O retorno da moda Heroin chic impacta na percepção corporal de jovens e estimula consumo de medicamentos para emagrecer

Por Lívia Doutel de Andrade

Logo cedo, ele já está presente na rotina de vários brasileiros. Muitos dizem, inclusive, que seu dia só começa após essa prática: tomar café. Para Amanda, 19 anos, essa bebida açucarada representa bem mais do que um simples hábito: significa uma reconciliação com seu próprio corpo. Após anos de incômodo com sua autoimagem, que atingiu o auge em episódios de bulimia, ela comemora essa conquista. “Hoje eu até bebo café com açúcar, antes eu abominava o café com açúcar! Eu nunca estive tão bem de saúde quanto eu tô agora, na minha vida inteira”. 

O caso de Amanda não é isolado: de acordo com a pesquisa “Conversa sem filtro: autoestima e confiança no corpo de adolescentes”, realizada pela Unicef, a baixa aceitação corporal é comum entre os jovens brasileiros. O estudo apontou que cerca de 90% dos entrevistados compara seu corpo com o de amigos, influenciadores e artistas.

Para a psicóloga Taty Azevedo, a preocupação com a própria imagem é algo natural. O problema é quando são tomadas atitudes drásticas para se atingir um “corpo perfeito”. Dentre elas, o uso de remédios para emagrecer tem se destacado. 

O retorno da moda Y2K e a estética do heroin chic

Omar Júnior, estudante de direito, sempre gostou de acompanhar a indústria do entretenimento. Novelas, filmes e programas de televisão fizeram parte de sua infância. Agora, aos 19 anos, sua visão sobre esse tempo é outra. “Ao longo de minha vida, eu percebo que a mídia sempre alterou o meu entendimento sobre o meu corpo, porque antes eu gostava das minhas pernas – que são grossas. Com o retorno da moda que valoriza a magreza extrema, comecei a me incomodar com tal questão”. 

Peças que fizeram parte da moda dos anos 2000 têm retornado. Reprodução: FreePik 

A fala de Omar confirma o atual cenário das redes sociais: no TikTok, em 2023, a hashtag “Y2K” (year 2000), que contém vídeos com elementos que marcaram esse período, reuniu mais de 21 bilhões de visualizações. Calça de cintura baixa, blusa baby look, mini-saia… Todas essas peças, que caracterizam a estética dos anos 2000, possuem algo em comum: a exaltação do corpo magro. 

Daniela Dwyer,  professora de história da moda da PUC-Rio, explica que esse retorno é normal e recebe, inclusive, o nome de “Ciclo dos 20 anos”. As novas tendências são sempre produzidas buscando o diferente daquilo que está em vigor. No caso dos anos 2000, sua origem relaciona-se diretamente com os anos 1980. “Na década de 1980 a estética era totalmente saudável, exuberante… As modelos eram altas e magras, mas tinham curvas. A gente tinha uma estética totalmente saudável, as campanhas eram alegres. Aquilo meio que satura em um determinado momento, por ser tão massificado, e a indústria da moda precisava trazer o oposto para chamar a atenção. E o que era diferente dessa alegria toda era o apagado, o pesado, uma coisa meio lânguida, quase doente. E aí veio o heroin chic”.

Referência clara à droga, o heroin chic teve origem em 1990, época na qual os opióides atingiram o auge nos Estados Unidos. Caracterizado pelo uso de cores escuras, modelagem sem formato, palidez e olheiras profundas, essa estética foi personificada pela modelo inglesa Kate Moss, a qual é atribuída a popularização da frase “Nothing tastes as good as a skinny feels” (Nada tem um gosto tão bom quanto a magreza”). 

Ainda de acordo com Daniela, “A moda é a configuração temporal de um hábito, um costume. E ela anda de mãos dadas com a sociedade. Se você cria alguma coisa que a sociedade não vai absorver, não adianta”. E essa relação de influência é reforçada, principalmente, pela mídia. 

Corpo e Mídia: a cultura da magreza extrema

Pesquisador da representação do corpo feminino nos meios midiáticos, Rodrigo Daniel Sanches utiliza o conceito de “corpo projeto” para definir essa tendência: pele lisa, cabelos esvoaçantes, dentes branquíssimos e a magreza que, conforme salienta, é constituída pela ausência de gordura. Esse conjunto de características, que estão longe de representar a maioria das mulheres, é a mais utilizada pela mídia para construir um retrato do feminino. “Para esse corpo projeto, a imagem nunca sente dor, ela não sente medo, não sente rancor, não sente frustração, ela é sempre feliz. Isso é o corpo projeto, é uma imagem que oferece um mundo idílico, enquanto se choca com a realidade”.

Com a presença cada vez mais marcante dos meios de comunicação massivos, especialmente as redes sociais, esse “corpo perfeito” é constantemente reforçado, fato que traz uma série de consequências. “Esse corpo é vendido como acessível a todos, e é onde ele gera frustração. Nesse processo, a beleza é um padrão cultural de uma época e uma cultura. Na atualidade ele é fortemente influenciado pela mídia e pelo mercado das dietas, beleza e boa forma. Qualquer artifício para tentar alcançar o corpo projeto vai fazer sucesso, daí o uso excessivo desses medicamentos para emagrecer, mesmo com riscos”. 

Remédios para emagrecer: risco da automedicação

Aos 13 anos de idade, Amanda começou a se incomodar com seu corpo. Achava que apenas se fosse magra seria feliz. Aos 14, passou a pular algumas refeições. Deixava de tomar café da manhã um dia; no outro, substituía o almoço por um biscoito. Quando fez 15, iniciou uma rotina frenética de exercícios físicos. “Eu detestava meu corpo, me sentia mal com ele todos os dias. Fazia exercício mais como punição mesmo.” 

Mas foi no seu aniversário de 17 anos que a situação se agravou. “Na minha festa eu comi muito, até passar mal. Fui ao banheiro e pesquisei ‘como provocar vômito de forma saudável’. Senti um alívio tremendo, e pensei que a partir daquele momento, poderia comer o que quisesse, e depois era só provocar o vômito. Isso virou um hábito: passava a semana me restringindo, comia pouco. Chegava no sábado e exagerava na alimentação. Daí me sentia mal, ia ao banheiro e vomitava. Fiquei viciada nisso”.

O relato de Amanda é enquadrado no transtorno alimentar conhecido por bulimia. Nele, há a alternância entre episódios de compulsão alimentar com momentos de culpa, e comportamentos compensatórios, para “eliminar” o alimento que foi ingerido. 

Após meses lidando com o transtorno, Amanda procurou ajuda psiquiátrica, que lhe receitou o remédio topiramato, que tem como um dos efeitos colaterais a redução de apetite. “O remédio não é para a bulimia em si, mas me mantinha saciada, evitava a compulsão alimentar. Por isso o médico me passou. Mas comecei a tirar proveito da medicação, a tomar uma dosagem maior, usar de forma irresponsável mesmo, para poder emagrecer mais.” 

O uso de medicamentos para emagrecer é um tema que tem se popularizado, principalmente nas redes sociais. Em pesquisa analítica realizada em 2023, o Journal of Medicine and Public Health revelou que vídeos relacionados ao Ozempic (remédio para diabete tipo 2, mas usado para a perda de peso) somaram 70 milhões de visualizações no TikTok. Das 100 publicações analisadas, cerca de um terço incentivava o uso do remédio, sendo que somente 29 vídeos comentavam sobre seus efeitos colaterais. 

Foi a partir de conteúdos postados na internet que surgiu em Omar o interesse em tomar esse tipo de medicamento. “Com a divulgação do Ozempic, queridinho das famosas, passei a achar que questões que me incomodavam em relação ao meu corpo poderiam ser ‘resolvidas’”. 

Giovanna Balarini, médica endocrinologista e professora associada do Departamento de Medicina da UFF, alerta sobre os riscos dessa popularização, principalmente no que diz respeito à automedicação. Dores de cabeça, náuseas, diarréias e até mesmo episódios que levam à internação fazem parte das reações adversas. “Quando alguém faz um uso indevido de uma medicação, a perda de peso vai ocorrer, mas é uma perda que não é necessária do ponto de vista de saúde. Essa pessoa vai estar se expondo a diversos efeitos colaterais, e isso faz com que ela busque um tratamento médico, gerando gastos para o sistema de saúde, perda de dias de trabalho… Então tem um impacto”. 

É importante, porém, ressaltar que essas medicações representam um passo importante na medicina. Segundo Giovana, a perda de peso ocasionada pelo uso desses remédios – somado a mudança de hábitos, acompanhamento nutricional adequado e intervenções comportamentais –  já melhora de forma significativa a vida de pessoas que convivem com a obesidade. O risco está quando a busca pelo remédio é motivada exclusivamente pela estética.

Daniela Gregory, médica endocrinologista, avalia esse uso estético como perigoso para a real finalidade das medicações. “O medicamento perde a credibilidade da sua indicação para o tratamento da doença em si, pois tanto a diabetes quanto a obesidade são doenças frequentes em nossa sociedade”.

Para além dos danos físicos, as consequências psicológicas fazem parte da automedicação. Comparações com padrões de beleza irreais e o foco exagerado na aparência afetam, segundo Taty Azevedo, a qualidade de vida. Ainda de acordo com a psicóloga, “O constrangimento por sua aparência pode impactar nas relações sociais, é possível que a pessoa evite aparecer em público. O estresse para atingir esse padrão inatingível prejudica ainda mais a saúde mental, gerando sentimentos de ansiedade e depressão”. 

Novos Caminhos 

Apesar da predominância de um padrão estético, reforçado midiaticamente, Daniela ressalta que foram feitos avanços quando comparamos o cenário atual com o existente na década de 1990. “A sociedade não se comporta de maneira uniforme. Mesmo nas revistas ou na internet aparecendo o retorno do heroin chic, há um outro lado também, de pessoas que não querem se vestir dessa forma. Então uma tendência pode até ser forte nas revistas, vitrines, mas existem pessoas com outros gostos, e isso faz com que mudanças aconteçam”. 

O desenvolvimento da moda plus size, por exemplo, é uma iniciativa que contribui para a reflexão sobre a diversidade de corpos. Dados da Associação Brasileira de Plus Size revelam que até 2027 a indústria pretende alcançar um faturamento de 15 milhões. A cobrança por parte da sociedade é, para Daniele, uma das razões para esse aumento. “Conforme a sociedade vai demandando, as marcas vão se sentindo pressionadas a mudar. Então eu acredito que sim, já conversa-se muito mais do que antigamente sobre a aceitação corporal”.   

A influência exercida pela mídia pode, inclusive, ser utilizada com o intuito de propagar essa diversidade, promovendo debates sobre padrões e seus impactos. Assim, para Taty Azevedo, cabe a cada usuário estar atento ao tipo de conteúdo que se consome virtualmente. “A mídia e a sociedade podem contribuir ou prejudicar o processo de aceitação, dependendo do conteúdo disseminado. O caminho positivo transita pela promoção da conscientização, diversidade, representação de vários tipos de corpos, movimentos de positividade corporal e comunidades de apoio. Meu alerta é: Escolha com cuidado que mídias são consumidas e que mensagens você permite que sejam amplificadas e aplicadas na sua vida”. 

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