Para além da dança, o charme é um espaço de pertencimento e empoderamento, mas os bailes ainda enfrentam desafios para sua realização no Rio de Janeiro
Por Yasmin Ramalho
Se você gosta de música, já deve ter visto pelo menos algum vídeo de um grupo dançando passos envolventes de forma quase sincronizada. O charme é não só uma dança embalada pelas batidas do soul e do funk, mas uma manifestação cultural de singular importância para a comunidade negra.
O Rio de Janeiro foi berço deste movimento após a chegada do soul na região sudeste, trazendo a cultura dos bailes nos anos 1970 e 1980 em um cenário no qual jovens dos subúrbios se reuniam em grandes festas para dançar, celebrar e se divertir com amigos.
Esta cultura continua se fazendo presente com a proeminência de dois bailes na capital carioca: o Baile Charme do Viaduto de Madureira e o Baile Black Bom.
“O Baile Charme do Viaduto de Madureira é singular por reunir tanta gente com um único propósito: se divertir. Na grande maioria, são jovens negros periféricos que encontram um lugar pra chamar de seu. Escutam as músicas que gostam, aprendem a dançar e ali vão moldando a personalidade, o caráter, a auto-estima”, declarou Michel Jacob, conhecido como DJ Michel.
Aos 12 anos, Michel começou a reger as pistas, tocando em bailes diurnos por conta da idade. Aos 13, se tornou residente do Baile Charme do Viaduto de Madureira, em 1994, mas discotecava apenas de 19h às 21h, limite para alguém de sua idade.
Desde então o laço com este local sagrado no charme carioca se estreitou e 30 anos depois, Michel continua embalando os passinhos dos frequentadores.
Em sua experiência como DJ, ele destaca a característica ímpar dos bailes charme como um espaço de união e empoderamento. “Muitos entendem quem são a partir do momento que passam a frequentar o espaço”, afirmou.
A região central da cidade, berço da cultura negra carioca, também deu origem a outro baile conhecido: o Baile Black Bom.
O evento foi criado na Pedra do Sal em 2013 por Sami Brasil e Antonio Consciência, a partir de sua banda, Consciência Tranquila, um grupo autoral que promove música com informação e consciência. Até que experimentaram um projeto de releituras de clássicos da black music e escolheram a região da Pequena África para estrear este novo formato de show.
“A gente estava nesse processo de pesquisa mesmo do funk soul e queria trazer um som mais dançante. Então, a gente junta esse momento da banda trazendo as releituras com o contato mais aproximado com o movimento negro, com algumas instituições”, conta a produtora cultural Sami Brasil.
Herança cultural e identitária
No Rio de Janeiro, o bairro de Madureira é conhecido por suas fortes raízes musicais, através das escolas de samba Portela e Império Serrano, mas outros gêneros também são marcantes, como o pagode, o hip hop e o próprio charme.
É também a localidade que deixaria sua marca na história desta dança em 1990, quando o espaço sob o Viaduto Negrão de Lima se tornou um ponto de encontro para os apreciadores do estilo, dando origem ao famoso Baile Charme do Viaduto de Madureira.
Em 2013, o evento realizado no Espaço Cultural Rio Hip Hop Charme foi classificado como “Bem Cultural de Natureza Imaterial” da cidade do Rio de Janeiro pelo prefeito Eduardo Paes.
O cantor e dançarino Átila Soares conta que seu primeiro contato com o universo do charme veio desde que era criança, com a influência de seu pai, frequentador assíduo do baile no Viaduto.
“Desde pequeno ouvia histórias dele e escutava as músicas que são tocadas no baile, R&B e hip hop, mas foi a partir de 25 anos de idade que comecei a frequentar de fato”, contou.
Para o músico de 32 anos, o espaço criado pelo baile charme resgata “tanto a cultura como a auto-estima” dos frequentadores. “Eu amo essa polivalência de escutar músicas que eu adoro, poder dançar e principalmente poder curtir com meus amigos”, diz ele.
Já o Baile Black Bom, através da ajuda de apoiadores, como o CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas) e de patrocinadores, começou a crescer, realizar eventos culturais e festas de rua gratuitas promovendo a cultura da música negra e lotando espaços importantes do Rio de Janeiro, como no Renascença Clube, no Andaraí, ou a Zona Portuária da cidade.
O projeto fez tanto sucesso que o evento se expandiu por outros estados da Região Sudeste. Desde 2022 frequentemente são realizados bailes em São Paulo, Belo Horizonte e Vitória. Mas o crescimento também trouxe dificuldades, segundo Sami.
“Aqui no Rio de Janeiro está cada vez mais difícil de realizar o nosso baile. Aqui a gente cresce nesse formato das ruas e as políticas culturais do Rio de Janeiro não suprem a nossa demanda. É cada vez mais difícil conseguir um patrocínio, principalmente esse ano”, contou ela, declarando que ainda não sabe se será possível realizar o evento na Praça Mauá, o principal do Baile Black Bom.
Das mesmas raízes do baile, foi criado em 2017 o Instituto Black Bom, primeiro co-work para empreendedores negros e periféricos, focado na produção e curadoria de eventos e feiras culturais.
Inicialmente como um espaço físico multicultural afrocentrado com palestras gratuitas, espaço de beleza e escritórios, a sede teve que ser fechada por falta de investimento. Mas as ações continuam com curadorias para eventos e empresas e seguem em busca de parcerias para amplificar ainda mais o trabalho dos empreendedores envolvidos.
O Baile Black Bom também possui uma parceria com o Charme Pro para oferecer oficinas de danças gratuitas e pagas no Rio de Janeiro e através da modalidade online para os entusiastas pelo movimento envolvente do charme.
Black is beautiful
No Rio de Janeiro, o Movimento Black Rio foi um importante marco na história destas reuniões, além de ter sido responsável por enaltecer a auto-estima e o empoderamento da cultura negra.
Criado por volta de 1968/69 com intuito inicialmente musical, reunia jovens da periferia carioca, majoritariamente da zona norte, para ouvir os principais artistas norte-americanos da black music e dançar seus passinhos únicos.
O baile surge então como um espaço de valorização da identidade negra, sobretudo considerando a influência deste gênero musical, com grupos e artistas pretos fazendo músicas que exaltam sua cor, seus cabelos, seu estilo, sua beleza e seu poder. Torna-se então um espaço plural, no qual seus frequentadores se sentem acolhidos e empoderados.
As equipes de som e os DJs tiveram um papel imprescindível nestes eventos, sendo os condutores de uma experiência muito mais do que sonora, explorando os diferentes momentos da noite e guiando o público aos diferentes passos e danças.
Foi então que nos anos 1980, o termo ‘charme’ foi cunhado por DJ Corello. Ao introduzir sonoridades diferenciadas nas pistas, Corello percebeu que o público dançava de forma distinta, logo, em um baile no clube Mackenzie, no Méier, o DJ evoca: “Chegou a hora do charminho, transe seu corpo bem devagarinho”. A expressão então grudou na ponta da língua dos frequentadores.
É charme ou funk?
“Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito e o outro elegante”
Na música ‘Rap da diferença’, os MCs Markinhos e Dollores abordam as distinções entre ambos, cada qual com suas características marcantes tanto na estética quanto em suas dinâmicas.
Os versos citam os diferentes estilos de vestimenta, costumes e danças. Enquanto o “funkeiro” aposta em um estilo “internacional”, com roupas de marca, o “charmeiro” desfila de forma despojada e social “num tremendo visual”.
Historicamente, o charme e o funk carioca possuem raízes no soul, no funk e no hip hop norte-americano, cada um seguindo o seu próprio desdobramento. Enquanto o funk carioca tem forte influência no funk e no hip hop dos Estados Unidos, sobretudo nos subgêneros miami bass e freestyle – também conhecido como funk melody –, com sons mais melódicos, o charme bebeu da fonte do R&B (Rhythm and blues) e do soul, com passos mais cadenciados e envolventes.
“No charme, a musicalidade do R&B americano continua, mas vai trazer esse gingado carioca, misturado com outras matrizes da dança como o samba, a dança afro. E o funk vai se desenvolver nas favelas também, com as referências que tem no território”, explica Sami, destacando os quatro elementos do charme: “a música, a dança, o comportamento e a vestimenta”.
Para Átila, um charmeiro é alguém que respeita a cultura deste movimento, sendo “uma pessoa que ama dançar e reproduzir os passos ou que mesmo não sabendo a dança, fica fissurado em ver os outros no mesmo passo. Também pode ser um amante da música que canta e vibra com a escolha do set do DJ”, disse o dançarino, se considerando uma junção dos três.
“Dentro do nosso baile tem muito charme, mas a gente traz também a característica ativista do hip hop, esse compromisso com o impacto social. Então, se você for no Black Bom, você vai ouvir charme, soul, funk melody, porque a gente faz justamente essa viagem no tempo da black music, esse passeio musical que vai começar nos anos 1970 e terminar na atualidade”, completou a idealizadora do Baile Black Bom.
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Crédito: Baile Black Bom/Michael Magalhães @michaelmagalhaes