Histórias em quadrinhos ainda são vistas, em muitos casos, como subproduto da literatura
Por Ayam Fonseca
A recente disputa pela 8ª cadeira da Associação Brasileira de Letras (ABL) reacendeu uma velha controversa no campo das letras: seriam os quadrinhos um gênero literário? Maurício de Souza, cartunista, empresário e criador da Mônica, a mais famosa personagem das histórias em quadrinhos brasileira, entrou na disputa pelo fardão. Na carta endereçada ao presidente da Academia, Merval Pereira, ele defendeu sua candidatura:
“Penso que nossa função, como autores, é criar novos leitores. A ABL é o centro de valorização, não apenas do autor brasileiro, mas do leitor. Sem o leitor, não há a mágica da literatura. E para, se conquistar o leitor, a melhor época é a infância. E este o será para sempre”.
Nos últimos anos a Academia tem tentado se tornar mais popular e atrair mais atenção do público. Em virtude disso, a ABL tem se tornado mais flexível na hora de eleger os candidatos que ocuparão as cadeiras e se tornarão “imortais”, dando mais espaço a figuras mais conhecidas pela população geral, como foi o caso da atriz Fernanda Montenegro e do músico Gilberto Gil, eleitos em 2021 para as cadeiras 17 e 20, respectivamente, e não apenas aos tradicionais intelectuais com pouco apelo fora do meio literário, como era de costume na casa. Essa iniciativa lançou mais luz sobre a Academia, e as eleições que envolveram personalidades queridas pelo grande público receberam mais atenção da mídia que de costume. A inserção dessas figuras que são ligadas a outras áreas da cultura sempre foi algo controverso dentro da ABL, e muitas vezes criticada, contudo segundo o site da Academia, as únicas exigência para participar da eleição são “ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário”.
A candidatura de Maurício de Sousa seguia pela mesma toada, mas foi inflamada após as declarações do jornalista James Akel, que também pleiteava a posição. Em entrevista à Revista Veja, Akel rebateu a tese de Maurício, afirmando que histórias em quadrinhos não estão no campo da educação, mas do entretenimento.
No final das contas, nem Mauricio de Sousa, nem James Akel conseguiram a cadeira, que foi ocupada pelo filólogo, escritor e professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ricardo Cavaliere. Contudo, toda essa polêmica rendeu um bom debate: afinal, quadrinhos são literatura?
Para o professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e vice-líder do NuPeQ (Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos), Daniel Abrão, os quadrinhos não são literatura, porém eles não concordam inteiramente com Akel. Segundo Abrão, quadrinhos não são literatura porque eles não precisam ser literatura. “Quando alguém afirma que quadrinhos são literatura, ele está querendo ‘elevar’ o patamar dos quadrinhos à literatura. A literatura hoje tem um status consolidado dentro da recepção crítica, da ressonância social e nos processos de escolarização, ou seja, a literatura ocupa um lugar muito especial e seguro, logo há aqueles que queiram classificar os quadrinhos como literatura porque ‘se quadrinhos são literatura, então eles são validados’. Eu não concordo com isso, quadrinhos são quadrinhos e literatura é literatura, são duas formas de arte distintas, e uma não é menor que a outra”.
O professor de roteiro de quadrinhos na Universidade Federal do Ceará (UFC) e produtor do podcast HQ sem Roteiro, Pedro Brandão, contesta a proposta de Maurício de Sousa ao se candidatar à ABL, que dizia que quadrinhos são literatura pura. Na visão do pesquisador essa afirmação está errada, quadrinhos não são literatura, contudo ele destaca que a ABL é a Academia Brasileira de LETRAS, não a Academia Brasileira de Literatura, reforçando que parte do trabalho de Letras é justamente letrar, portanto o argumento da contribuição de Maurício para o letramento no Brasil seria cabível. Sobre a fala de Akel, Brandão aponta que o jornalista parte do pressuposto da Literatura enquanto adjetivo, implicando que a qualidade da obra indicaria se ela é Literatura ou não. “Ainda se vê leitores, fãs e até mesmo quadrinistas, dizendo que o quadrinho é tão bom que é literatura. Literatura não é adjetivo, é um substantivo, assim como quadrinhos. Via de regra Literatura é tão importante, boa ou ruim quanto quadrinhos, filmes, séries ou qualquer coisa do campo da arte “, pontuou.
Pedro ainda apontou um dos problemas práticos de delimitar os quadrinhos como literatura, e deu o exemplo de quando a distribuição de verba para produção de histórias em quadrinhos, a partir de editais, é apenas uma fração do que deveria ser, pois os quadrinhos estão enquadrados como uma subcategoria dentro dos editais de literatura, ao invés de terem um edital próprio. “Parece que a gente tá falando do campo teórico, quando na verdade estamos falando do campo prático, estamos falando de botar comida na mesa, é uma questão de trabalhos, de ter a carteira assinada, de conseguir freelas. Existem questões reais que são impactadas pelo pensamento de que quadrinhos são literatura”.
Existem algumas definições do que são quadrinhos. Talvez a mais famosa seja a do americano Scott McCloud, em “Desvendando os Quadrinhos”, que os estabelece como imagens pictóricas justapostas em sequência deliberada. Contudo, segundo Brandão, uma definição tão fechada como essa pode acabar induzindo ao anacronismo, quando é dado um nome contemporâneo a algum fenômeno do passado, como quando os hieróglifos egípcios são enquadrados como quadrinhos por se encaixarem perfeitamente nesta descrição. Para o pesquisador, os quadrinhos são um fenômeno que se construiu socialmente ao longo da história. “Os hieróglifos não são quadrinhos. Quadrinhos são quadrinhos, são um acontecimento histórico social, que tem um caráter linguístico, pois opera com signos próprios, e um caráter histórico que surge por volta do século XIX em vários cantos do mundo, e socialmente se desenvolve com uma linguagem própria. Quando tentamos definir o que é o quadrinho caímos em várias armadilhas que qualquer definição trás, uma delas é o anacronismo, outra é o nacionalismo e a necessidade do criador do formato, mas para mim a pior delas é o esforço de colocar a linguagem dentro de uma caixa” explicou Pedro.
Ambos os pesquisadores concordam que a definição e o enquadramento da arte, como quadrinhos e literatura, é algo difícil, pois a arte é algo fluido, e uma forma de expressão artística se comunica com outras formas, ou seja, as linguagens artísticas vivem constantemente influenciando uma à outra. Brandão segue explicando como que os quadrinhos têm em seu cerne a junção entre palavras e imagens que os torna uma linguagem muito particular. “Quadrinhos puxam muito do videogame, do teatro, do cinema, e quando você começa a estudar os gibis você passa a entender que ele vem de tantos cantos e é tão próprio, que você aprende sobre muita coisa ao mesmo tempo. Quando se estudam os quadrinhos, se estudam as artes visuais, se estuda narrativa, se estuda roteiro, por isso eu acredito que os quadrinhos são uma excelente porta de entrada para compreender o mundo como um todo”. Daniel aponta os gibis como uma arte que tira inspiração de outras linguagens, e se tornou único pela forma como organiza essas linguagens.
Gabriel Pieri, quadrinista paulista, autor de HQs como “Malagueta” e “Iraúna do Olhar Âmbar”, comenta que, para ele, os quadrinhos não são literatura, e isso não diminui a importância que essa linguagem carrega. “Você pode até esticar o sentido de literatura para encaixar os quadrinhos, mas são mídias que trabalham de formas diferentes e com suas próprias técnicas”, pontuou o cartunista, que acredita que as histórias em quadrinhos podem ter o mesmo impacto e influência que a literatura.
Pieri conta que as histórias em quadrinhos sempre fizeram parte de sua vida, e se tornar quadrinista foi um percurso natural devido a sua paixão por desenhar e contar histórias. “Os quadrinhos são a forma mais barata de se criar cenas, você só é limitado pela página e sua capacidade de desenhar. É possível criar situações fantásticas que demandam trabalho de várias pessoas em cinema ou animação, além do impacto visual porque a prosa necessita de muita técnica para descrever”, relata Pieri. Apesar disso, ele conta que precisou se ajustar para conseguir trabalhar no meio. Devido à realidade da rotina em um país sem indústria de quadrinhos, é necessário adaptar tudo à falta de recursos e de tempo.
Os quadrinhos são uma arte própria, e tem se e crescido cada vez mais ao longo das décadas, as pessoas que trabalham com os quadrinhos têm aprendido e desenvolvido técnicas específicas que são pensadas para servir unicamente os quadrinhos. Gibis como Aqui, de Richard McGuire, Imbatível, de Pascal Jousselin e Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons são exemplos de gibis que contam suas histórias de uma forma única e muito característica do meio em que foram pensados, explorando de forma mais explícita a linguagem própria das HQs. Quadrinhos não são literatura, e isso não é um demérito. Quadrinhos são uma arte por si só, e precisam ser respeitados. Quadrinhos são quadrinhos.