Por Amanda Lopes

Segundo dados do Registro Brasileiro de Transplantes, veículo oficial da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), o número de transplantes caiu 34% durante a pandemia, impactando na alta taxa de mortalidade de quem estava na fila de espera por doação. O principal motivo para a queda nas taxas de doação é a negativa familiar para a realização dos transplantes. 

Esse número pode causar certo estranhamento já que o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma referência mundial na doação de órgãos. O Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos quando o assunto é número de transplantes realizados. Mesmo assim, atualmente, mais de 59 mil pessoas estão na fila de espera por órgãos. 

Apenas no ano passado, cerca de 45% das famílias, segundo a ABTO, recusaram a doação de órgãos de seus parentes pela morte encefálica comprovada. De acordo com a legislação brasileira, a lei nº 10.211, de 23 de março de 2001, a retirada dos órgãos e tecidos só pode ser feita após autorização dos membros da família, e o doador deve ter sofrido de morte encefálica, ou seja, os doadores em potencial devem sofrer de dano cerebral irreversível, como traumatismo craniano ou acidente vascular cerebral (AVC). Isso acontece porque apenas a morte cerebral permite um tempo de preservação dos órgãos vitais até serem transplantados para outra pessoa. Esse tipo de morte dá origem às doações para pessoas que estão na fila de espera por mais tempo: as de coração e de pulmão.

Mas por que quase metade das famílias se recusam a doar os órgãos do ente que morre de morte encefálica? Um estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apontou três motivos principais para a alta taxa de recusa familiar. Primeiramente, há uma incompreensão da família sobre a morte encefálica. Como o cérebro para de funcionar, mas os aparelhos mantêm a respiração e os batimentos cardíacos em funcionamento, o mais comum é que as famílias passem a acreditar que o familiar pode voltar à vida, enquanto na verdade o tempo para o transporte de órgãos diminui cada vez mais por essa demora. Outros motivos são a falta de preparo da equipe médica para fazer a comunicação sobre a doação logo após a morte e, por fim, a religião também impacta na decisão.

A falta de esclarecimento foi o motivo de Maria Aparecida de Gomes Alves, aposentada, não ter aceitado doar os órgãos do seu filho, Igor de Gomes Alves Barbosa, vítima de um acidente de moto em setembro do ano passado. “Olha, hoje eu me arrependo demais. Mas ver o meu filho lá, ainda bem, naquela cama de hospital, bonitinho, respirando, me fez acreditar até o último minuto que Deus ainda iria fazer esse milagre na nossa vida. Infelizmente não foi assim que aconteceu, mas tudo pra Ele tem um motivo. A gente não sabe de nada.”

Igor faz parte da triste estatística de jovens que perderam a vida enquanto pilotavam, sendo assim uma das formas mais comuns de sofrer traumatismo craniano. Do outro lado, temos Marcelo Tavares Nogueira, motoqueiro e que passa o dia transportando órgãos e sangue de uma unidade hospitalar para outra. “É muita responsabilidade que eu tenho aqui”, diz ele, enquanto aponta para o bauleto acoplado na moto. “Eu tenho que correr porque a vida de outra pessoa tá nas minhas mãos, ao mesmo tempo que também não posso colocar a minha em risco, né? ĢMas eu já deixei avisado pra ‘geral’: se eu morrer pode doar tudo, tudinho. Dessa vida a gente não leva nada, não”, acrescenta Marcelo.

O segundo motivo sobre a recusa familiar para a doação é justamente a falta de preparo dos médicos para conduzirem a situação em meio ao momento de fragilidade. Algumas famílias consideraram insuficiente o tempo dado a elas para a tomada de decisão. O fato é que existe uma certa pressa por parte dos profissionais de saúde para que órgãos como o coração e o fígado sejam transplantados a tempo de salvar outros pacientes. Isso faz com que os familiares não sejam abordados de maneira empática e não tenham como assimilar a dor da perda. 

“Médicos e enfermeiros são orientados e ensinados a preparar o terreno ao solicitar a autorização do transplante para os familiares. Mas com o tempo e a rotina caótica do dia a dia é comum que, infelizmente, essa veia mais humana de como lidar com a situação seja perdida aos poucos e cada vez mais”, informa a técnica de enfermagem Ana Isabel Carvalho.

Por fim, entra a questão de adeptos da crença religiosa denominada “Testemunhas de Jeová”, que acreditam que as transfusões de sangue não devem ser aceitas, nem mesmo em caso de vida ou morte. O princípio base por trás dessa doutrina é que a vida reside no sangue e pertence unicamente a Deus, não podendo haver nenhuma interferência nesse processo. Enquanto isso, o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, concedeu uma entrevista para o portal de transplante do Estado relatando que o catolicismo busca o bem ao próximo, no qual os membros da Igreja Católica acreditam que a doação de órgãos é uma maneira de continuar amando quem já não está mais entre nós.

Como fazer a sua parte na doação de órgãos

Transporte de órgãos em hospital. (Crédito: Venilton Kuchler/Agência Senado)

É comum na cultura brasileira ainda ver a morte com um tabu, algo mórbido e que não devemos nos preocupar com esse assunto ainda em vida. Caso você queira ser um doador, o primeiro passo é comunicar essa decisão para a sua família e incentivá-la a autorizar o processo.

Existe também a categoria de doadores vivos, ou seja, que podem fazer o transplante de órgãos ainda em vida para outras pessoas. As partes do corpo mais comuns nesses casos são o fígado, o pulmão e o rim.

Foi a partir desse processo que Milena Lozano viu a sua filha de apenas 8 anos, Catarina Lozano, sendo beneficiada por um transplante de fígado. “Uma pessoa que eu sequer conhecia foi a responsável por salvar meu bem mais precioso! Foram muitas noites mal dormidas e muita aflição, mas no fim deu tudo certo. Depois que fizemos o transplante nunca mais teve qualquer outro problema. Graças a Deus!”

 Qualquer pessoa maior de 18 anos e com condições adequadas de saúde pode ajudar sendo parte deste grupo de doadores vivos. Para isso, basta fazer o cadastro a partir do site da Aliança Brasileira pela doação de Órgãos e tecidos (Adote).

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