O aumento dos moradores de rua e as obras de revitalização tornam o Centro de Niterói desacolhedor. O fenômeno é o retrato de um problema social importante, a falta de moradia social nas regiões centrais.

Por Helisa Moraes

O crescimento da população de rua no Centro de Niterói traz desafios diários. A falta de políticas públicas da prefeitura da cidade impacta diretamente o cotidiano das pessoas que sobrevivem da rua. Do mesmo modo, as obras de revitalização não são uma esperança na vida desses moradores. Os diversos canteiros de obras espalhados pelo Centro são sinônimos de ter que procurar outro lugar para viver.

Ao caminhar pelo centro de Niterói, percebo um aumento significativo no número de pessoas em situação de rua. Tal percepção não acontece em vão, houve um aumento de 27,6% dessa população, equivalente a 740 pessoas, de acordo com o relatório elaborado pela Sala de Situação de Saúde e pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Economia Solidária da cidade. Quando tento compreender mais sobre a história desses habitantes, quase sou expulsa de um gramado do Centro por Raimunda, moradora de rua que se recusou a dar entrevista. Este incidente não é isolado, tanto moradores quanto órgãos públicos notam a dificuldade em abordar a população de rua do município. 

“Se você tiver um maço de cigarro pra mim tá tudo certo”, disse uma moradora em situação de rua na rua Visconde de Uruguai, Centro de Niterói. Cerca de 17% da população de rua da metrópole estão na rua por alcoolismo e drogas. O acesso aos dependentes químicos necessita de uma aproximação mais delicada e detalhista, dificultando o trabalho da prefeitura nesses casos. O secretário de Assistência Social e Economia Solidária de Niterói, Elton Teixeira, afirma que parte da população de rua faz uso abusivo de álcool e outras drogas e é mais refratária às redes de apoio da prefeitura. “É um público com quem a Assistência dialoga muito, mas com quem a Saúde vem conversando demais”. 

O secretário também debate sobre as políticas que a prefeitura proporciona aos moradores. “A Cidade de Niterói tem uma rede de serviços públicos voltados para essa população”. Compondo o sistema existe o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), com uma equipe multidisciplinar que oferece serviços como alimentação, lavanderia, banho e encaminhamentos para rede de serviços da cidade. Os Abrigos da Cidade, com 350 vagas disponíveis e o Consultório na Rua, com uma equipe de saúde que auxilia no atendimento sanitário desses moradores, também compõem o conjunto. Porém, Elton se queixa sobre a atuação de outras esferas públicas. “Cabe ao poder público, não só a prefeitura, mas também o governo do estado e federal estabelecer políticas públicas que atendam a demanda dessa população”. 

Além da dificuldade em abordá-los e da falta de adesão aos serviços oferecidos, também há problemas de convivência evidentes. “Meu filho de 8 anos teve que ver um corpo estranho nu ali”, relata Lorrane Polido, 36 anos, moradora do Centro, que ao voltar com o filho da escola  deparou-se com essa circunstância e teve que explicar o ocorrido para a criança. A mãe ainda se queixa de que a “Polícia ao lado não pode fazer nada”. Esta não é a primeira intercorrência que Lorrane presencia com a população em situação de rua no lugar onde mora, ela diz que está cada dia mais impossível a situação. 

O secretário recebe diariamente queixas sobre a população em situação de rua nos canais da prefeitura e diz que há o atendimento imediato. “As pessoas veem as pessoas na rua e acham que não teve nenhuma oferta de serviço para aquela população, quando na verdade tem toda uma rede de serviços que pode ser ofertada para elas”.

Esvaziamento Histórico 

O centro de Niterói está sofrendo um esvaziamento histórico nos últimos anos. O levantamento do Sindicato dos Lojistas do Comércio (Sindlojas) de 2018 indica que 291 lojas fecharam, sinalizando uma baixa de 23,7% do comércio local. Sujeira, iluminação pública precária, insegurança e falta de manutenção dos espaços públicos são alguns dos problemas que o presidente do Sindlojas, Charbel Tauil, aponta. “Não apenas a Av. Amaral Peixoto, mas as ruas internas do Centro abrigam em suas praças e sob suas marquises grande número de pessoas em situação de rua, que deveriam estar sendo amparadas, qualificadas e reinseridas na sociedade”, diz Tauil. Em 2023, foi realizada uma audiência pública na Câmara Municipal de Niterói para debater o abandono do centro com moradores, comerciantes e representantes da OAB. Embora tenha sido convidado, o prefeito não só deixou de comparecer, como não enviou representante. Para Charbel, isso demonstra o descaso da prefeitura com o assunto.

Lojas fechadas na Av. Amaral Peixoto.

Conforme a publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o crescimento de pessoas em situação de rua na cidade pode estar relacionado ao impacto da pandemia de Covid-19. No Brasil, houve um aumento dessa população em torno de 38%, entre 2019 e 2022. Depois de 10 anos, em 2023, finalmente a prefeitura de Niterói implementou o plano de revitalização da cidade, chamado “O centro que queremos”. As obras despertam opiniões distintas entre os moradores. Para a Lorrane, as construções não passam de “obra para inglês ver” no período de eleição. “Véspera de eleição começam essas obras loucas, botando tijolinho onde já tinha sido tirado antes. Tiraram a pedra portuguesa, botaram a pedra portuguesa de novo”.  A professora Dinah Guimaraens, da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, faz críticas ao projeto “O centro que queremos”. 

“Ocupar vazios urbanos sem atentar para as relevantes questões sociopolíticas locais de Niterói – tal como a situação de risco social de sua população de rua ou o valor cultural de sua cultura imaterial tradicional de pescadores e marisqueiros – é um grave erro projetual”.  Para ela, o projeto prioriza interesses econômicos em detrimento do bem comum, que deveria ser a principal preocupação das autoridades estaduais e municipais.

Próximo a Praça Araribóia outro ponto de permanência de pessoas em situação de rua.

Quem quer o “Centro que queremos”?  

O crescimento desenfreado da população de rua e a falta de políticas públicas efetivas em Niterói contribuem para um desalinhamento total do sistema da cidade. Este problema é recorrente, segundo Charbel dado o aumento expressivo de moradores de rua do local, diversas lojas do centro fecharam as portas por terem pessoas habitando em frente delas. As recentes obras do plano de revitalização da prefeitura não solucionam todas as questões que o centro da cidade acarretou ao longo dos anos, pelo contrário “O plano foi concebido de cima para baixo, sem haver seguido uma devida escuta ampla anterior à sociedade civil ou aos meios acadêmicos locais, nem mesmo aos ditames de um planejamento participativo do Estatuto da Cidade”, como aponta a professora Dinah Guimaraens. Ao invés do “Centro que queremos”, atualmente o centro de Niterói está se tornando um lugar “insalubre e complicado de viver”, finaliza Lorrane Polido, moradora do centro da cidade.

Obras de revitalização interrompem o fluxo de pedestres nas Barcas. 

Direito à cidade

O Direito à Cidade é uma expressão originalmente usada por Henri Lefebvre, em 1968, ano marcado pelo potente movimento das juventudes engajadas na luta por direitos civis. A ideia defende o acesso e o uso equitativo das cidades por todos os seus habitantes, garantindo que todos possam viver de forma digna e participativa em ambientes urbanos, contribuindo para o bem-estar coletivo e sustentável. Eblin Farage, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense defende que Niterói é a expressão da crise estrutural do capitalismo, onde a pobreza aumenta, enquanto a riqueza é concentrada. 

“A condição de estar na rua é uma condição derivada desse processo de pauperização que gera desemprego”.

A cidade não está sendo preparada para todos. Em março de 2024, a “PL do Espigão” foi aprovada. O projeto de lei tem por objetivo organizar a estruturação da cidade, buscando transformar o espaço urbano com o meio ambiente e mobilidade urbana de maneira sustentável e também tornar mais simples as regras sobre uso do solo e licenciamento de construções. Para Eblin, o projeto de lei somado ao plano de revitalização da cidade resulta no que ela chama de “cidade mercadoria”, não havendo, assim, uma revitalização do centro da cidade de Niterói para atender à demanda da população em situação de rua ou mesmo dos moradores da cidade, mas às demandas da especulação imobiliária.

Com os altos valores dos futuros imóveis que estão sendo construídos no centro da cidade, a tendência é que os moradores de rua não permaneçam no centro e migrem para a periferia da cidade, onde ficarão ainda mais vulneráveis. ”Os moradores de rua procuram lugares que conjuguem facilidade de pedir e segurança”, afirma a pesquisadora. 

A precariedade das políticas públicas da prefeitura de Niterói transcende a falta de serviços Para Eblin, também faltam profissionais para prestarem os atendimentos. “Existe uma marca das políticas públicas em Niterói, em todas as áreas, que é a contratação precária de profissionais não só com baixo salário como em número insuficiente e com uma relação de trabalho precária para trabalhar com as pessoas em situação de rua”.

Para interromper o aumento de pessoas em situação de rua, Eblin destaca a necessidade da prefeitura de Niterói pensar em políticas públicas realmente efetivas. “Não há uma política efetiva de fato, por exemplo, o reenquadramento dessas pessoas no mercado de trabalho qualificado e o retorno dessas pessoas para a sociedade de origem”.

A prefeitura colocou pedregulhos em viaduto na saída da Alameda para evitar pessoas em situação de rua no local.
Skip to content