As ferramentas de IA são um avanço ou perigo para a indústria cinematográfica nacional?

Por Júlia Barbosa

Vinte e dois anos depois de seu lançamento, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, está sendo restaurado para ser relançado nos cinemas. Esse tipo de remasterização está longe de ser inédito, porém a notícia anunciada durante a 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, que aconteceu em junho deste ano em Minas Gerais, levantou uma série de debates, sobretudo, porque a Inteligência Artificial (IA) será um recurso substancial do processo. 

Mesmo sendo uma produção relativamente recente, o longa, que é um dos mais emblemáticos do cinema nacional, ganhará uma nova roupagem para conquistar um novo público e, também, “surpreender” aqueles que já o conhecem bem. Para isso, serão lançadas duas novas versões: uma com melhorias gerais de som e resolução de imagem e outra tecnicamente inédita.

É aí que a inteligência artificial entra em cena. Ela será utilizada com o objetivo de ajustar imperfeições técnicas e efeitos de pós-produção. Paulo Barcellos, CEO da O2 Filmes, produtora responsável pelo filme original e pela remasterização, detalhou como a ferramenta generativa será incorporada: 

“A IA será fundamental para automatizar a limpeza de frames, detectando falhas, trechos faltantes, imperfeições do original e nos dando opção de escolhermos como ajustar da maneira que decidirmos”, descreveu Barcellos durante o painel da CineOP. 

Painel sobre a restauração de Cidade de Deus na 19ª CineOP – Créditos: Divulgação/Léo Fontes

 A pós-produção de Cidade de Deus será praticamente toda refeita em um laboratório de audiovisual em Los Angeles. De acordo com a nota da O2 para a imprensa, mais de 18 horas do material bruto gravado em 2002 passarão por essa limpeza e, em seguida, pela digitalização e “melhoria”. 

Como a Inteligência Artificial é explorada no cinema?

Como estamos falando de IA, é justo focar no termo “automatizar” e o que ele representa no processo de revitalização de filmes e no cinema de maneira geral.  Ela já vem sendo utilizada há alguns anos, principalmente, nas técnicas de pós-produção e efeitos especiais. E, assim como em outras diversas áreas, as ferramentas generativas estão em processo de expansão, fazendo com que a indústria audiovisual explore cada vez mais recursos para substituir métodos tradicionais e até funções executadas por profissionais. 

É nesse sentido que o diretor carioca Lucas Muniz demonstra preocupação quanto ao uso da Inteligência Artificial no cenário cinematográfico brasileiro. Para ele, a automatização pode significar uma ameaça às premissas basilares da sétima arte e, também, aos trabalhadores da Cultura: 

“Não precisa ir para Hollywood, onde os roteiristas pediram regulação do uso de IA durante sua greve e muitas demandas foram rejeitadas, para enxergar o problema. Quando ela toma o lugar de trabalhos que envolvem criatividade, pensamento humano, a própria lógica de produto audiovisual muda, uma vez que esses filmes são construídos para atender a um público padrão, como um checklist de assuntos”, argumenta o cineasta, que também trabalha na Agência Nacional de Cinema (Ancine).

No ano passado, os sindicatos dos roteiristas (WGA) e dos atores (SAG) estadunidenses entraram em uma greve coletiva que paralisou boa parte das atividades em Hollywood entre maio e novembro. Entre as pautas do movimento estava a regulamentação do uso da IA, tendo em vista os efeitos da exploração desenfreada da ferramenta sobre a classe artística. Entre eles estão o escaneamento das feições de atores e figurantes para recriá-los digitalmente em outros projetos sem sua permissão ou pagamento e roteiros desenvolvidos a partir de “prompts” do Chat GPT, por exemplo. 

E como disse Lucas, não é necessário olhar para outros países para pegarmos episódios de referência. A própria Globo utiliza Inteligência Artificial para ajustar a qualidade técnica de suas novelas antigas antes de serem integradas ao catálogo da Globoplay. Esse foi justamento o exemplo que Giovanna Ribeiro, jornalista especializada em cinema e entretenimento, levantou para questionar até onde é válido recorrer a essa tecnologia: 

“Eu acho que a crítica que a gente pode fazer é questionar se o resultado fica bom o suficiente. Esse processo da Globoplay usa imagens muito antigas e já tem vários casos que elas ficaram distorcidas. Ficou esquisito porque a inteligência artificial não tem a sensibilidade que uma equipe de pessoas teria”, avalia a crítica de cinema.

Ribeiro ainda ressalta que a IA pode ser positiva e benéfica se for empregada para ajudar profissionais capacitados. No entanto, se ela é operada somente como um gerador automático, por outro lado, vai na contramão do que a preservação prega: a manutenção da memória coletiva e a defesa do patrimônio cultural.

A restauração de filmes preserva a memória coletiva

A restauração de filmes é um processo importante para a recuperação e manutenção da memória histórico-cinematográfica. Ela serve para revitalizar obras antigas para que, literalmente, não se percam em almoxarifados e reencontrem o lugar ao qual elas realmente pertencem – as salas de cinema. Isso também funciona para filmes, séries e novelas icônicas como Cidade de Deus? Claro! Pode até parecer que “todo mundo viu”, mas não é bem assim. Colocá-lo de volta em cartaz movimenta o público, os estabelecimentos, a imprensa e o discurso ao redor da produção em um novo contexto. 

Ainda há outras camadas quando falamos em produções menos conhecidas pelo público, o que aumenta ainda mais o valor da restauração. A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, foi lançado originalmente em 1985 e retornou às telas neste ano após um longo e cauteloso processo de remasterização. O longa-metragem baseado no romance homônimo de Clarice Lispector foi restaurado manualmente “frame a frame” por uma equipe especializada que teceu uma versão que chegou à resolução de 4K.

Marcélia Cartaxo como Macabéa em A Hora da Estrela (1985) – Créditos: Vitrine Filmes

Em uma entrevista concedida à CNN em maio, Marcélia Cartaxo, que deu vida à protagonista Macabéa, afirmou que a remasterização garantiu a manutenção do legado de A Hora da Estrela: “A gente entra para a história. Vai ficar imortalizado. Essa é a grande importância [da remasterização]. Já está revitalizado nas telas. Vai ficar para toda a vida”.

A atriz veterana, que ganhou o Urso de Prata do Festival de Berlim pelo papel, ainda acrescentou que a volta do filme às telas é uma oportunidade para que as novas gerações possam se identificar com a história, mesmo depois de quase quatro décadas:

Cartaxo ainda reiterou à CNN que acredita que ainda existem outras Macabéas nos dias de hoje. Para ela, essas mulheres estariam inseridas em um novo contexto, marcado pela tecnologia e pela velocidade moderna, mas seguem sofrendo com as mesmas violências e invisibilidades que as da protagonista de Lispector.

A IA interfere no legado dos filmes nacionais?

Além de perpetuar a herança do filme, a restauração também renova o debate ao redor dos temas abordados não só na trama e na ficção, mas também no contexto socioeconômico no qual ele foi produzido. Diante disso, vale perguntar se a restauração feita  através da  IA seria uma forma de “manipular” a memória coletiva de uma determinada época. Quando questionado sobre, Lucas Muniz respondeu um enfático “sim”:

“Acredito que os ‘defeitos’ de uma obra são importantes para entendermos o contexto daquela produção. A restauração funciona mais como um instrumento de preservação do que de limpeza de um estado original, para potencializá-lo. Corrigir defeitos, de muitas formas, é apagar o gesto daquela imagem. É como querer tornar mais nítida a foto que alguém tirou enquanto fugia da polícia. Como vamos saber a angústia de fugir da polícia se o tremor da câmera é tirado, para capturar a ‘informação’?”, ponderou o diretor.

Já para Giovanna, essa especulação seria um exagero, já que acredita que a própria trama é o que carrega as marcas da época em que um filme foi feito. Destacando, claro, que o limite está na distorção das mensagens que estão sendo transmitidas para o público:

“É uma lógica como a de um museu, por exemplo, uma obra não perde o valor do contexto histórico-social porque ela foi restaurada com materiais novos. Mas, ao mesmo tempo, ela não pode ficar que nem aquele quadro que a restauradora deixou Jesus completamente torto e desfigurado”, compara lembrando do caso da restauração mal-sucedida do Ecce Homo, afresco do pintor Elías García Martínez que está em uma capela na Espanha desde 1910 e foi desfigurado em uma tentativa de restauração em 2012, causando uma grande comoção nas redes sociais.

Ainda teremos que esperar um tanto para descobrir se a remasterização de Cidade de Deus vai “desfigurar” a história de Buscapé. Não há previsão de data para o relançamento nos cinemas brasileiros e no circuito internacional, já que a restauração ainda está em curso. 

 

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