Cansaço e frustração marcam a dupla jornada de trabalho de quem tem que ser social media de si
Por Yana Flávia
Engajamento, alcance, call to action (chamada que incentiva o leitor a realizar uma ação), métricas e conversão: expressões antes restritas a blogueiros e publicitários, agora fazem parte do vocabulário de trabalhadores de diversos ramos que passaram a produzir conteúdos para as redes sociais. Criar perfil profissional e seguir cronogramas de postagens, com o objetivo de atingir um público maior, é tendência em todas as profissões. Esse fenômeno, que cresceu vertiginosamente nos últimos anos, já tem um nome: TikTokização das profissões.
Apesar de não ser possível determinar onde e quando surgiu, o termo é derivado da plataforma de vídeos curtos TikTok, onde esse tipo de conteúdo foi popularizado. De acordo com a ByteDance (empresa dona do TikTok), no ano de 2023 o TikTok contabilizou 82,2 milhões de usuários maiores de 18 anos no Brasil. Não há dados sobre quantos destes usuários utilizam a plataforma para divulgar seus trabalhos, mas basta alguns minutos usando a rede para ser atingido por alguma publicação com esse intuito. É importante pontuar que esse fenômeno não se restringe a tal rede social, perfis de indivíduos que falam sobre suas profissões também estão presentes no Instagram e no Twitter.
Em relatório publicado em 2023, o IBGE contabilizou que existem 30,2 milhões de trabalhadores autônomos no país. A pesquisadora Rafaela Moraes — autora da dissertação “a influência da TikTokização das profissões na visão de carreira dos millennials e da geração z através das mídias sociais Instagram e TikTok” — contou que, durante a pesquisa, percebeu que o perfil na rede social virou o novo cartão de visitas desses profissionais. “O autônomo precisa estar nas redes porque não tem condições de contratar alguém para esse serviço”, completa.
É o caso da ginecologista e mastologista Daniele Duarte, que criou um perfil profissional após concluir sua segunda especialização na Universidade de São Paulo (USP), em 2021. A médica conta que foi impulsionada pela popularização das redes sociais que ocorreu durante a pandemia e pela adesão por parte de outros médicos. Acostumada a atender pacientes, Daniele teve que adquirir novas habilidades para conseguir destacar-se no digital. Relatou que no início foi difícil e sentiu necessidade de investir em cursos para se aprimorar. “Precisei aprender a fazer vídeos, criar e editar artes, fazer chamadas atrativas, fazer storytelling, saber o básico de impulsionamento no Instagram, como transmitir imagem de autoridade no meu modo de vestir e ter uma oratória adequada”. Atualmente, o perfil da profissional conta com 26,6 mil seguidores e seu vídeo mais assistido atingiu 90 mil visualizações.
No teatro
Em um mundo em que aparentemente quem não está nas redes sociais não existe, a preocupação com a produção de conteúdo vem atingindo até atores consagrados. Em setembro de 2023, a atriz Alice Braga, em entrevista ao podcast “Bom Dia, Obvious”, falou que no processo de contratação de atores vem ocorrendo uma exigência de que o profissional tenha muitos seguidores. Alice — que começou a carreira artística ainda criança e com 19 anos foi indicada como Melhor Atriz Coadjuvante, no Grande Prêmio Cinema Brasil — enxerga que isso prejudica os artistas iniciantes, porque para conseguir trabalhos, eles primeiro têm que se dedicar a conseguir números expressivos nas redes sociais.
O ator Gabriel Alvim diz que a exigência é “por baixo dos panos”, porque os produtores dão preferência a pessoas que entregam um trabalho bom e possuem milhões de seguidores, em detrimento daquelas que entregam um trabalho de grande qualidade, mas não têm números altos nas redes. “O TikToker vai vender”, conta Gabriel, que desde 2018 estuda teatro e já atuou em musicais em Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo, já tendo participado de diversas seletivas de elenco.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo
Na dissertação de mestrado, Rafaela afirma que para alcançar algum sucesso nas redes sociais é preciso seguir uma série de tarefas como: frequência de publicação, criação de conteúdos “do momento” e interação com outros usuários. Ou seja, é preciso manter uma constância de postagens para que o algoritmo das plataformas mostre seu conteúdo para outras pessoas. Os dois profissionais entrevistados para essa reportagem afirmam que se sentem cobrados a postar e que alimentar seus perfis tornou-se uma tarefa. “Acaba sendo um trabalho a mais dentre todos os outros que temos”, disse Daniele. Já Gabriel relatou que as pessoas acabam se tornando vítimas do ritmo de produção exigido pelas plataformas.
A médica conta que despende em média 2 horas por dia com seu perfil profissional, mas que sua frequência de vídeos é baixa (publica 1 vez por semana). “O que mais gasto é na pesquisa científica envolvida”. Já Gabriel apresentou uma característica específica do TikTok: segundo ele, a plataforma privilegia usuários que se dedicam a um só tipo de conteúdo. “No TikTok você tem que se dedicar muito e tem que escolher a sua área. Então se eu quero falar sobre carreira, eu tenho que fazer vídeos só sobre isso. No Instagram não tem essa cobrança, você posta sobre o que quiser: você, sua família, seu trabalho, seu cachorro”.
O principal achado da pesquisa de Rafaela é que a maioria dos trabalhadores estão frustrados e sentem-se exaustos, física e emocionalmente, por ter que exercer esse trabalho extra de social media. “É um gasto de tempo que as pessoas não gostariam de ter”, comenta a pesquisadora, que analisou, em sua dissertação, comentários de postagens do Instagram que abordavam essa questão.
Esse tempo usado no processo de manter um perfil ativo — que envolve analisar tendências da rede, elaborar roteiros, responder comentários, criar peças gráficas, produzir e editar vídeos e fotos — poderia ser usado para estudar, desenvolver pesquisas científicas ou fazer cursos dentro da área profissional. Isso faz surgir a dúvida: será que a competência de um trabalhador pode ser medida com base no seu número de seguidores?
Inquietações éticas
Em 2021, a cirurgiã Caren Trisóglio Garcia publicou vídeos rindo e dançando com pedaços de pele e gordura recém removidos de pacientes. O caso repercutiu nas redes sociais e fomentou a discussão sobre postura ética e espetacularização profissional. Como resposta, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) suspendeu por 6 meses a médica de suas atividades na entidade e classificou os vídeos publicados como sensacionalistas. Já o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) suspendeu o registro de Caren e, no ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) atualizou a resolução sobre publicidade médica. Nela, há um capítulo exclusivo sobre publicidade e propaganda nas redes sociais próprias de médicos e estabelecimentos médicos. O CFM afirma que não permite práticas sensacionalistas, veda o uso de imagens de procedimentos que identifiquem o paciente e estabelece que as imagens utilizadas devem ter caráter educativo.
Outras entidades, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), também publicaram suas próprias orientações para atuação dos profissionais nas redes sociais.
O outro lado da exposição
O desgaste físico e mental causado pelas horas a mais de trabalho e pela sensação de ter que estar sempre em busca de produzir mais conteúdo, de maneira criativa, para ganhar seguidores são queixas observadas no relato dos entrevistados e também em comentários analisados na dissertação. Mas Gabriel também vê lados positivos na TikTokização. Ele relata que sente uma valorização na rede social e que consegue impulsionar sua carreira por meio dela. “Eu trabalho mais quando estou postando no Instagram”, comenta o ator, que também trabalha como dublador, cantor, bailarino e professor de canto. Apesar de gostar de algumas consequências da exposição online, Gabriel diz que seu desejo maior é estar nos palcos: “eu quero estar no palco, fazendo o que eu estudei pra estar fazendo”
Já Daniele falou que os cursos que fez e os aprendizados que adquiriu ajudaram bastante no seu autoconhecimento. Rafaela também deparou-se com comentários de pessoas relatando que conseguiram vender mais ou captar mais clientes. “Tem gente que acha que essa discussão é ‘mimimi’, que o mundo é assim e tem que se adaptar”, completa a pesquisadora.