Mais de 35 milhões de pessoas ao redor do mundo adotam o estilo de vida nômade, segundo o Relatório Global de Tendências Migratórias de 2022
Por Catarina Brener
O estilo de vida nômade dos Homo sapiens, durante grande parte de sua existência, foi marcado pela busca constante por recursos e condições favoráveis de sobrevivência. Hoje, os chamados “nômades digitais” deixam para trás empregos convencionais e moradias fixas em busca de aventura, liberdade e experiências únicas. A conectividade online e os aplicativos especializados facilitam a comunicação, o trabalho remoto e a gestão de informações essenciais, proporcionando uma conexão constante com o mundo, independentemente de sua localização geográfica.
Viver como nômade não é novidade. Nos primeiros estágios da evolução humana, os grupos nômades andavam em busca de alimentos, água e abrigo, se adaptando aos ciclos sazonais e à disponibilidade de recursos naturais.
Com o passar do tempo, à medida que as práticas agrícolas e a domesticação de animais foram adotadas, algumas comunidades optaram por se estabelecer em áreas fixas, marcando o surgimento dos primeiros assentamentos. Esse processo representou uma mudança significativa na trajetória histórica da humanidade, resultando na formação de sociedades sedentárias e no desenvolvimento de civilizações. Apesar disso, o estilo de vida nômade não foi apagado e muitas pessoas decidem adotá-lo.
De acordo com o Relatório Global de Tendências Migratórias de 2022, elaborado pela Fragomen, uma empresa especializada em migração, mais de 35 milhões de pessoas ao redor do mundo adotam atualmente o estilo de vida dos nômades digitais. A projeção indica que eles poderão atingir a marca de 1 bilhão até 2035 e, apenas nos Estados Unidos, eles já são quase 17 milhões de pessoas: um aumento de 131% em relação a 2019, antes da COVID-19.
Leticia Sansão (capa), jornalista carioca formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comenta que seu cansaço pelo trabalho formal foi um dos motivadores para começar esse estilo de vida.
“Eu nunca pensei que fazer mochilão fosse pra mim ou para minha realidade. Mas, em março de 2023, fui demitida, algo que já esperava, e isso só acumulou o meu cansaço pelo trabalho formal e a necessidade de ir para algum lugar. Fazer intercâmbio estava fora da minha realidade. Então, comecei a consumir conteúdos de mochileiros e comecei a ver aquilo como uma possibilidade. Usei meu dinheiro da rescisão trabalhista para me jogar no mundo. Hoje, eu já rodei o nordeste e pretendo viajar muito mais”, conta Sansão.
O filme “Nomadland”, vencedor dos principais prêmios do Oscar de 2021, explora esse estilo nômade com a essência da liberdade, solidão e conexão humana. Ele conta a história de Fern, uma mulher de 60 anos que enfrenta a perda de tudo durante a grande recessão de 2008. Interpretada pela atriz Frances McDormand, Fern se vê obrigada a abandonar sua cidade após a morte do marido e a falência da principal indústria que sustentava a região. Diante dessa reviravolta em sua vida, a protagonista toma a decisão de embarcar em uma jornada sem destino com apenas uma van. Ela se transforma em uma nômade moderna e enfrenta os desafios da vida na estrada, encontrando novas comunidades e, ao mesmo tempo, buscando sentido e propósito em meio às adversidades.
A frase “Sem casa sim, sem lar não” ganhou destaque no filme e reflete o sentimento de Sansão ao viver sem residência fixa, mas consciente do seu modo de viver: “Acho que muitos pensam que não tenho teto. A verdade é que eu tenho. Eu fiz essa escolha por uma opção consciente e não me vejo de outra forma a não ser mochilando”.
Apesar das vantagens, esse estilo de vida também possui obstáculos. O psicólogo Fernando Mendes comenta sobre a limitação da liberdade.
“Tudo vira responsabilidade do indivíduo. Ele precisa criar um senso de responsabilidade muito grande para, por exemplo, estar seguro ou garantir uma conexão com internet confiável. Portanto, o nomadismo implica que não há uma liberdade total, como pode parecer inicialmente”, comenta Fernando.
Durante uma viagem, Sansão comenta como passou por uma situação de risco ao pedir carona na estrada. “Eu fiz sinal para um caminhoneiro e ele acabou parando. No caminho, ele ficou perguntando se eu não tinha medo do que os caminhoneiros podem fazer, porque eles ficam muito tempo na rua e sentem falta de mulher. Eu, sacando logo, falei que carregava canivete comigo e não ligaria de usar. Depois disso, ele passou a me respeitar minimamente”.
Nessa jornada constante, Leticia alterna períodos de lazer com outros em empregos temporários, como funcionária de hostels, ou vendendo polaroids na rua. Voltar ao Rio de Janeiro e ter um trabalho formal já está fora de cogitação para ela. Bob Wells, figura central da vida nômade moderna nos Estados Unidos e personagem do filme Nomadland que interpreta a si mesmo, também compartilha esse sentimento.
“Um dos motivos pelos quais tentei tanto divulgar o conhecimento da vida nômade é que meu filho se suicidou e eu precisava de um motivo para viver, para acordar todas as manhãs. Sempre foi meu objetivo fazer com que as pessoas soubessem que elas têm opções, que existe uma outra maneira de viver, e me entreguei a esse propósito após a morte do meu filho”, comentou Bob Wells em entrevista à BBC News Mundo.
Em meio às escolhas conscientes e responsabilidades individuais, o nômade moderno redefine a ideia de lar e inspira outros a explorar alternativas. O nomadismo persiste como um caminho que ultrapassa os limites físicos e sociais, oferecendo uma abordagem não cotidiana para viver a vida.