Estudantes, professores e pesquisadores questionam por que o curso de jornalismo não prepara os profissionais para lidar com mulheres vítimas de violência.

Por Giulia Navarro

A cada minuto, 35 mulheres sofrem agressão física ou verbal no Brasil e quase 6 milhões de mulheres sofreram assédio ou violência sexual no ano de 2022. É o que mostra a pesquisa feita pelo DataFolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública em março de 2023. Ele também indica que 66.5% das mulheres vítimas de violência são negras e que mais de 27 milhões dos agressores são parceiros íntimos.

É função do jornalismo informar, denunciar e educar, para que a sociedade se torne mais justa. Por isso, é importante que crimes como esses sejam noticiados, fazendo com que as pessoas tenham consciência das violências que podem sofrer e dos seus direitos, além de dar voz a pessoas que tiveram sua história afetada. Mas existe um problema, o curso de jornalismo da Universidade Federal Fluminense não prepara suficientemente os profissionais para pautas de violência.

A estudante de jornalismo na UFF Bruna Navarro comenta sobre essa deficiência.

“Eu não sinto honestamente que o curso de jornalismo prepara a gente suficientemente para produzir reportagens no âmbito de violências em geral, né? Principalmente de gênero, sexualidade ou raça”. 

Bruna é formada em Ciências Sociais e atualmente está terminando a faculdade de jornalismo. Ela faz estágio na Rádio CBN e explica que precisou aprender em seu trabalho como lidar com vítimas de violência.

“Ao longo do curso de jornalismo a gente recebe algumas dicas, nós aprendemos em algumas aulas como fazer entrevistas. Mas para vítimas de violência ou parentes de vítimas, isso não é abordado. Acaba que na prática a gente vai percebendo quais são as melhores formas de abordar determinadas pessoas para a pauta que nós estamos cobrindo e colegas mesmo, jornalistas, vão dizendo pra gente qual é a melhor forma de chegar.”

A cobertura jornalística de casos de violência muitas vezes não mostra a realidade. Gênero, local, escolaridade e cor são marcadores sociais que contextualizam muito e que costumam ser deixados de lado ou até mesmo usados do jeito errado, reforçando estereótipos. A professora universitária e pesquisadora Tamires Coêlho reflete sobre a atual produção jornalística, que muitas vezes reproduz e naturaliza violências ao tratar de grupos minoritários.

Analisando esse cenário de invisibilidade de vozes, a pesquisadora traz como exemplo a representação de mulheres negras na mídia, que, via de regra, aparecem, e muitas vezes estão restritas, a um processo de hiperssexualização por parte de algumas pautas e às vezes por parte da própria cobertura de polícia. A representação desse grupo interseccional de forma hipersexualizada e atrelada a situações negativas é muito danoso, além de reproduzir uma ideologia sexista que culpabiliza a vítima.

Para Tamires, essa falha começa nas rotinas produtivas, desde o momento da escolha da pauta e das fontes.

“Será que elas estão dando espaço para escuta? Será que a gente tem diversidade? E aí adianta a gente ter diversidade de quem produz a informação se a formação e os currículos são os mesmos, ainda muito quadrados, muito masculinos?”.

Acolhimento e respeito são os pilares de uma boa entrevista com vítimas de violência. Fonte: pch.vector/Freepik

Não é novidade que o pensamento jornalístico tem um viés normativo e que reproduz estereótipos e comete violência de gênero de formas que podem passar despercebidas. O grande esforço deve vir também dentro da universidade para que haja um preparo melhor dos profissionais.

Dentro da UFF, já existem algumas mudanças na grade, como a implementação de matérias optativas sobre gênero e sobre raça. Nesse momento o curso oferece a disciplina optativa Comunicação e questões de gênero. A coordenadora de Jornalismo Carla Baiense confirma que não há disciplinas voltadas para violência de gênero, mas que existe uma mudança curricular para contemplar as questões étnico-raciais. 

“O que a gente fez especificamente em relação às questões de raça foi criar uma disciplina obrigatória no curso de jornalismo, que neste momento está em processo de implantação, chamada Comunicação e relações étnico raciais, que já está na grade, mas como optativa. Essa disciplina vai tratar especificamente da formação de jornalistas. Então ela vai discutir aspectos legais, como se diferencia a injúria racial de racismo? De crime racial? Como a gente conceitua esses termos que são termos legais, mas estão no ensino da prática jornalística.”.

Carla afirma que recebe demanda de alunos para falar sobre gênero de forma mais prática, mas ainda não há uma sistematização desse conteúdo. Ela acredita que a academia é, ainda hoje, branca, masculinista e heterosexual e isso diz respeito à forma como essa instituição se mantém. Esse é um dos motivos que tornam necessária uma mudança curricular, mas a coordenadora cita ainda outras razões:

“O Brasil é um país com muito feminicídio, onde a violência de gênero é um problema endêmico, então temos muitos motivos que nos dizem porque esse tema é importante. Além disso, desde a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) e Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), a imprensa passou a prestar mais atenção e cobrir de maneira mais sistematizada esses temas, então é preciso formar profissionais para que trabalhem de forma responsável”.

A UFF têm avançado no reconhecimento dessas temáticas, mas ainda assim as demandas do mercado e do próprio curso fazem com que os alunos se sintam despreparados e receosos ao tratar de temas tão sensíveis. Bruna é um exemplo disso, ela realizou uma reportagem em seu segundo período de graduação e reflete sobre sua dificuldade na abordagem. 

“Eu fiz uma reportagem na época sobre assassinato da da Elisa Samud, né? O caso do goleiro Bruno e toda violência de gênero que eu tentei abordar dentro dessa matéria. Eu pisei em ovos o tempo inteiro com bastante dificuldade, recorri a muitas pessoas pra entender qual era o melhor caminho que eu poderia seguir em relação à temática sem também piorar a situação”.

Elisa Samud é uma dentre as milhares de vítimas. O anuário de segurança Pública de 2023 mostrou um aumento em todos os tipos de violência de gênero no país, além do aumento de agressões a pessoas LGBTQIAP+ e a revelação de que mais da metade das vítimas de exploração sexual eram menores que 14 anos.

As principais vítimas são mulheres negras e crianças. Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023

O problema da violência de gênero extrapola os limites das universidades, mas o combate midiático pode começar nelas. Existem algumas melhorias que devem ser colocadas em prática e a professora e pesquisadora Nealla Machado comenta sobre a abordagem interseccional como solução.

“Dentre essas possíveis melhorias a serem feitas no curso, temos que pensar nessa abordagem interseccional e falar sobre gênero, falar sobre raça, falar sobre esses assuntos que são fundamentais pra gente levar essas demandas e preparar realmente todos os estudantes para o mercado de trabalho”.

Nealla é escritora do Pauta Gênero, o Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal do Mato Grosso. Tamires também coordena o projeto e levanta a importância dos professores ensinarem a complexidade da violência nas disciplinas.

“Primeiro é ofertar disciplinas que ajudem estudantes a compreenderem a violência como um elemento social ali e para a gente começar a entender esse elemento a partir de complexidades que vão ser atravessadas por matrizes de opressão e pelo próprio processo de colonização.”

Mas se a entrevista com vítimas de violência ou parentes de vítimas é tão sensível, que preocupa os estudantes e estagiários, como fazer isso de forma ética? As pesquisadoras comentam os principais pontos que todo jornalista deveria saber, mas muitas vezes não são falados durante o curso.

“A primeira coisa é oferecer uma acolhida e um processo de escuta sem julgamentos. Se uma mulher passou por um relacionamento abusivo, você perguntar algo do tipo ‘porque você não saiu da relação antes?’ dá a entender que dependia exclusivamente da vontade da pessoa sair dali e pronto. E a gente sabe que a situação é bem mais complexa que essa”. Afirma Tamires Coêlho, que também reforça a importância de não ser estigmatizante nas perguntas.

Já Nealla Machado dá dicas sobre saber ouvir a vítima e ser respeitoso:

“Você tem que ter muito muito tato e fugir de perguntas um pouco estúpidas. Por exemplo, perguntar como a pessoa está se sentindo quanto à agressão. Obviamente a pessoa está se sentindo mal, obviamente a pessoa está horrível, obviamente aquela situação foi traumática, entendeu? A gente tem que retornar e tentar buscar ali naquela pessoa a humanidade dela e tentar retratá-la para além daquela prática violenta que ela sofreu”. 

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