Por Isabela Paiva
Anna, Emma, Elizabeth, Iracema, Luísa, Carolina, Gabriela: a literatura eternizou em nossa memória popular nomes de diferentes mulheres, mas além de seus nomes, a sua presença narrativa também é representativa de um determinado entendimento da mulher como um indivíduo em nossa sociedade. No Brasil, as mulheres não apenas se apresentam como heroínas literárias, mas também como leitoras, de acordo com a última pesquisa do Retratos da Leitura no Brasil, elas foram a maioria entre os leitores no país, representando 59% destes.
Diante de um número tão significativo de leitoras, é importante examinar se ele também se reflete na própria literatura. A representatividade feminina é um tópico em alta na atualidade, sendo cada vez mais requerido pelo público. Julie Drummond, estudante de produção editorial na UFRJ e autointitulada leitora, 19 anos, aponta que “Tudo o que lemos reflete sobre o papel que possuímos na sociedade”, reforçando o poder social da representatividade na literatura.
De maneira similar, Victoria Elizabeth, 19 anos, acredita que “Qualquer mulher já retratada na literatura, seja ela voltada para adultos ou para o público infanto-juvenil, é capaz de induzir uma perspectiva sobre o que é ser mulher”. A literatura, tal como outros meios de comunicação, como o cinema e a arte, é capaz de reproduzir uma determinada imagem social de suas personagens, impactando também como o seu público entende esse mesmo imaginário refletido.
De acordo com uma pesquisa organizada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, durante os anos de 2005 e 2014, 70,6% das obras publicadas pelas editoras Rocco, Record e Companhia das Letras, teriam sido de autoria masculina, enquanto apenas 29,4% destas teriam sido escritas por mulheres.
Ao se aventurar pelos anais da história, essa sobreposição da autoria de homens em comparação com a autoria feminina não é particular do período analisado pela pesquisadora. Sofia Tolstoi, esposa, editora e tradutora do célebre autor russo, Liev Tolstoi, elabora em seus diários: “Hoje estava a pensar porque é que não há mulheres escritoras, artistas ou compositoras geniais. É porque todas as paixões e capacidades de uma mulher com energia são consumidas pela família, amor e marido – e especialmente pelos filhos. Não se desenvolvem outras capacidades, permanecem embrionárias e atrofiam. Quando uma mulher acaba de gerar e educar os filhos, acordam as necessidades artísticas, mas depois já é demasiado tarde e é impossível desenvolver o que quer que seja”.
As amarras da tradição patriarcal ditavam uma posição estrita para a mulher dentro do contexto da cultura ocidental. Questões de classe, raça e gênero se impunham como um empecilho para a produção literária. No caso das mulheres, a prática da escrita não era incentivada, enquanto outras responsabilidades sociais eram impostas sobre elas. Já dizia a autora inglesa Virginia Woolf: “(…) uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção”.
Apesar de tantas dificuldades, a produção literária feminina em nossa história não é pequena, mas ela sofreu um apagamento expressivo. A professora do Departamento de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), Anna Faedrich, autora do livro “Escritoras Silenciadas”, no qual aborda o trabalho literário de três escritoras mulheres de grande relevância para nossa literatura, discute esse apagamento das mulheres no meio literário.
Ela relata que,“Sempre tivemos muitas escritoras escrevendo e publicando, mas elas foram apagadas. Essas mulheres, essas escritoras, elas foram silenciadas, porque elas existiram mesmo no século XIX, elas existiram, elas publicaram, elas estavam ali, mas elas gradativamente foram sendo esquecidas e não entraram para a história da literatura”.
Assim, a literatura que é muito explorada pelo cânone tradicional é escrita majoritariamente por autores homens e brancos. Faedrich aponta que “Quando a gente fala em representação feminina, a gente pode pensar em dois eixos, essa representação feminina feita pelos escritores homens e uma representação feminina feita pelas próprias mulheres quando elas assumem a escrita”.
A produção literária muitas vezes tem a capacidade de refletir o período no qual ela faz parte, aproximando-se de questões que trabalham as transformações de nossa sociedade. Tomemos como exemplo o ditado popular “A arte imita a vida”, a realidade em que vivemos não apenas serviu e ainda serve como inspiração para muitos autores, mas ela espelha comportamentos e crenças destes, também influenciando a própria perspectiva de real do leitor.
A partir dessa perspectiva, precisamos pensar nesse mesmo cânone literário e nas representações do feminino abordadas por ele. Ao trabalharmos predominantemente com esses mesmos autores, exploramos uma literatura com poucas nuances em torno dessa representação.
Stefania Chiarelli, professora associada do Departamento de Letras da Universidade Federal Fluminense, fala que, “Historicamente, se a gente pensar na tradição letrada brasileira, temos uma representação do feminino que oscila, como a gente sabe lá desde o romantismo, entre a mulher casta, pura, angelical, a moça bela e recatada e do lar para casar e a mulher diabólica, provocativa, liberada, prostituta, a mulher que causa desejo e medo”.
Faedrich elabora: “Você vai ter uma literatura romântica escrita por homens que fazem uma representação feminina muito correspondente às expectativas de gênero. O que é isso? É aquela mulher inacessível, pura, virgem, aquela mulher cândida, aquela mulher lânguida, branca, alva”.
Pensemos na mulher romântica brasileira, Joaquim Manuel de Macedo traz em seu romance “A Moreninha” de 1844 a figura de D. Carolina, uma jovem de 15 anos, alegre, travessa e pura, que tem seu amor puro concretizado e idealizado pela narrativa, enquanto José de Alencar, em sua obra “Lucíola”, trabalha a personagem de Lúcia, uma prostituta, que apesar de ter intenções puras, ou até mesmo uma face que representa esta suposta pureza, ela apenas consegue se redimir de seus pecados através da morte.
A escandalosa “Madame Bovary” de Gustave Flaubert também repete essa narrativa punitiva, o adultério da protagonista e seus desejos, considerados, então, depravados, são penalizados com uma prerrogativa máxima: a morte. Igualmente, essa história se repete na emblemática “Anna Karenina” de Tolstoi, que também tem o seu próprio desfecho trágico. Há uma máxima moralizante evidenciada nessas obras. A posição da mulher, o seu papel, é demarcado por esses mesmo limites da moral e dos bons costumes da época.
Essas reproduções na literatura são determinantes na construção de estereótipos em torno da imagem feminina, que influenciam diretamente na formulação de um imaginário do feminino por parte do público leitor.
Victoria Elizabeth, leitora, fala que “Desde meninas, somos sempre induzidas a nos comportar como as princesas dos contos de fadas”, já Julie Drummond, também leitora, continua “Vivemos em um mundo onde a influência se faz sempre presente e, como eu acredito que somos a junção de todos os livros e as histórias que lemos, eu acredito que, de certo modo, a literatura nos influencia, sim”.
A construção de arquétipos em torno da representação da mulher explícita a questão: há a mulher mãe, a mulher cuidadora, a mulher megera. A literatura caracteriza o feminino e intervém no próprio imaginário do que é ser mulher. Apesar disso, a professora Chiarelli argumenta que diante de uma maior diversidade de autores sendo publicados, podemos pensar em uma diminuição desses estereótipos.
Stefania fala que “Hoje, em função do aumento expressivo da autoria feminina em vários âmbitos, nós temos sim representações menos estereotipadas das mulheres, uma vez que nós temos de fato acesso a uma pluralidade maior de vozes”.
Faedrich também entende que houve uma transformação na mentalidade social em torno da mulher. “A gente debate mais, a mulher traz todas essas questões da existência feminina, do feminismo”, a conquista de espaços por parte da mulher teria influenciado na melhora da representação de personagens femininas na literatura, permitindo o estabelecimento de personagens verossímeis e bem construídas, fugindo de estereótipos.
Essa pluralização das vozes na literatura também é refletida em questões de raça e classe, permitindo uma ampliação de discursos antes ignorados. Há um aumento de perspectivas de ser mulher, vemos a dor da mulher indígena colonizada na obra de Márcia Kambeba, a realidade da mulher negra nos trabalhos de Conceição Evaristo, pensamos em mulheres que eram muito apagadas de nossa história.
Conceição coloca: “Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Penso nos feminismos negros como sendo esse estilhaçar, romper, desestabilizar, falar pelos orifícios da máscara”.
A literatura é essencial e, como arte, proporciona uma troca de experiências e de ideias. Quando pensamos em uma pluralização das vozes trabalhando por meio da autoria para representar essas subjetividades, também nos debruçamos sobre o imaginário criado pelo leitor em torno dessas narrativas. A personagem que antes era esquecida ganha um protagonismo e permite que a sua história seja contada a partir de uma interpretação diferente daquelas concebidas no cânone tradicional. Chiarelli expressa que a realização dessa ampliação de vozes foi uma conquista histórica.
“Em termos de vozes que estão se expressando com mais força e sendo mais ouvidas, com certeza isso foi uma conquista que veio com o tempo, com o fruto do esforço de muitas mulheres que ao longo da história, por exemplo do Brasil, estavam sempre na sombra, no silêncio”, afirma a professora.
As transformações nos modos de representação da mulher na literatura são muito expressivas nesse processo. Houve uma mudança de paradigma em relação a como a mulher era apresentada no passado e em como entendemos ela hoje. O aumento de discursos em torno da mulher permitiu que explorássemos questões antes muito negligenciadas, como o preconceito, a violência e a sexualidade. “Na literatura contemporânea de autoria feminina tem um espaço ali para os debates sobre o feminino”, coloca a professora Faedrich.
Stefania complementa: “Nós temos de fato acesso a uma pluralidade maior de vozes. Quer dizer, você vai ter o romance da mulher branca burguesa, você vai ter o romance da mulher negra vinda da periferia, você vai ter os escritos de uma mulher negra que passou por uma educação formal, um doutorado, um mestrado. Sem falar nas pessoas trans, nas mulheres trans. Há ainda as representações da velhice do feminino, que são muito interessantes, da infância. Então, é um arco muito grande e que hoje, sem dúvida, é mais plural”.
Ainda falta um grande caminho a percorrer para que a autoria feminina e as representações de ser mulher possam ser entendidas além dos empecilhos do preconceito de gênero, mas há uma certa positividade presente no futuro desse cenário literário no Brasil. Nossas perspectivas se encontram em processo de transição, e é importante que consideremos as marcas dessa trajetória e a importância de autores que traçaram esse caminho para a literatura nacional. “Eu vejo com um otimismo esse quadro”, diz Chiarelli.
Julieta, Antígona, Fedra, Viola, Catherine, Capitu, a literatura é marcada por nomes femininos imponentes, e além de heroínas, as mulheres representam escritoras e leitoras em busca de uma história que possa representar a sua realidade além dos estereótipos de nosso passado.