A objetificação feminina, presente em propagandas, filmes e séries desconsidera as características multidimensionais das mulheres, reduzindo-as a papéis secundários e subordinados
Por Juliana Palmeirim
A indústria do entretenimento há muito tempo tem sido alvo de críticas por sua tendência à sexualização de mulheres nas produções audiovisuais, uma prática controversa que busca, entre outros motivos, atrair a atenção do público. A sexualização desse grupo nas mídias é um fenômeno complexo, que ocorre quando personagens femininas são representadas principalmente com base em sua aparência física e apelo sexual, desconsiderando suas características multidimensionais. Isso é frequentemente acompanhado pela superexposição de corpos femininos em poses provocativas e vestimentas provocantes. Desde propagandas até filmes, séries e videoclipes, a objetificação feminina tem se mostrado onipresente, gerando debates sobre suas implicações sociais e seu impacto na luta pela igualdade de gênero.
De acordo com a professora de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marina Cavalcanti Tedesco, a falta de representatividade feminina nos postos de comando pode explicar esse fenômeno. “A partir do momento que o audiovisual se torna uma atividade realmente rentável nos Estados Unidos, quando ele começa a se consolidar, tem uma expulsão das mulheres de várias funções e uma predominância dos homens. Em outros países, como no Brasil, por exemplo, é diferente e a gente tem uma predominância de homens desde o começo, mesmo quando o audiovisual não era sustentável. Assim, seja por um processo de expulsão ou seja por um processo de exclusão, desde o princípio as mulheres não estiveram e seguem não estando nos postos decisórios”, explica.
Diversos estudos acadêmicos foram conduzidos para examinar a representação de mulheres nos filmes e a sexualização de seus personagens. Um exemplo é o estudo intitulado “Gender Bias Without Borders: An Investigation of Female Characters in Popular Films Across 11 Countries” (Viés de gênero sem fronteiras: uma investigação de personagens femininas em filmes populares em 11 países), realizado pela Geena Davis Institute on Gender in Media e pela Universidade do Sul da Califórnia, em 2014. Esse estudo analisou mais de 11.000 personagens em filmes de diversos países e revelou desequilíbrios significativos na representação de gênero: As mulheres eram duas vezes mais propensas que os homens a serem mostradas em trajes sexualmente reveladores (24,8% vs. 9,4%), retratadas através de corpos magros (38,5% vs. 15,7%) e mostradas parcial ou totalmente nuas (24,2% vs. 11,5%).
Essa prática problemática não só contribui para a perpetuação de estereótipos de gênero, mas também reforça desigualdades sociais e prejudica a representação de mulheres na sociedade. Ao retratar as mulheres como meros objetos de desejo, as produções audiovisuais diminuem sua importância, reduzindo-as a papéis secundários e subordinados. Segundo a professora de antropologia na UFF, Flávia Lages de Castro, “se a mulher não puder expressar a si mesma, não há possibilidade de fugir do estereótipo que é produzido para homens brancos, heterossexuais e cis. O feminismo e outros movimentos sociais ajudam a dar voz própria às mulheres, contribuindo assim para um novo olhar”.
A estudante de jornalismo na UFF e produtora de conteúdos para a página “Anaverso” no Instagram, Ana Carolina Ferreira, afirma que, na história da sociedade, o machismo está presente intrinsecamente e no audiovisual isso não é diferente já que “a vida imita a arte e a arte imita a vida”. “Eu acho que, ao mesmo tempo que é um produto da sociedade, é também uma engrenagem dela, porque a arte influencia muito na visão que as pessoas têm sobre o corpo feminino. Obras que sexualizam mulheres representam o olhar masculino, que objetificam o tempo inteiro. Um bom exemplo é a representação de heroínas com trajes justos e super decotados, o que não é nada funcional se levar em consideração que elas lutam contra bandidos e salvam o mundo. Esse é um exemplo de algo pensado por homens para homens, servindo a esse ‘olhar masculino’”, complementa.
O “olhar masculino” ou “male gaze”, comentado por Ana Carolina, é um conceito teórico introduzido pela crítica de cinema Laura Mulvey em seu ensaio de 1975, intitulado “Visual Pleasure and Narrative Cinema“. Mulvey argumenta que a narrativa cinematográfica tradicional tende a refletir uma perspectiva masculina heterossexual dominante, na qual as mulheres são objetificadas e sexualizadas para o prazer visual do espectador masculino. De acordo com essa teoria, a representação das mulheres nas artes visuais, na literatura e no cinema é moldada pelo ponto de vista masculino, que coloca as mulheres em uma posição de objeto a ser olhado e desfrutado. Além disso, a autora pontua que nas produções cinematográficas, em particular, são usadas várias técnicas para enfatizar esse olhar, como o uso de câmera subjetiva, enquadramentos que destacam partes sexualizadas do corpo feminino e a passividade das personagens femininas em relação aos protagonistas masculinos.
A pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual (PPGCINE) da UFF, Julia Alimonda, comenta que “faz parte do nosso imaginário cinematográfico ver mulheres nuas, pois é bem comum no cinema uma mulher estar nua em cena sem que isso seja relevante ao desenvolvimento narrativo. Esses corpos estão à serviço do nosso olhar, ou seja, estão na tela para serem olhados. A comediante Marcia Belsky criou um projeto bem legal que se chama ‘Headless Women of Hollywood‘ em que ela mostra como pôsteres de filmes hollywoodianos fragmentam o corpo feminino a partir de mulheres aparecendo ‘sem cabeça’. Normalmente, isso não acontece com personagens masculinos. Eles podem aparecer sem camisa, nus ou até mesmo estarem realizando um ato sexual, mas costumam ser em cenas pontuais, quando faz sentido para o desenvolvimento do filme. Portanto, existe muita diferença entre a forma como mulheres e homens são apresentados em tela”.
Um exemplo atual dessa situação são as polêmicas acerca da série “The Idol”, nova aposta do primetime da HBO, co-criado por Sam Levinson de “Euphoria” e o cantor The Weeknd, na qual a proposta era atentar justamente para as problemáticas vividas por uma cantora em ascensão na indústria da música. Em reportagem da revista “Rolling Stone”, de março de 2023, que diz ter escutado 13 pessoas que trabalharam no set da série, a produção foi considerada como “pornografia de tortura sexual” e causou espanto na primeira exibição em Cannes. A intencionalidade pode ter sido a reflexão sobre o tema, mas só conseguiu assustar os espectadores pela sexualização da personagem vivida por Lily Rose Depp.
Além disso, a sexualização de mulheres nas mídias está intimamente ligada à busca por audiência. Muitos produtores e estúdios acreditam que explorar o apelo sexual é uma forma eficaz de atrair a atenção do público e obter lucros. Infelizmente, essa abordagem transforma as mulheres em mercadorias, cujo valor é medido pela capacidade de gerar interesse e aumentar a audiência. Um estudo realizado pela Quantas Pesquisas e Estudos de Mercado, a pedido do canal a cabo Sexy Hot, nos anos de 2016 e 2017, revelou que 22 milhões de pessoas consomem pornografia no Brasil, o que demonstra um amplo consumo desses conteúdos. Com a facilidade de acesso proporcionada pelas tecnologias e a disseminação predominante pela internet, os conteúdos pornográficos ganham destaque.
“Eu tenho certeza que a sexualização das mulheres nas produções audiovisuais contribui para a perpetuação de estereótipos de gênero. Mas isso ocorre independente do público dessas produções serem homens ou mulheres, porque elas não estão agindo isoladamente e sim em conjunto com uma estrutura social. Elas estão agindo junto com a família, com a escola, com literatura, com a igreja e, enfim, é mais um elemento que se soma a esses mecanismos de reprodução. Dessa forma, com as produções audiovisuais, a mídia dá continuidade à perpetuação dessa estrutura machista e misógina”, afirma a professora Marina.
Em contraposição a esta tendência, a estudante Ana Carolina acredita que engajar produções que valorizam narrativas femininas ajuda muito na desconstrução desse imaginário sobre o corpo da mulher. “Não tenho certeza se educo bem os seguidores do ‘Anaverso’, mas busco sempre entender o cenário em que foi criada a obra, o elenco, o roteiro, a mensagem que ele quis passar, e unir argumentos para embasar minha opinião. Ainda assim, eu acho que só de abrir esse espaço de diálogo para debater esse assunto no Instagram, por si só, já é uma maneira de engajar as pessoas a pararem e pensarem sobre pautas como essa”, explica.
Um exemplo atual desse tipo de ação seria a série “Élite”, da Netflix, que tem sido objeto de discussões sobre a sexualização de mulheres em sua narrativa. A produção retrata a vida de jovens estudantes em um ambiente escolar, abordando temas como luxo, crime e relacionamentos complexos. No entanto, críticos argumentam que a série muitas vezes recorre à objetificação e à representação sexualizada das personagens femininas, usando cenas de nudez e enredos que enfatizam o apelo sexual. Essa abordagem tem sido alvo de debate, com questionamentos sobre seu impacto na percepção dos jovens que assistem a série e na perpetuação de estereótipos de gênero.
O administrador da página “Élite Netflix🇧🇷” no Instagram, Wesdrey Henrique, explicou que é uma série bastante representativa, pois nela há pessoas de diversas sexualidades e aborda muito sexismo com as mulheres. “Há uma sexualização de mulheres na série, mas as pessoas precisam separar aquilo da realidade. São bastante polêmicas as inúmeras cenas quentes, mas alterar esse conteúdo vai desmotivar o público teen da série, que já está acostumado com o ciclo das histórias que ela conta”, complementa.
No entanto, essas produções não só são moralmente questionáveis, mas também têm consequências negativas a longo prazo. A objetificação constante das mulheres nas produções audiovisuais contribui para a perpetuação de uma cultura que valida a violência de gênero, o assédio sexual e a desigualdade salarial entre os sexos. Além disso, cria expectativas irreais de aparência e comportamento, afetando negativamente a autoestima e o bem-estar psicológico de muitas mulheres e meninas. “As mídias ajudam a construir nossas percepções de mundo e elas são produtos feitos por pessoas que estão inseridas nessa sociedade machista, racista, transfóbica, etc. Então, uma sociedade que apresenta todos esses problemas irá produzir e cultuar obras que os reproduzem. Nós consumimos essas narrativas desde crianças e aprendemos como uma mulher deve performar feminilidade e como é aceitável que homens olhem e mulheres sejam olhadas”, pontuou a pesquisadora Julia.
Com isso, é fundamental reconhecer que a representação justa e igualitária das mulheres nas produções audiovisuais é uma questão importante para a sociedade. É necessário um esforço conjunto da indústria do entretenimento, dos criadores de conteúdo e do público para romper com os padrões nocivos e estereótipos prejudiciais, e para promover narrativas mais inclusivas e empoderadoras.
Nesse cenário, a crescente conscientização sobre questões de gênero têm pressionado a indústria para uma mudança gradual, mas significativa, na forma como as mulheres são retratadas nas produções audiovisuais. O movimento #MeToo, por exemplo, surgiu nas redes sociais em 2017 com o objetivo de denunciar e combater o assédio sexual e a agressão sexual. Ele se tornou um símbolo de solidariedade para as vítimas e de conscientização sobre a magnitude desses problemas em várias esferas da sociedade, incluindo a indústria do entretenimento, a política e o ambiente de trabalho. O movimento encorajou inúmeras pessoas a compartilhar suas histórias pessoais e ressaltou a importância de acreditar e apoiar as vítimas, além de buscar a responsabilização dos agressores. O #MeToo teve um impacto significativo na mudança de normas sociais e abriu espaço para discussões mais amplas sobre consentimento, igualdade de gênero e justiça. Cada vez mais, vemos personagens femininas fortes, complexas e com histórias ricas sendo valorizadas e celebradas.
“Em vários países do mundo, desde 2014, nós temos vivenciado um novo adensamento de questões. E nós temos agora praticamente uma década de nova fase de visibilidade e de popularização das questões feministas. A gente tem o #MeToo, em que várias mulheres de Hollywood realizaram denúncias sobre desigualdade salarial e abusos sofridos naquele meio, e que geraram uma explosão de estudos acadêmicos sobre esse assunto. Eu comecei a estudar mulheres no audiovisual em 2009, principalmente no audiovisual latino-americano, antes só tinha eu falando sobre isso nos Congressos e hoje vemos centenas falando sobre isso. E essas questões chegam no audiovisual”, disse a professora Marina.