Por Luiza M. Martins
De acordo com um relatório divulgado pela Universidade da Califórnia dedicado a acompanhar a participação de pessoas pretas nos filmes produzidos por Hollywood, apenas 20% de todos os lançamentos anuais da indústria cinematográfica americana contam com protagonistas pretos. Ou seja, a cada cinco filmes, em apenas um deles, há uma pessoa de cor como figura central. Os números também são baixos quando o assunto é a direção: apenas 12,6% dos longas têm um diretor racializado. Ainda no recorte de raça, apenas 5,2% dos personagens são latinos e 3,4%, asiáticos. Não à toa, de acordo com um estudo sobre representatividade conduzido National Research Group, dois em cada três afroamericanos não se veem representados em filmes e na TV, de forma geral.
Vale lembrar que os brancos nos Estados Unidos correspondem a 57,8% da população, segundo o último relatório racial divulgado pelo Departamento de Censo do país. Os demais grupos étnicos do país são os hispânicos (pessoas que falam espanhol, de acordo com a definição do Censo, que são 18%, pretos (13%), asiáticos (6%), ameríndios (1,1%), dentre outras etnias com grupos menores.
Quando o entretenimento em questão são os jogos eletrônicos, mídia que ficou muito restrita ao público branco e masculino ao longo dos anos e que, portanto, ainda é muito impactada por essa perspectiva, a falta de representatividade também é alarmante. De acordo com uma pesquisa realizada pelo portal Solitaired, apenas 6% dos principais jogos lançados entre 1985 e 2022 contavam com protagonistas mulheres. Situações muito parecidas acontecem com as pessoas de cor, LGBTQIA + e os PCDs nos games.
Mesmo com esse cenário controverso do entretenimento e marcado por perspectivas de grupos privilegiados, quando alguma mídia se propõe a romper com o paradigma, na mesma hora, surgem os comentários. “Lacração”, “lacrolândia”, “lacrosfera”, “geração mimimi”, dentre muitos outros termos até de cunho mais agressivo do que esses. Tudo isso para se queixar da representatividade e de minorias sociais sendo refletidas através das histórias de personagens – ainda que os dados mostrem que isso está longe de ser equilibrado.
Se há um casal LBGTQIA+ em um filme de herói, por exemplo, é lacração. Se uma protagonista de um game novo promissor é mulher, é mimimi. Se, em uma adaptação como a de A Pequena Sereia (2023), a personagem originalmente branca é substituída por uma atriz preta, como aconteceu com Halle Bailey, a Internet se enche de discussões sobre a necessidade de preservar a etnia de uma figura mitológica inexistente. E de preferência, a representação a ser mantida é uma ruiva de olhos verdes que apareceu numa animação da Disney dos anos 1980.
Contudo, é válido salientar que há o outro lado da moeda. Se por um lado, grupos preconceituosos reclamam da representação dessas pessoas nas telas, por outro, as pessoas representadas se sentem contempladas pelo entretenimento – algo raro para elas. É o que explicou, em entrevista, a estudante Rebeca Paiva, que se identifica como uma mulher LGBTQIA+, além de ser parcialmente surda e, portanto, PCD. Em ambos os casos, a raridade desse tipo de representação nas telas faz com que ela se sinta estimulada a acompanhar a história. “Émais fácil criar uma conexão. Chama a minha curiosidade para descobrir como vai ser a trama e como esse personagem vai se desenvolver. Quando eles aparecem, esses personagens são sempre vinculados a algum sofrimento ou exclusão. Eu fico muito feliz principalmente quando eles têm destaque e a história é positiva”.
Rebeca contou que um dos principais motivos por gostar de ver esses personagens em tela é por acreditar que existe um sentimento de solidão em ser diferente. Na entrevista, ela explicou que pessoas como ela se sentem isoladas por ter características que os outros não têm ou, por vezes, nem compreendem. Para Rebeca, “quando roteiristas, diretores e autores trazem uma vivência que foge de um padrão para as telas, eles enxergam a mim e a pessoas que têm vivências parecidas com as minhas. É bom saber que estamos sendo vistos, que nossa história está sendo contada e há pessoas ouvindo”.
A estudante disse, ainda, que já teve a experiência de ouvir pessoas chamando a representatividade nas telas de “lacração” e que isso a deixou profundamente chateada e ofendida. Para ela, as pessoas que dizem isso são aquelas que já têm as suas vidas contadas e não têm a necessidade de conhecer outras histórias – e nem querem isso, por sinal. Rebeca afirmou que, para ela, “a representatividade é extremamente importante para mostrar outros pontos de vista; criar histórias em que seja possível contemplar pessoas que fogem desse padrão. Quando alguém diz que a representatividade é só ‘lacração’, essa pessoa está dizendo que quem está fora do padrão está errado. Que aquela vivência não é importante. Então, é muito perigoso. A representatividade traz esse senso de pertencimento; essa ideia de que a sua vivência importa.”
Rebeca contou, também, que fica feliz porque vem notando que os números de personagens diversos no entretenimento vêm crescendo nos últimos anos. E, de fato, em termos de representação LGBTQIA +, houve uma melhora de acordo com dados divulgados pelo GLAAD, organização especializada em direitos desse grupo minoritário em particular. Segundo a pesquisa, 22,7% dos filmes lançados em 2020 por estúdios como Disney, Warner, Universal e Paramount contavam com personagens LGBTQIA +. Em 2019, o mesmo número era de 18,6%.
Para Nathalia Duarte, editora de streaming do TechTudo, o aumento na quantidade de personagens oriundos de grupos minoritários nas telas é realmente perceptível no recorte dos últimos 10 anos. Em entrevista, ela explicou que os estúdios estão cada vez mais preocupados em representar personagens com origens de fora da América do Norte, com deficiência, orientações sexuais e identidades de gênero que diferem do padrão. Nathalia ressaltou, inclusive, que a preocupação aparece também nas produções televisivas brasileiras, como a novela Vai Na Fé, produzida pela rede Globo, que faz grande sucesso com o público jovem e cujo elenco é, basicamente, preto.
Nathalia explicou, ainda, que o crescimento da representatividade não acontece por acaso – ele está diretamente ligado às demandas mercadológicas atuais. Vale mencionar que isso acontece de forma concomitante a um movimento de interesse em pautas políticas como identidade racial, feminismo e direitos LGBTQIA +, que até então ficaram restritas aos ambientes universitários. Com a redes sociais e a popularização desse tipo de informação, essas demandas afetaram diretamente a conduta de diversas empresas dentro e fora do entretenimento, que tiveram incorporá-las às suas rotinas para que pudessem continuar no mercado.
A editora contou que “existe esforço a partir da demanda para essas representatividades. Não foi algo que aconteceu espontaneamente e nem porque essas corporações queriam ser inclusivas. Com o aumento da demanda de entretenimento inclusivo com esses grupos, como os pretos, LGBTQIA+, PCDs, as empresas entenderam que existe um mercado para isso e que ele não estava sendo explorado. As pessoas querem consumir produtos que são feitos pensando nela. E isso é cobrado dentro das corporações, hoje.”
A editora salientou que apesar desse tipo de representatividade não ser, necessariamente, espontâneo, as representações são muito bem vindas, principalmente quando acontecem em produções voltadas para o público infantil. Nathalia explicou que “se você for ver vídeos de crianças pretas que veem a Halle Bailey como a Pequena Sereia, a Princesa Tiana ou o Miles Morales (Homem Aranha), por exemplo, você vai encontrar reações muito bonitas de pessoas que já crescem com novas representações da própria etnia. Elas conseguem se identificar melhor com os personagens, encontrar brinquedos para comprar e até se vestir de personagens que parecem fisicamente com elas.”
Esse movimento, entretanto, gera reações como as mencionadas anteriormente por Rebeca – protestos por parte de pessoas preconceituosas e que não têm interesse em pensar por outras perspectivas. Quando a esse ponto, Nathalia concorda que, normalmente, as pessoas por trás das acusações de “lacração” são conservadoras e têm dificuldades de lidar com a representação de grupos que não gostam. Esse tipo de revolta aparece, sobretudo, quando há adaptações e mudanças nesse sentido, como aconteceu no live action de A Pequena Sereia: “existe uma reação preconceituosa muito forte quando isso acontece na cultura pop, que é muito consumida e representada por pessoas brancas. Mas é uma adaptação. Não é para ser igual à original, porque já existe o original.”
Outra área do entretenimento tão grande quanto a indústria cinematográfica e que conta com problemas muito parecidos em termos de representatividade são os jogos eletrônicos. A título de curiosidade, no Brasil, um dos maiores consumidores mundiais do mercado de jogos eletrônicos, as mulheres são 51,5% dos jogadores, enquanto os pretos e pardos correspondem a 54,1%, de acordo com dados da Pesquisa Games Brasil de 2022. Ainda assim, nenhum desses grupos conta com grande representação nos jogos, mesmo que exista um esforço semelhante para que mudem seu aspecto de mídia voltada para homens brancos.
Yuri Hildebrand, editor de jogos do TechTudo, conversou com O Casarão sobre a representatividade desses grupos sociais nos games. Ele explicou que, existe, sim, uma parcela do público que é muito conservadora. Para ele, o imagético do jogador comum de homem branco, cis e que “reclama de ver a Pabllo Vitar no jogo que gosta” ainda é real. Contudo, Yuri observa que a maneira com que o público recebe essas mudanças variam conforme cada jogo e empresa que as propõem.
Em entrevista, ele explicou que existem empresas profundamente preocupadas com a representatividade e, também, existem as que preferem adotar uma conduta mais neutra. A forma com que o público lida com as mudanças vai de acordo com o que aquela empresa, em si, construiu. “Algumas empresas simplesmente não trazem detalhes, algumas tratam a representatividade de forma pejorativa e tem, também, quem se preocupa. The Last of Us, por exemplo, colocou personagem trans, protagonismo feminino e casal de mulheres no centro da trama, mas Counter Strike continua do mesmo jeito que era em 1995.”
Yuri contou, no entanto, que também considera que há uma mudança positiva na representação. Segundo ele, historicamente falando, os personagens LGBTQIA+, por exemplo, eram utilizados como um recurso de humor – de forma pejorativa, obviamente. Os personagens pretos, por sua vez, estavam sempre associados à violência, guerras, ou quaisquer outros tipos de crimes e as mulheres, quando apareciam nas tramas, assumiam papéis secundários e eram extremamente sexualizadas. Hoje em dia, Yuri vê um cenário bem mais promissor em termos de representatividade. “Eu acredito que mudou bastante, sim, e tenho esperança de que continue assim. Para mim, a representação das mulheres foi a que mais melhorou. É só olhar a evolução da Lara Croft. Acredito que as empresas que não se preocupavam tanto com isso ficaram um pouco para trás. Mas ainda há muito a fazer.”
Contudo, apesar das melhorias de representatividade, ele chama a atenção para o fato de, mesmo em jogos com propostas mais inclusivas, muitos jogadores ainda têm condutas tóxicas na hora de interagir com representantes de grupos minoritários em ambientes online. Quando o assunto é a presença das mulheres, 59,9% escondem o gênero para evitar assédios, segundo uma pesquisa realizada pela Lenovo. Já um estudo publicado pela Reach3 Insights aponta que 77% das jogadoras já tiveram que lidar com condutas tóxicas em jogos, como julgamento de habilidades, assédios e pedidos de casamento indevidos.
Quanto a isso, o editor explicou que, apesar da representação dos personagens ter melhorado, o público ainda pode ser hostil. “Algumas mulheres não conseguem jogar porque são assediadas no meio do jogo. Há muitos casos de insultos homofóbicos e racistas em jogos desse tipo. Então, esse público conservador, que reclama da ‘lacração’ e desdenha de representatividade continua ali presente.”
As mudanças propostas pelas empresas, no entanto, são um pequeno passo em direção a uma sociedade mais igualitária para Yuri. Na entrevista, ele contou que acredita que o respeito às diferenças pode vir a partir do exemplo, principalmente dos que existem no entretenimento. Para ele, “é importante que esse ciclo de más representações seja quebrado. O conceito de homem viril e agressivo que vem da indústria do cinema, por exemplo, é reproduzido nos jogos e, dali, ele vem sendo replicado na sociedade. É importante que existam exemplos de pessoas diversas, independente de como elas são. As empresas precisam trazer esses exemplos para o público que consome a mídia. Afinal, isso influencia até mesmo a formação de caráter das pessoas que jogam ali desde cedo.”
Assim como Yuri, Nathalia também entende que é importante que o entretenimento represente o maior número de pessoas possível. E isso se estende até mesmo para uma questão de sobrevivência do mercado. Segundo ela, “a preocupação com a diversidade deve acontecer cada vez mais e vai influenciar no sucesso de outras produções no futuro. A diversidade das histórias vai ser muito importante para o próprio sucesso delas em termos mercadológicos.”
Por isso, é bom que o grupo insatisfeito com a “lacração” se acostume. Afinal, cada vez mais, vai haver pretos, LGBTQIA +, PCDs e mulheres assumindo papéis importantes nas tramas, nas telas e nos consoles.
Lacração pra quem?
A “lacração” pode parecer uma expressão curiosa para os mais velhos ou para quem não faz uso profundo das redes sociais, mas que é bem conhecida pela juventude – sobretudo, pelos jovens que fazem parte de grupos minoritários. O termo foi, por muitos anos, usado por comunidades LGBTQIA + como forma de incentivar um comportamento positivo e, também, de prestar um elogio.
Não à toa, há alguns anos atrás, quando alguém fazia algo emocionante, louvável ou impressionante, era comum ver jovens dizendo que aquela pessoa “lacrou” – algo que funcionava como um “arrasou, parabéns!”. Um exemplo clássico foi quando, em 2013, a cantora pop Beyoncé lançou um álbum inteiro sem aviso prévio. A atitude gerou uma série de memes e relatos nas redes sociais dizendo que a norte-americana havia “lacrado”. Esse, inclusive, é um dos momentos em que se acredita que a expressão se popularizou de vez na Internet brasileira.
Em entrevista para o jornal O Globo, o professor e pesquisador de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais Carlos Mendonça explicou que, originalmente, a expressão era usada em casas de festa temáticas para expressar algo “diferente e arrebatador, como uma performance de dança no palco ou uma maquiagem impactante”. Em tempos de redes sociais, no entanto, é comum que esse tipo de informação fique bem mais acessível, principalmente considerando o fato de que as gerações mais jovens estão cada vez mais presentes no meio digital.
Contudo, com o passar do tempo, a expressão foi perdendo o seu significado original. Mendonça explicou que o termo foi apropriado, midiaticamente falando, até se transformar em algo para se referir a produções de artistas LGBTQIA +, o que fez com que a ideia original se esvaziasse. Não demorou muito para que a expressão assumisse, então, uma conotação negativa e se transformasse em um insulto direcionado a quaisquer tipos de reivindicação feita por grupos minoritários.
Aos poucos, a “lacração” se tornou um vocábulo muito mais presente saindo da boca de pessoas conservadoras, anti progressistas e preconceituosas. Nessa nova definição, em vez de ser usado como um elogio, a expressão se tornou algo mais parecido com “vitimismo” ou mesmo “mimimi” – termo este que, por sinal, teve uma evolução bem similar nas redes sociais.
Logo, absolutamente tudo que incluísse qualquer menção a grupos LGBTQIA +, PCDs, etnias para além do branco caucasiano e até mesmo a presença de mulheres se tornou um sinônimo de “lacração”. E isso se estende desde políticas públicas até o entretenimento – ainda que este, por sinal, seja, historicamente, algo que não representa todas as pessoas de forma igualitária.
A indústria cultural é feita a partir de uma perspectiva focada em um padrão branco-europeu e cristão. E não sou eu, que escrevo essa matéria, que estou dizendo isso. Historicamente falando, as análises sobre cultura se dividiram por muito tempo em dois grupos distintos: a cultura erudita e a de massa. Nessa dicotomia, a erudição ficou diretamente relacionada ao conhecimento formal e por isso, mais comum às elites sociais.
Sob a mesma lógica, a cultura de massa ficou marcada por ser mais acessível e de fácil compreensão, contemplando públicos menos escolarizados e populares. Não à toa, há tanto prestígio em ouvir Mozart e tanto desprezo para com o funk carioca. Muitas pessoas nem mesmo consideram Harry Potter literatura – qualidade atribuída apenas a nomes como Victor Hugo, Baudelaire e Dostoievski.
Dentro dessa lógica, a erudição também estava muito atribuída às manifestações culturais feitas por pessoas europeias ou estadunidenses. Quando essas visões vão ganhando escopo e se transformando em filmes, séries, músicas e jogos eletrônicos, por exemplo, acontece de elas carregarem pontos de vista dessas elites e de grupos socialmente privilegiados. Logo, esse tipo de perspectiva afetou toda a indústria do entretenimento, mesmo em países em que as realidades são bem diferentes das retratadas no entretenimento.