Redes sociais contribuem para a divulgação de livros com personagens que fogem à heteronormatividade

Por Sofia Ricardo Queiroz 

Dentre os 20 livros mais vendidos de 2022, segundo o PublishNews, site jornalístico especializado no mercado editorial, três eram histórias sobre personagens LGBTQIAP+. No ano anterior, apenas duas obras constavam na lista geral dos preferidos do público. Em 2020, não havia nenhum. Embora recente, o destaque de obras dedicadas a essa representatividade é uma tendência que vem se consolidando aos poucos, para alegria de leitores e autores desse segmento.

A estudante Rayane de Araujo Leite confirma essa mudança: “Ganhou bastante visibilidade, então estão sempre lançando mais obras”. Vitória Gomes também está entre as leitoras desse tipo de literatura. Ela confirma a sensação de que a temática se tornou um tema mais regular no mercado editorial: “Penso que por ser um assunto recorrente na sociedade atual os autores estão escrevendo mais sobre e as pessoas também estão procurando ler mais livros que tenham esse tipo de representatividade”.

Além das leitoras, o mercado livreiro confirma a demanda por uma literatura mais representativa em relação a questões de identidade e defende a importância do avanço da representatividade LGBTQIAP+ na literatura. De acordo com a editora Paula Drummond, a Alt lançou pelo menos 1 livro por mês sobre a temática até o momento (agosto de 2024). 

A escritora Olívia Pilar, autora de obras como “Um traço até você”,  considera que houve uma melhora tanto no mercado independente quanto no tradicional: “percebo um aumento significativo de publicações com protagonismo LGBTQIAP+, especialmente no mercado independente, mas também no mercado convencional, ainda que em menor número”.  

 Ela afirma que ainda há uma longa trajetória para percorrer no mercado editorial brasileiro, pois a publicação desses livros é muito recente, sendo preciso demarcar que está num processo de construção. Porém, de acordo com ela, o mercado de livros no Brasil está se saindo bem com o andamento das vendas de obras com essa visibilidade.

A criadora de conteúdo digital, Daniela Valadares, que criou o “Só leio LGBT” para ter um espaço onde pudesse compartilhar obras que representam essa comunidade, concorda que houve um crescimento desse protagonismo na literatura e afirma que essa tendência tem relação com uma maior conscientização sobre questões  LGBTQIAP+ e a luta por direitos e igualdade.

“Hoje mais pessoas estão buscando obras que refletem essa diversidade e que promovem a inclusão. E o que mais sinto são leitores cada vez mais interessados em encontrar histórias nas quais possam se ver refletidos”, afirma Daniela.

Daniela destaca que o aumento da procura desses livros reflete numa mudança positiva para a sociedade, mas não apenas isso, para ela, esse movimento também promove o incentivo à produção de mais obras que representem fielmente e dignamente a pluralidade das pessoas que fazem parte dessa comunidade.  

A escritora Maria Freitas, que começou a escrever sobre o que sentia e conhecia, também destaca que hoje é possível ver muito mais prateleiras cheias de livros LGBT como os mais vendidos.      

Papel das redes sociais nas divulgações de livros   

Foto: Sofia Ricardo

De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil de 2022, realizada pelo Instituto em Inteligência e Consultoria Estratégica(IPEC) na Bienal do Livro em São Paulo, a população tem recebido mais indicações de livros através de influenciadores. Um grande fator para essa mudança é a expansão das redes sociais, como TikTok, YouTube, Instagram e Facebook. A pesquisa indica que 28% dos entrevistados buscam livros indicados nessas redes. A criadora de conteúdo digital, Daniela Valadares, confirma a necessidade da mídia para a divulgação de livros com protagonismo LGBTQIAP+: 

 “As redes sociais têm um papel fundamental na divulgação de livros com representatividade LGBTQIAP+. Elas permitem que autores e leitores compartilhem suas experiências e recomendações, amplificando vozes que muitas vezes são marginalizadas na mídia tradicional”, afirma Daniela Valadares, criadora de conteúdo digital. 

A escritora Maria Freitas concorda e fala sobre a necessidade do uso do TikTok para chegar até seu público: “A rede social é a única opção que a gente tem para alcançar os nossos leitores muitas vezes. Eu acredito que o Tik Tok ajudou muito nesse ponto, porque foi uma coisa muito leitor para leitor.”

A leitora Rayane de Araujo Leite chegou a comentar que todos os livros com representatividade queer que leu foram por influência das indicações em redes sociais. E não apenas ela, mas Vitória Gomes também leu livros com protagonistas LGBTQIAP+ por causa da mídia, especificamente por recomendações de influencers que fazem conteúdo literário no Tik Tok.

Olhares da representatividade

Foto: Sofia Ricardo

A escritora Marina Basso, de 28 anos, com 6 livros publicados, comenta que seu sonho e motivo de alegria é alcançar e impactar pessoas da comunidade LGBTQIAP+ através de seus livros, assim como foi tocada ao ler obras com essa visibilidade de outros autores. Ela também afirma o quão importante é a questão dessa representação no momento de escrever e de perceber o impacto que causa no público: “Eu recebo muitas mensagens de leitores agradecendo pela história, desde pessoas mais novas que se viram representadas pela primeira vez até gente da minha idade falando que gostariam de ter tido a oportunidade de ler um livro como o meu quando eram mais jovens”. 

Já a também autora Maria Freitas, que lançou os livros “ Emma, Cobra e a garota de outra dimensão”, “ Até logo, Violeta” e “ Clichês em rosa, roxo e azul”,  expõe que usa a escrita como forma de acolhimento ao fazer com que as pessoas se identifiquem nas narrativas: “Eu acho que eu escrevo muito para isso, para as pessoas se sentirem representadas, se sentirem acolhidas, para elas verem o livro e pensarem, não estou sozinha, tem outras pessoas que também sentem isso daqui.”

Os depoimentos de leitores também reiteram a importância dessas obras para as pessoas dessa comunidade se sentirem representadas: “Livros com representatividade LGBTQIA+ me impactaram de maneira bem positiva, ler sobre personagens que têm a mesma orientação sexual que eu e ver que eles podem ter uma vida completamente normal e com relacionamentos saudáveis fez eu me sentir menos solitária”, diz Vitória Gomes.

Além disso,  apesar do Brasil ser o país com a maior porcentagem de pessoas que se declaram parte da comunidade LGBTQIAP+, conforme dados da pesquisa global-advisor de 2023, existe uma contradição. Ainda que haja um avanço nessa representatividade nos livros, a leitora Vitória Gomes indica seu incômodo com o fato de as obras sem essa representação ainda serem maioria: “mesmo com a demanda crescendo bastante, os livros com protagonistas heterossexuais ainda são maioria no ramo literário”.

Vitória Gomes explica o que espera da comercialização e publicação de livros com essa representatividade. Ela deseja que muitos outros livros com representações LGBTQIAP+ sejam lançados, pois ela acredita que essas obras são capazes de confortar as pessoas dessa comunidade. 

Assim como Vitória, a escritora Maria Freitas expõe que deseja que os livros com representações queer cheguem cada vez mais à comunidade regularmente, e não apenas no mês de junho, no qual é comemorado o mês do orgulho LGBTQIAP+. Ela espera que esses livros se tornem rotina das editoras e que essas narrativas cheguem às pessoas queer que precisam delas.

Paula, da Alt, conta que o mercado vem investindo principalmente no gênero Romance Contemporâneo, numa tentativa de representar a comunidade LGBTQIAP+ em narrativas de amor clichê que as pessoas em relacionamentos heterossexuais, monogâmicos e brancos sempre tiveram. Além disso, ela afirma que a editora pretende publicar histórias trazendo mais gêneros e propostas criativas para o segmento.

Como ocorreu o processo de representatividade LGBTQIAP+ na literatura brasileira? 

O pesquisador da sociabilidade LGBTQIAP+ de Belo Horizonte, e também doutor em literatura comparada, Luiz Morando, acredita que a literatura é uma forma artística usada para exprimir e ler o mundo, e que quando um grupo passa a ser mais respeitado, a representatividade ganha força. No Brasil, ele considera os anos 1970/1980 como um marco para o desenvolvimento dessas obras literárias no País:

“Isso se dá sobretudo a partir do então Movimento Homossexual Brasileiro (MHB)”, informa.

Ele também diz que a exibição de personagens com essa representatividade interna na ficção se iniciou de maneira diluída a partir do final do século XIX em textos narrativos com personagens protagonistas e secundários atravessados por discursos patologizantes e preconceituosos.

Ao longo do século XX, essa situação começa a se modificar a partir de representações humanizadas nas obras de alguns autores, tais como o tratamento dado a João do Rio, ou a colocação de personagens lésbicas por Cassandra Rios (desde seu primeiro romance, na segunda metade dos anos 1940). Outro marco na literatura é a Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. 

Com a virada dos anos 1970/80, surgem ainda mais autores com textos que se afastam de narrações patologizantes de sexualidade e gênero, ganhando formas mais respeitosas, dialógicas e reflexivas. 

Luiz Morando também fala um pouco mais sobre quais escritores, em termos de autoria e autodeclaração, começaram a publicar no Brasil. O professor cita as biografias de João W.Nery, autor de “Erro de pessoa”, recentemente reeditado com o título “Viagem solitária”, e Anderson Herzer, com “A queda para o alto”, no campo das identidades trans. E também com as produções literárias de João Silvério Trevisan, Caio Fernando Abreu e Herbert Daniel, na década de 1980.

Ele afirma que o processo de publicação de livros por pessoas que se identificam como LGBTQIAP+ se torna intenso principalmente a partir dos anos 2000. Além disso, ele dá exemplos de autores do século XX, como João do Rio, Mário de Andrade e Lúcio Cardoso, que faziam parte da comunidade LGBTQIAP+, no entanto, a sexualidade não era um fator determinante para o tema das obras. Conforme Luiz, livros com essa representatividade podem despertar no leitor um redimensionamento dos atos, gestos e afetos das pessoas dissidentes de sexo/gênero. 

Skip to content