovens na TV aberta fazem muita falta, por mais que hoje os jovens tenham acesso a outras produções de outras plataformas, a gente tem que ver que não são todos os jovens que vivem essa realidade, né? A TV ainda alcança muito mais pessoas, ela chega em lugares que a internet não chega. Então acho que produtos para jovens é uma forma de trazer conhecimento, de entreter, de trazer um programa que o público se identifique, que fale sobre jovens para jovens e que alcance todo mundo. Nós temos exemplos de novelas com os núcleos juvenis como ‘Vai na fé’, mas não é um programa inteiramente destinado aos jovens, então acho que faz muita falta”. Richardson é criador do “Hora do Entretenimento”, blog que acumula mais de 160 mil seguidores e traz notícias sobre o universo televisivo. O produto começou com um fã-clube para o seriado teen, que logo ganhou força. A jovem Emily Mello, 21, fã da última temporada exibida, também compartilha do mesmo sentimento. A administradora da página Moments Malhação Sonhos lamenta que “a nova geração não vai saber o que é sentar e assistir o conteúdo feito para elas, que te faz embarcar junto”.
Ainda que exista a facilidade da nova geração, a psicopedagoga Patrícia Silva diz que com o uso de telas e a ausência de horários fixos, os jovens “perdem oportunidades valiosas, principalmente os menores, de praticarem algumas habilidades importantes. Elas precisam desenvolver tantas coisas e a tela “rouba” isso quando elas ficam presas a elas com conteúdo ilimitado. Diferente do que era da TV aberta, que muitas vezes elas deixavam de assistir a uma programação porque não interessava, agora elas podem assistir exatamente o que elas querem”.
De acordo com estudos realizados pela Askids, empresa Latino-Americana que pesquisa os interesses do público infantojuvenil, os serviços de streaming alcançam 86% das crianças e adolescentes no Brasil. O número pode até representar avanço no acesso à internet no país. Contudo, os canais de televisão aberta fazem parte de uma concessão pública e devem seguir uma grade que agregue todos os públicos, e não se tornar um produto elitista. Ariane Holzbach chama a atenção para outro ponto pouco comentado: uma vez que as crianças não estão inseridas nessas plataformas, elas são expostas aos conteúdos adultos, o que pode ser prejudicial para o desenvolvimento infantil.
“É um fenômeno que já tem acontecido, mas agora aparece de forma mais forte que é o fato de que as crianças sempre entraram em contato com conteúdos que não são direcionados para elas. A gente tem na memória afetiva a nossa relação com determinados programas que não eram feitos para gente, com alto conteúdo de violência, por exemplo, ou até de conteúdo sexual, dependendo da dinâmica familiar. Acho que o fenômeno contemporâneo deixa isso mais explícito e faz com que as crianças acabem se relacionando com a televisão numa perspectiva que tem mais conexão com a cultura adulta”, concluiu Ariane.
Embora existam as problemáticas e o apelo dos telespectadores, ao que parece a TV Globo e o SBT não pretendem retornar os conteúdos infanto juvenis para as grades. As emissoras continuam investindo em obras do gênero, só que agora, somente veiculadas nas plataformas de streaming, com exceção da segunda, que recentemente adotou um formato híbrido inédito com a novela infantil “A Infância de Romeu e Julieta”, exibida simultaneamente no Prime Video e no SBT.