Quando mulheres reivindicam espaço em um ambiente marcado pelo patriarcado, a tendência é que sejam tratadas de maneira diferente, atacadas e tenham seus pontos de vista ridicularizados
Por Luiza Martins
A falta de acesso, limitação ou mesmo a exclusão completa de mulheres em determinados grupos sociais não é uma novidade. Para além do desenvolvimento de games e de áreas correlatas à tecnologia, as quais nos referimos na primeira parte dessa matéria, esse processo se expande para diversas áreas e camadas sociais. De acordo com o Manual de Boas Práticas para Processos Seletivos (2018) da Universidade Federal Fluminense, existe, por exemplo, uma série de julgamentos implícitos feitos durante processos seletivos de RH – alguns deles, diretamente ligados ao gênero do candidato.
O documento relata que professores universitários com o mesmo currículo tendem a ser lidos como mais competentes e merecedores de maiores salários quando têm nomes masculinos. Ainda no campo universitário, mulheres precisam ter duas vezes mais publicações de artigos para obterem a mesma pontuação de competência científica atribuída aos homens, segundo o documento. Sobre o mercado de trabalho, cabe sempre ressaltar que, além de questões como estas, as mulheres ainda têm que lidar com as diferenças salariais baseadas exclusivamente no gênero. De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2019, as mulheres recebem, em média, 77,7% do valor pago pela mesma função a um homem. Na prática, isso quer dizer que, se um homem ganha R$ 2.500,00 de salário para exercer determinada função, em média, uma mulher que faz a mesma coisa vai ganhar apenas R$ 1.925.
Quando o assunto é o mundo dos games, esse panorama não é nada diferente – seja para as mulheres que gostam do meio enquanto comunidade ou para quem trabalha nele. Com históricos de ameaças, descredibilização, ridicularização, ataques pessoais, falta de apoio e até de pagamento para as apresentadoras, o universo dos jogos e dos esports ainda tem muito a melhorar – ainda que, visualmente, se esforce para parecer mais inclusivo. Entretanto, as diferenças aparecem quando ouvimos algumas das vozes atuantes nesse mercado.
O Casarão entrevistou cinco mulheres que estão nesses lugares: Luiza “Croft” Trindade, ex-jogadora e técnica de Free Fire e atual diretora de esports da Team Solid; Joyce “JigJ0y” , caster (comentarista), de Call of Duty Mobile; Alycia “Brabait”, streamer de esports; Samara Barboza, jornalista de games da IGN Brasil, e Isadora Basile, apresentadora de games independente. Todas elas contaram sobre as próprias perspectivas como mulheres em um meio cuja exclusão feminina é constante. As entrevistas têm perspectivas distintas – algumas mais otimistas e outras, menos – mas nenhuma deixou de mencionar as dificuldades atreladas, exclusivamente, ao gênero nesse meio.
No Brasil, os esports, por exemplo, são uma área considerada em ascensão. Nos últimos anos, o país se tornou um dos maiores mercados de ramo, segundo um levantamento feito pela Newzoo. Na América Latina, é o público que mais consome, tendo movimentado cerca de US$ 2,6 bilhões somente em 2022. Além disso, atualmente, os times brasileiros de esports também estão entre os que mais faturam, tendo acumulado mais de US$ 10 milhões em premiações desde 2017. Isso tudo considerando as atuações dos times masculinos, visto que, quando o assunto são as competições femininas ou mesmo a atuação dessas jogadoras, o cenário é bem diferente. Embora as mulheres sejam maioria entre os consumidores de jogos eletrônicos, (50,9% segundo a PGB), as oportunidades para elas no cenário são escassas, além de serem marcadas pela exclusão, assédio e a sobrecarga de trabalho.
“Eu dormia cerca de quatro horas por noite. Fui a primeira técnica, entre homens e mulheres, de Free Fire e muita gente fez isso depois de mim. Eu não cheguei a achar que não conseguiria chegar onde eu queria, mas eu tenho certeza que nem todas as mulheres tiveram as mesmas oportunidades que eu”. Quem conta essa experiência ao Casarão é Croft, que foi jogadora do popular game mobile até 2020, depois passou a atuar como técnica e, hoje, é diretora da Team Liquid, uma das maiores equipes do cenário. Ela contou que deu os primeiros passos no game ainda em 2017, quando o jogo “estourou a bolha” e virou febre. A diretora contou que, na época, passou a seguir rotinas exaustivas de gravação de conteúdo sobre o jogo e que, mesmo assim, ainda precisava dar mais para ter o mesmo reconhecimento de colegas homens.
Depois da carreira de jogadora, Croft foi a primeira mulher a ser técnica de uma equipe da série A de Free Fire, ou seja, a competição de elite da liga brasileira. Entretanto, isso não partiu de um convite, como normalmente acontece – ela simplesmente subiu de categoria com a equipe. Por isso, ela chama a atenção para o fato de que acontece o mesmo com outras mulheres que não conseguem o mesmo feito. “É triste pensar que outras técnicas e jogadoras não vão ter a mesma chance, ainda mais agora que não existe mais a série B. E elas não vão ser chamadas para o competitivo porque são mulheres”.
O que é curioso é que, de acordo com Croft, isso acontece mesmo que Free Fire, especificamente, seja um jogo que traz engajamento feminino. Durante a entrevista, ela relatou que cerca de 60% das pessoas que acompanham as competições do game são mulheres, e que isso reflete, diretamente, em divulgação publicitária que tenta ser mais representativa. Não à toa, para ela, o cenário mudou muito em relação ao competitivo quando ela assumiu o papel de diretora, e passou a correr mais pelo “backstage” do game. O lado relativo à mídia e publicidade do Free Fire, diferentemente das competições em si, é bem mais equilibrado, na visão dela.
Na mídia, de fato, é possível notar o investimento dos esports para trazer mais mulheres como rostos dos cenários. É o caso da caster Joyce “JigJoy”, principal comentarista das disputas de Call of Duty Mobile durante o ESL Mobile Masters de 2024, ocorrido na cidade de São Paulo. Ela contou que era apaixonada por jogos desde criança e que o interesse foi expandindo até que se especializou na versão para celulares do famoso shooter. JigJoy explicou que, na carreira dela, se considera sortuda por, apesar de cercada de homens o tempo inteiro, ter sempre trabalhado com quem estava disposto a ensiná-la. Mas a comentarista deixou claro que “apesar de eu ter tido boas experiências, sei que o entorno é pesado.”
Para Joy, COD:M, especificamente, é um game mais inclusivo em relação a esse público nas competições – o que explica, por exemplo, ela não ter tido uma experiência relacionada a ataques pessoais nos games. O shooter já teve campeonatos femininos com organizações patrocinando lines só de mulheres. Por isso, a apresentadora considera que não só ela, mas também as mulheres fãs do mobile ficam mais seguras nessa comunidade especificamente. O público do próprio Mobile Masters, inclusive, foi feminino em grande parte – cenário esse que difere de disputas de outros games, como Counter Strike e Valorant, que não são conhecidos por oferecer o mesmo estímulo. Muito pelo contrário, até. As comunidades desses games costumam ser avessas às representações. E isso é algo que faz toda a diferença para a caster.
“As comunidades também são diretamente responsáveis por fazer com que as mulheres apareçam nesses meios. Quando essas pessoas aceitam que as mulheres estão estudando e se esforçando para estarem nesses lugares, mais marcas investem nelas e elas aparecem. Ainda existe, sim, resistência quanto a isso, mas eu acredito em uma mudança positiva”.
Outra que cita uma mudança positiva no cenário é Alycia “Brabait” Reis, que além de caster, também é streamer de games. Ela atuou por dois anos como pro-player antes de seguir na carreira de apresentadora. A “Braba”, como é conhecida entre os amigos, sofreu ataques no início, principalmente por ter mudado de comunidade, indo do Call of Duty Mobile para outros games. No entanto, ela destacou que foi apoiada pela organização, o que foi importante para que ela conseguisse lidar bem com a situação. “Quando a gente se apresenta como caster de um jogo diferente, a gente ainda está entendendo como funciona o jogo. E aí, vêm comentários como ‘essa menina não sabe de nada e está comentando’. Mas tem muita gente que acolhe também, já que alguns cenários são muito carentes de mulheres”.
Por ter passado anos no cenário competitivo do COD:M, Alycia contou que, quando virou streamer, já tinha uma preparação mental para lidar com comentários depreciativos e ataques. “É um cenário majoritariamente formado por homens e, querendo ou não, a gente sofre. A diminuição acontece quase todos os dias, então a gente tem que trabalhar a cabeça para não se deixar abater. Quando eu cheguei nas redes sociais, já vim com esse background. E quando aconteceu, eu já tinha uma organização por trás, que agiu rápido. Não me desestimulou. Quando a gente tem apoio, fica mais fácil lidar”, concluiu.
Entretanto, Brabait destacou, durante a entrevista, que o cenário vem em uma mudança positiva. Ela contou que, mesmo no time onde jogou, só havia ela de mulher. Mas hoje, esses espaços são mais equilibrados. Para ela, é algo que avança em pequenos passos; degrau por degrau, mas está em curso. Ela considera, inclusive, que apesar dos ataques no início da carreira, conseguiu o espaço que queria.
“Quando a gente acha que o nicho evoluiu, acontece alguma coisa e parece que tudo para o início”. Essa foi a resposta de Samara Barboza, jornalista de games do IGN Brasil, quando perguntada sobre a forma com que as mulheres vêm sendo recebidas na hora de falar e escrever sobre games. A redatora, que já trabalha no cenário há quatro anos, contou que, na área dela, percebe uma mudança em relação ao número de mulheres ocupando essas posições. Entretanto, os comentários e a recepção estão sempre sujeitos a ataques pessoais e descredibilização. “A gente tem várias mulheres em posições de destaque, mas sempre acontece algo e a gente pensa ‘é, voltamos a como era alguns anos atrás’. Comentários sobre namoro, roupas, corpo, esse tipo de coisa, sempre aparecem”, apontou.
Ela contou, inclusive, que já foi alvo desse tipo de ataque no IGN. Para ela, “o gamer sempre vai achar que sabe mais do que você, mesmo que você tenha estudado para estar naquela posição”. Por isso, no início, Samara se sentia insegura de falar sobre alguns jogos de maior notoriedade no cenário, prevendo que haveria sempre a chance de ataques. Contudo, como recebeu todo apoio das equipes por onde passou, com o tempo, Samara foi se acostumando. Hoje, ela não se abala pelos comentários, que considera “toscos” em grande maioria. “Não me define como profissional. Se eu desligar meu Wi-fi, nada disso vai me atingir. Mas eles estão lá, sim”, contou.
Samara contou que sempre se interessou por games, mas que o acesso era restrito durante a infância, já que “dificilmente, alguém dá um console a uma menina”. Para ela, restava aproveitar as oportunidades para jogar com primos e amigos que tinham videogames em casa. E mesmo que a jornada da redatora no universo dos jogos eletrônicos tenha começado cedo, ela contou que, naquela época, já percebia que a relação das meninas com videogames era bem diferente da dos meninos. E também notava, desde criança, que as personagens femininas eram diferentes, ainda que não entendesse ao certo como e nem o porquê.
Um exemplo disso, na visão da entrevistada, eram os jogos de luta. Apesar de se declarar uma fã do gênero, a jornalista foi crítica quanto à representação dos corpos das personagens nesse nicho. Vale fazer a ressalva que o gênero é entendido como o que pior representa as personagens mulheres, como apontam Guilherme Pedrosa Carvalho de Araújo e Georgia da Cruz Pereira no artigo Vista-se Para a Batalha: Representação Feminina nos Jogos de Luta (2017). No estudo, a dupla chama atenção para o fato de que esses jogos têm vasta gama de personagens, uma vez que as histórias não são o foco deles, apenas os combates com as mais distintas habilidades. Ainda assim, de acordo com os dados levantados nas análises dos autores, “64% dos personagens de jogos são homens. Se for analisado o percentual de personagens jogáveis, esse número sobe para 73% e menos de 15% são mulheres, das quais metade atua como adereços ou personagens secundárias”.
No caso de Samara, essa representação fazia inclusive com que ela ficasse constrangida por estar jogando quando seus pais entravam na sala. Em Mortal Kombat, por exemplo, além de as personagens terem roupas que ela achava desnecessárias, no final das brigas, os pedaços que restavam ainda iam saindo. “Meus pais passavam na sala e diziam ‘o que essa menina está jogando?’. Eu era nova e não entendia. Comecei a entender nos anos seguintes, quando eu passei a problematizar essa representação e a falar com outras pessoas sobre. Mas tinha um incômodo”.
“Eu lembro que queria ter uma coxa que nem a da Chun-Li. E eu tinha 12 anos. É triste pensar que ela e a Lara Croft são as maiores lembranças de personagens femininas que tenho da infância. Jogava videogame todo dia; era para eu lembrar de mais”. Esse é o depoimento de Isadora Basile, apresentadora de games que já trabalhou na Microsoft, Omelete, IGN Brasil e que hoje atua de forma independente. Um dos rostos mais familiares do cenário atual, Basile apresenta campeonatos de esports, é podcaster e produz conteúdo sobre games. Só em 2024, foi escalada para o Rainbow Six Invitational, IEM CS Major em Copenhagen e o RMR das Américas.
Como as demais entrevistadas desta reportagem, para Basile, a paixão pelos jogos começou cedo, ainda que houvesse um afastamento em relação às personagens o que tornava difícil se enxergar em alguma delas. “Na hora, a gente não percebe tanto, ainda mais sendo uma criança. Mas quando eu via os meus amigos gostando de vários personagens e eu só tinha a Chun-Li, eu via a falta que faz essa representatividade. Eu não conhecia uma vilã legal para gostar. E mais velha, quando fui conhecer, era a Bayonetta, que é extremamente sexualizada”.
Contudo, não conseguir se enxergar no mundo dos jogos não foi, nem de longe, a pior experiência de Isadora com o nicho. Quando começou a ganhar destaque com a produção de conteúdo sobre jogos, um dos primeiros trabalhos de Basile foi como apresentadora do XboxBr, canal do YouTube da Microsoft. Na época com apenas 18 anos, a apresentadora foi alvo de assédio sexual, ameaças de morte e de estupro por parte da comunidade do canal. Isso sob justificativas de que ela não “jogava o suficiente” e que “não era digna do cargo dela”. Isadora foi demitida da Microsoft pouco menos de dois meses depois de assumir o cargo, sob a desculpa de que a empresa “queria protegê-la do assédio”.
Ela comentou que, na época, ficou sentida e desestabilizada por todo o processo, principalmente por conta de um desdobramento específico que não foi à mídia e nem aprofundaremos nesta reportagem para manter a privacidade da vítima. Entretanto, Isadora destacou que todas as comunidades têm pessoas que incentivam e gente tóxica. Para ela, o que complica a discussão é a forma com que as grandes empresas lidam com isso. “Na época, eu achei que minha carreira tinha acabado. Eu era nova, mas estava empolgada com a oportunidade e achava que aquele era o teto. Respeitei a decisão da marca, mas fiquei sem cartas na manga. Felizmente, um mês depois eu consegui outra boa oportunidade e fui aproveitando”.
Isadora contou que os ataques que sofreu online a seguiram por cerca de uma ano e meio, quando ela já fazia parte da equipe da IGN Brasil. À frente da parte de vídeos, ela contou que algumas pessoas eram extremamente cruéis e que, nessa época, praticamente todas das mensagens direcionadas a ela eram de ódio. “Eu pensei em ficar um tempo atrás da câmera na época, mas com o tempo e adaptação ao veículo, foi melhorando. E aí, a vontade de desistir passou, ainda bem. Tive muito apoio das pessoas que importavam naquele momento, o que fez toda a diferença”.
Quando perguntada sobre melhorias para as mulheres nos ambientes de jogos, Isadora foi categórica: existe, mas depende de nichos e comunidades. Para ela, a melhor forma de fazer com que essa melhora aconteça de verdade é ceder espaços grandes para que as mulheres competentes estejam lá – e não apenas no dia das mulheres ou para falar do quanto é difícil ser mulher e trabalhar com games. Isadora defende visibilidade para um trabalho contínuo e reitera o que parece óbvio, mas não é: essas mulheres precisam ser pagas por esse trabalho.
“Tem marca que quer pagar a ‘visibilidade’ dando camiseta em troca de post em rede social. Já aconteceu comigo. Na hora de chamar para fazer campanha, eles chamam. Mas quando é para reconhecer o trabalho, pagar como pagam os homens, a coisa muda de figura”, contou. Para Isadora, “as marcas precisam incluir as mulheres em pautas que vão além da dificuldade de ser uma mulher nos games e os homens precisam enxergar mulheres como seres humanos e acompanhá-las pelo trabalho, não por questões estéticas. Para mim, a responsabilidade de manter as mulheres no cenário é das marcas, mas trazer novos nomes para esse universo ainda depende muito do público fazer deste um lugar seguro para elas”, concluiu.
Referências:
https://newzoo.com/resources/rankings/top-10-countries-by-game-revenues