Em um cenário musical em constante transformação, ainda se mantém a relevância dos críticos – em seus mais variados perfis
Por João Pedro Sabadini
Com o avanço das plataformas digitais e a ampliação de canais de distribuição de música, a crítica musical tem passado por transformações significativas. Em um cenário de constantes transformações, o que antes se restringia a veículos especializados agora se espalha por diversos formatos, redes e estruturas, permitindo que as avaliações alcancem um público mais amplo e variado. Nesse novo quadro, o crítico musical enfrenta o desafio de se manter relevante e de continuar oferecendo uma análise que vá além das primeiras impressões. A função do crítico – que já foi central na mediação entre o artista e o público – agora precisa se redefinir para acompanhar as novas dinâmicas de consumo e produção de conteúdo na era digital.
Redes sociais e a crítica musical
Assim como na maioria das áreas de trabalho, o advento das redes sociais alterou profunda e intrinsecamente a forma e o ritmo de como se produz conteúdo. Na crítica musical, espaços que eram dominados apenas por jornalistas em meios tradicionais de comunicação – especialmente o jornal impresso – deram cada vez mais espaço a outras possibilidades.
No lado positivo, a jornalista e repórter do g1 Carol Prado e o Tony Aiex, formado em Tecnologia da Informação e fundador/editor-chefe do “Tenho Mais Discos Que Amigos!” – um dos maiores portais de música do país – acreditam que, graças a isso, a crítica cultural ficou mais democrática, tanto em perfis quanto em formatos. Luciano Matos – jornalista e fundador do “El Cabong”, site sobre música independente com foco na Bahia -, também fez tal observação e citou “a democratização das vozes” como ponto favorável. Na mesma linha, o autointitulado criador de conteúdo musical Fabrizio Franco – que soma 67 mil seguidores no TikTok e 2.5 milhões de curtidas na plataforma com “A Clave do Fá”, perfil onde fala sobre os mais variados temas da música – caracterizou o acesso às críticas como algo mais plural e inclusivo. O publicitário Matheus Izzo, que se denomina como influenciador musical e também usa as redes sociais – em especial o X (antigo Twitter), onde tem 43 mil seguidores – para falar sobre tal universo, cita que as redes sociais ajudaram a espalhar a informação.
No entanto, como nem tudo são flores, eles também se preocupam com as consequências de tais mudanças. A superficialidade foi algo citado de forma unânime entre os(as) entrevistados(as). Tony Aiex diz que “apesar de democrático, esse modelo acaba dando espaço para pessoas que não têm muito apreço pela informação fazerem críticas rasas e superficiais com títulos chamativos, apenas pelos números”. Matheus Izzo também destaca como a própria indústria pode atuar nesse aspecto: “a parte ruim das redes sociais é que ela deu mais espaço para gente que não é do ramo escrever sobre isso e, infelizmente, tem muita jogada de marketing e de publicidade. Eu trabalhei numa gravadora e posso dizer que sim, existe muito”.
Fabrizio Franco afirma que outro ponto determinante para a superficialidade é o próprio funcionamento das redes, o que faz com que ele adapte o seu modelo de produção: “a lógica veloz não só das redes como também ao acesso a novos conteúdos cria um efeito reverso da necessidade de fazer o quanto antes uma análise, pois a próxima já terá que ser feita, o que pode tornar as análises rasas e supérfluas. Sempre fui um consumidor voraz de conteúdos de diferentes tópicos antes de resolver criar a ‘Clave do Fá’ durante a pandemia e sempre entendi que não teria outro jeito de sobreviver neste universo online se não fosse com rapidez, infelizmente. Então sim, eu faço dessa maneira pensando no algoritmo, caso contrário o meu conteúdo não seria tão acelerado”.
A esse respeito, Carol Prado entende que a proliferação de opiniões nas redes sociais realça a relevância dos críticos musicais tradicionais: “quem consome cultura e quem consome crítica, muitas vezes consegue ver um vídeo ou ler um texto e saber o que é escrito de forma superficial porque é feito de forma superficial e o que é feito com embasamento, com pesquisa, com apuração. Acho que, nesse sentido, aumenta a importância não só da crítica, mas de todo o jornalismo profissional”.
Luciano Matos reflete sobre essa dualidade presente na crítica musical atual, apontando que a superficialidade muitas vezes dá espaço a conteúdos de qualidade questionável. Ele destaca que, ao tratar um tema de forma vaga, perde-se a oportunidade de extrair o máximo valor da obra analisada. Para Matos, uma análise mais aprofundada é essencial para oferecer uma visão consistente e que faça jus ao objeto de estudo, evitando a banalização da música e de seus produtos.
Visto que a visão crítica pode contrastar com a superficialidade, é possível equilibrar a análise bem fundamentada com a dinâmica da era digital? A repórter do g1 Carol Prado acredita que sim: “eu acho que é possível conciliar as coisas, você fazer um trabalho legal e bem fundamentado com uma linguagem de internet que esteja conectada ao que as pessoas estão consumindo nas redes, que seja um trabalho que engaje também, porque, claro, a gente quer ser lido, ser visto, ser consumido. Todo crítico quer que seu trabalho seja consumido, mas que não seja só o engajamento pelo engajamento, que seja um conteúdo com profundidade, com substância”.
O editor-chefe do “Tenho Mais Discos Que Amigos!” Tony Aiex ressalta a importância de criar conteúdos mais longos e aprofundados em um cenário onde o consumo de informações curtas e rápidas está se tornando cada vez mais comum. Como jornalistas e influenciadores, ele acha que é fundamental oferecer um contraponto a esse consumo raso. Além disso, ele prevê que, eventualmente, haverá uma reação contrária, onde as próximas gerações voltarão a se interessar por conteúdos mais profundos e detalhados.
A missão contemporânea dos críticos em um mercado saturado de opiniões
Apesar das transformações sistêmicas nesse recorte, não há como dizer que não há busca e consumo por esse tipo de gênero. A crítica está presente no universo do jornalismo há tempos, especialmente no campo das artes: no cinema, teatro, literatura e, não poderia ser diferente, na música. Contudo, assim como os tempos são outros, os desafios apresentados na atualidade também se alteram.
Patricia Palumbo, jornalista e participante do programa “Vozes do Brasil”, da Rádio Cultura, salienta o poder e a influência da rádio, mas lamenta o modo na qual tem sido conduzida: “acho que as rádios ainda têm um papel fundamental. Elas são muito fortes em comunicação, mas o problema é que elas não mostram a diversidade da música brasileira, elas não têm diversidade sequer de música internacional. Quando você ouve, é tudo flashback, não tem nada moderno, não tem nada contemporâneo, não tem nada interessante, não tem pesquisa, não tem inovação, não tem ousadia. Rádio, hoje, é repetição. É muito chato ouvir rádio. São raríssimas as emissoras e você tem que buscar muito, tem que buscar emissoras públicas, emissoras universitárias, porque a rádio tradicional, hoje, tá prestando serviço ao poder da grande massa, a manipulação das grandes massas, grandes grupos de comunicação e grupos religiosos”.
O influenciador Matheus Izzo acredita na modificação do papel desempenhado pelos críticos. Na sua visão, o profissional deve se concentrar mais em fornecer contexto e escrever sobre uma história em cima de um álbum, clipe, símbolo ou vídeo. O foco, para ele, está mais em criar uma narrativa e apresentar uma perspectiva do que em apenas avaliar o conteúdo publicado. Retomando o ponto da profundidade do conteúdo produzido, Tony Aiex afirma que o papel é de ser uma fonte confiável de informações no meio de várias outras que pouco se aprofundam nas coisas.
Já Carol Prado sente que o trabalho de curadoria é um grande trunfo para a área e aposta no crescimento de tal tarefa, pois sente que o trabalho da crítica hoje vai além de simplesmente dar opiniões. Segundo ela, os críticos também desempenham um papel importante na curadoria, oferecendo recomendações e listas, como “cinco filmes para ver no final de semana” ou “cem melhores álbuns de todos os tempos”. Com o aumento desses conteúdos nas redes sociais, ela vê a curadoria crítica como uma parte cada vez mais relevante para orientar as pessoas sobre o que ouvir, assistir e fazer, visto que estão buscando tais informações.
Seguindo na mesma ideia de fazer uma seleção, o jornalista e fundador do “El Cabong” Luciano Matos dá destaque para a identificação de novidades: “eu acho que para quem se interessa mais profundamente por música, para o cinema, o que quer que seja, a crítica tem essa importância de apontar tendências. Apontar algo de interessante e relevante que passa despercebido, que não tenha ganhado uma atenção do próprio mercado, muitas vezes. Então eu acho que tem uma importância como sempre teve”. Ele também comenta sobre a “poluição” das redes sociais, onde há inúmeras pessoas falando muito e, no final das contas, ter o ruído dominando tudo.
Críticos tradicionais X influenciadores: inimigos, aliados ou coabitantes?
Nos últimos anos, a fronteira entre críticos musicais tradicionais e influenciadores digitais tem se tornado cada vez mais difusa. Enquanto alguns defendem que essas duas figuras podem coexistir e até se complementar, outros apontam para diferenças fundamentais em suas abordagens, especialmente no que diz respeito à profundidade da análise e à influência sobre o público. Essa evolução reflete as novas dinâmicas de comunicação e consumo de música no contexto atual.
O criador d’A Clave do Fá Fabrizio Franco admite que a linha pode ser tênue entre esses dois universos dependendo da situação, mas vê com naturalidade essa relação, pois pensa que ambos os mundos podem conviver em harmonia nesse mercado, se beneficiando mutuamente. Tony Aiex também acredita na possibilidade das duas atuações: “um jornalista formado que se especializa em críticas pode ter o papel de influenciador e fazer suas análises em formatos que sejam mais atraentes para as novas gerações. Do mesmo jeito que influenciadores digitais podem mergulhar profundamente em um lançamento para falar a respeito dele”.
Abordando novamente a questão da superficialidade, o influenciador Matheus Izzo considera um diferencial a profundidade técnica de um(a) profissional que estudou música ou jornalismo, argumentando que essa expertise oferece uma compreensão mais rica, em contraste com a abordagem dos influenciadores: “eu acredito que os influencers tenham um papel maior na comunicação, falar sobre um show, o que vai acontecer, aonde que vai ser. É um papel muito mais de notícia, na minha opinião, do que um papel de crítica. Eu tento mesclar as duas coisas e eu entendo que o meu público não consome crítica como consome, por exemplo, informações”.
Luciano Matos, por sua vez, considera a atuação dos influenciadores mais próxima da publicidade e do marketing do que um trabalho de crítica consistente: “acho que é muito diferente. Eu acho que ele não precisa estar embasado, ele não precisa se aprofundar em nada, ele só precisa indicar algo que ele ache legal porque ele tem muitos seguidores. Então ele pode falar de música, mas ele pode falar de qualquer coisa. O influencer tem influência em tudo, então pouco importa a profundidade que ele vai dar a um assunto, uma obra, um artista. Ele só vai indicar ‘isso é bom, isso é ruim, olha que legal’”.
Em um tom mais reflexivo, Patricia Palumbo distingue os dois atores: “eu acho que os influenciadores digitais, com raríssimas exceções, não fazem análises musicais, eles soltam opiniões nas redes. A maior parte deles querendo buscar seguidores, causar algum tipo de bagunça, no melhor dos sentidos. Eu acho que influenciador digital é uma coisa e crítico é outra completamente diferente. Um crítico pode ser influenciador porque, afinal de contas, a profissão do jornalismo é a profissão de um formador de opinião. Então o influenciador de hoje é o jornalista de ontem, que era o formador de opinião. Estamos nas redes, estamos soltando material, soltando conteúdo, mas é tudo muito diluído. Quando você tem muita oferta, a diluição é muito grande”.
Reação do público
Antigamente, a relação entre críticos musicais e o público era marcada por uma distância que, em muitos casos, os preservava das reações mais imediatas e viscerais. As discordâncias eram expressas em conversas privadas ou em cartas aos editores, que pouco chegavam ao autor da crítica. Hoje, no entanto, essa dinâmica mudou. Com as redes sociais e suas plataformas de comentários, o retorno do público se tornou instantâneo e frequentemente direto. Críticos e influenciadores enfrentam um volume crescente de reações, muitas vezes duras e agressivas, de leitores que discordam de suas opiniões. Essa proximidade imediata e intensa exige dos(as) profissionais uma nova postura, onde lidar com críticas ao próprio trabalho tornou-se, ironicamente, uma parte inevitável e constante da profissão.
Carol Prado, que já sofreu ataques em função de suas matérias, afirma que acompanha quando há alguma opinião controversa e polêmica, mas que não é algo que influencia diretamente seu trabalho a ponto de não fazer determinada crítica porque acha que vai haver reclamação: “isso não acontece porque muita gente confunde crítica com hate (ódio). Muitos fandoms (grupos de fãs), muita gente que envia essas reações negativas, quem me xinga na internet, confunde crítica com hate. Então você publica um conteúdo analisando o trabalho de um artista e muitas vezes tem pontos negativos daquele trabalho ou questionamentos que são estritamente profissionais, que são críticas ao trabalho e não são comentários pessoais ao artista, mas muitos fãs mais fervorosos tratam como se fossem ofensas pessoais, o que não acontece. Então para mim é muito fácil entender quando alguém critica o meu trabalho, de onde vem essa crítica: se é uma coisa a ser considerada mesmo para melhorar o trabalho ou se vem dessa confusão”.
Matheus Izzo conta que também já recebeu mensagens fortes ao comentar sobre informações de shows ou ao fazer críticas, mas que hoje consegue lidar bem diante da situação: “antigamente eu ficava bem mal, mas hoje eu sei lidar melhor porque eu entendo que não consigo agradar todo mundo e que algumas pessoas só estão ali para ver o circo pegar fogo porque elas vivem da polêmica e vivem de falar mal de alguma coisa. Infelizmente, a internet também deu espaço para essa gente. Claro que as críticas quando chegam aos montes me afetam, mas nada que a gente não possa lidar na terapia (risos)”.
À medida que o jornalismo musical continua a evoluir na era digital, a convivência entre críticos tradicionais e influenciadores digitais ilustra as novas possibilidades e desafios do campo. Enquanto alguns focam em adaptar suas práticas para manter a relevância e profundidade em meio ao consumo acelerado de informações, a coexistência com influenciadores amplia as formas de engajamento com o público. Se por um lado há receios de que a superficialidade possa comprometer a qualidade das análises, por outro, há um reconhecimento crescente de que essas novas dinâmicas podem enriquecer o debate musical, desde que haja um equilíbrio entre acessibilidade e rigor crítico. O futuro da crítica musical, portanto, parece estar em encontrar essa harmonia, onde diferentes vozes possam coexistir e contribuir para uma compreensão mais ampla e diversa da música contemporânea.