Por Rafael Cordeiro do Nascimento

No palco caótico da vida, onde se desenrolam as tragédias e as pequenas misérias cotidianas, há algo inexplicavelmente fácil na desumanização.

Sempre apressados, os olhares vagueiam, perpassam e registram a existência daqueles que vivem nas sombras, para logo em seguida ignorá-la, como se fossem meros detalhes decorativos, destoando da realidade. Por quê? Talvez seja a impotência que nos paralisa diante dessa realidade cruamente exposta. É mais fácil transformar a existência de tantos em um mero elemento incômodo, algo que possamos ignorar para mantermos nossa própria ilusão de ordem.

Escrevo sobre isso não como alguém que faz diferente, mas como alguém que se percebe afundando na mesma inércia. Ao evitar interações, ao fechar os olhos para não encarar a dureza da situação, cada ato me distancia mais das pessoas que, no fundo, desejo enxergar. E, ainda assim, hesito diante da pergunta: que diferença faria se eu encarasse como possível fazer algo diferente?

Entre páginas coletadas do lixo, onde muitos veriam apenas o descarte, Carolina Maria de Jesus enxergou um oceano de possibilidades. Memórias relegadas à indiferença, palavras abandonadas, mas para ela, eram pedaços de vida que poderiam florescer em protesto. Escrever como uma forma de resistência, lembrar como uma expressão de liberdade.

Testemunha interna que se recusava ao silêncio, Carolina deu voz aos invisíveis, expondo as condições de vida nos locais aos quais eram excomungados. Suas palavras se transformaram em sementes de protesto, brotando da estase para a ação, convertendo páginas coletadas no lixo em um jardim de memórias. Desafiando a invisibilidade social, ela reivindicou o direito de expressar as dores e as dificuldades da vida na favela, a humanidade daqueles que habitam-na e sua inegável condição de semelhança com todos que não os enxergam.

Em suas memórias, encontramos a necessidade urgente de olhar além da superfície, desafiando-nos a ver e a agir. Cada olhar, cada palavra, cada ato é uma escolha entre perpetuar a estase ou navegar nos mares tumultuados da mudança.

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