Por Stephany Mariano
A onda Hallyu chegou aos streamings e recentemente a Netflix divulgou que vai investir US$ 2,5 bilhões em entretenimento sul-coreano, valor que deve ser distribuído dentro dos próximos quatro anos. A ideia é produzir pelo menos 34 obras originais no ano de 2023. Toda essa movimentação faz muito sentido quando relembramos o drama Round 6, lançado em 2021, se tornou um dos programas mais assistidos da plataforma, e recentemente “The Glory” conquistou a marca de uma das 10 séries mais populares do tudum em mais de 90 países.
O fenômeno sul coreano, que passou primeiro pelos vizinhos China e Japão, e nas últimas décadas atravessou o ocidente, revela o sucesso de uma estratégia adotada no pós-ditadura pela nação do leste asiático para incrementar sua participação no mercado global de produtos culturais. Segundo o levantamento feito pela Kofice (Fundação Coreana para o Intercâmbio Cultural Internacional) as exportações de conteúdos do país atingiram US$ 11,69 bilhões no ano passado. Já a venda de filmes, músicas e videogames atingiu a marca de US$ 12,4 bilhões em 2021, segundo dados do Governo Sul Coreano.
No Brasil, as produções chegam cada vez mais através das plataformas de streaming. Depois de procurar por muito tempo, Suzy Lopes, 58 anos, decidiu dar o play em uma das opções em alta e quando percebeu, já estava no terceiro episódio. A escolha de Suzy naquela noite foi um drama sul-coreano chamado Lie To Me, uma produção de 2011. “Foi um tiro certeiro, porque eu virei a noite assistindo. Comecei a pesquisar e olhar outras séries e pronto, foi assim que começou”. Este é o fenômeno dos famosos doramas ou k-dramas, que têm conquistado pessoas por todo o mundo de forma singular, inclusive aqui no Brasil.
Se a palavra ainda não lhe soa familiar, os doramas nada mais são do que produções televisivas que se assemelham às já conhecidas séries. Este termo faz referência à pronúncia da palavra “drama” na língua japonesa e costuma ser utilizada, de maneira generalizada, para se referir às obras vindas da Ásia.
Para se ter uma noção do nível de popularização, durante a pandemia o Brasil se tornou o terceiro maior consumidor do dramas sul-coreanos, segundo dados de uma pesquisa realizada pelo Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da Coreia do Sul em setembro e novembro de 2020, ficando atrás apenas da Malásia e da Tailândia.
Por conta desse “boom”, essas produções têm sido alvo de investimento por plataformas como Netflix, HBO Max e Disney Plus, por exemplo, atendendo à alta demanda e alcançando pessoas de todas as idades, que acabam caindo nesse universo de paraquedas e decidindo ficar.
As produções que antes já eram populares entres os fãs de K-pop, gênero musical que conta com artistas que dominaram o cenário mundial, como BTS e BlackPink, agora também são assistidas por quem não necessariamente consome esse conteúdo. Mas o que faz esses dramas tão viciantes?
O formato que agrada os brasileiros
Apesar de se assemelhar com as séries já conhecidas, essas produções parecem ter um diferencial que cativa as pessoas. Suzy assiste esses dramas desde de 2015 e acredita que a curiosidade é um dos motivos que tem contribuído para o aumento do consumo. “Porque tá se falando muito disso, nas redes sociais, a própria Netflix tá colocando muita coisa ali na vitrine. Então acho que a pessoa acaba ficando curiosa e vai lá e assiste. E aí o que que acontece, eles têm uma grata satisfação, de ver que é uma coisa boa”.
Para Shirlei Gomes, de 63 anos, a fuga da realidade e as obras que abordam a temática de fantasia e de épocas antigas é um dos diferenciais. Ela acrescenta também: “o respeito aos mais velhos e a delicadeza de alguns sentimentos. Mesmo sabendo que não corresponde à realidade coreana, me encantou ver algo diferente.”
Sara Camilo, de 25 anos, conheceu os k-dramas através de um anúncio em um site e tem assistido as produções há quase 7 anos. Na sua visão, as intensas histórias românticas e a qualidade das produções os tornam tão cativantes. “Enquanto estávamos cercados por séries mais sérias e enredos mais previsíveis do ocidente, os doramas surgiram para agradar aqueles que também apreciam romances clichês e histórias mais simples, capazes de nos transportar para uma realidade mais leve e agradável.
“Os tipos de romance são mais “pele”, é o olhar, o toque, a conquista, a história que envolve até chegar no clímax. O companheirismo, a cumplicidade, a atenção. Acho que no fundo é porque retrata muitas coisas que muitos lá no fundo querem ter, mas às vezes não conseguem”. Esse é o ponto de vista de Heloísa Cury, de 59 anos, que caiu nas graças do drama “Cinderela e os quatro cavalheiros” e tem consumido esse tipo de conteúdo há cerca de dois anos. Ela descreve a singularidade das produções e confessa consumir obras de outros países, como China e Tailândia, dois países que também tem investido nesse cenário aos poucos.
Com tanto romantismo, fantasia e histórias capazes de transportar o telespectador para outra realidade, como foi relatado, algumas pessoas podem se identificar e até mesmo se projetar nesses cenários. A neuropsicóloga Gardenia Pereira, que produz conteúdo em suas redes relacionando sua profissão com os assuntos abordados nos k-dramas, fala sobre como eles têm, sim, “um forte instrumento terapêutico” e se tornaram um hobby. “Além de uma válvula de escape, o hobby geralmente influencia a vida de um indivíduo de diferentes maneiras: alivia o estresse, melhora a criatividade, cria conexões com outras pessoas, constrói um tempo de qualidade consigo mesmo”.
No entanto, nem tudo são flores. Gardenia fala sobre a forma como a saúde mental é tratada como tabu nessas produções, uma problemática que assola a Coreia do Sul. “O que precisamos ter cuidado, principalmente quando nos identificamos com algum personagem ou trama, é que aquela é uma obra de outro país, com cultura, realidade e valores bem diferentes dos nossos. Acho que ainda faltam muitas coisas, como o incentivo à procura de profissionais da psicologia/saúde mental nos dramas, eu vi isso em poucos. Mas acredito que é assim que se começa, aos poucos”.
Diferentemente das fãs ouvidas nesta reportagem, a neuropsicóloga acredita que o formato dos dramas sul-coreanos se assemelha ao das novelas. “É algo que nos é familiar. E isso por si só já torna o entretenimento uma atividade instigante e prazerosa”. Voltando para a abordagem sobre a saúde mental, ela cita títulos como “Loucos um pelo outro”, “Tudo bem não ser normal” e “Move to Heaven”, como alternativas que apresentam a temática de forma mais explícita, porém sensível.
A onda Hallyu no streaming
Esse fenômeno não tem se propagado apenas pelas características que as dorameiras – como se intitulam os amantes de doramas – citaram aqui. As plataformas de streaming têm se apresentado nos últimos anos como uma grande peça que impulsiona o consumo e consequentemente a chamada onda Hallyu.
Com isso, muito além do sucesso no ramo da música – o BTS foi o primeiro grupo sul-coreano a ser indicado ao Grammy, por exemplo – a Coreia do Sul conseguiu emergir por meio das produções audiovisuais e fez história com Parasita, longa metragem que varreu o Oscar em 2020 e se tornou primeiro filme de língua não inglesa a ganhar a estatueta de ouro na categoria de melhor filme.
Dessa forma, parece que essa tal onda tomou proporções de um tsunami, se alastrando por todo o globo e disseminando a indústria criativa sul coreana. Suzy, que mergulhou nos k-dramas em uma simples noite chuvosa em casa foi completamente conquistada pela cultura sul-coreana e conta que conhecer esse universo despertou nela a vontade de conhecer o país, sonho que realizou no ano passado ao ganhar um concurso promovido pelo Governo. “Passei nove dias maravilhosos lá. Se antes eu chorava porque eu queria conhecer a Coreia, hoje eu choro porque eu quero voltar.