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Estima-se que em 2024, as casas de apostas foram responsáveis por movimentar entre 89 a 129 bilhões de reais, escancarando os impactos econômicos e sociais da falta de regulação das apostas esportivas

Por Marcus Gralha

Com certeza você conhece alguém que realiza apostas esportivas como hobby ou até mesmo já tentou a sorte alguma vez. As casas de apostas online, mais conhecidas como BETs, se tornaram uma febre no imaginário brasileiro, em 2023, devido aos “ganhos fáceis” que as apostas podem trazer. Multiplicaram-se o número de empresas atuando no setor, de influencers vendendo estratégias de como apostar e ter altos lucros, e, consequentemente, também houve o aumento de pessoas buscando a sorte de conseguir se livrar das dívidas por meio das apostas esportivas e se endividando ainda mais. 

As BETs receberam autorização para operar no país em 2018, durante o governo de Michel Temer, por meio da Medida Provisória 846/2018, na modalidade de apostas em cotas fixas (o apostador sabia, no momento da aposta, o valor exato que iria ganhar caso acertasse). A Medida Provisória, que viria a se tornar a Lei 13.756/2018, estabeleceu um prazo de quatro anos para a regulamentação da modalidade de apostas no território nacional. Entretanto, com a falta de normas para o mercado das apostas esportivas online, empresas estrangeiras passaram a oferecer seus serviços no território nacional sem qualquer tipo de restrição ou tributação.

De acordo com dados da Strategy&, entre 2018 e 2023, o volume de valores movimentados em apostas esportivas aumentou mais de 1.300%. De 2022 para 2023 houve um aumento expressivo, marcando o não cumprimento do prazo para a regulamentação estabelecido pela Lei. Esse aumento exponencial observado passou a impactar, diretamente, outros setores da economia nacional, como o setor do comércio. Para o professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcelo Pereira de Mello, que pesquisa a história e sociologia dos jogos de azar, o mercado das bets não apenas redireciona o rendimento das famílias do consumo de bens e serviços para as apostas esportivas, mas também enfraquece sua estrutura econômica: “A Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e  o Banco Central divulgaram recentes estudos que sugerem que o aumento de dívidas bancárias e a redução do consumo de bens duráveis estariam relacionados ao desvio de recursos da renda familiar para as apostas. Contudo, mais que impactar a economia do país, o dinheiro canalizado para apostar nas bets impacta com muita força a economia das famílias, especialmente as mais pobres”

Além disso, o pesquisador explica que a circulação de dinheiro nesse mercado desregulamentado favorece a prática de crimes financeiros. “Quanto maior o volume de apostas e de dinheiro, maior as probabilidades de crimes fiscais, como sonegação, lavagem de dinheiro e corrupção. Tudo isso afeta a economia real”. 

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Dados levantados pela Strategy&, da PwC, no relatório “O impacto das apostas esportivas no consumo”

A Nova Regulação das BETs

O estrondoso aumento no número de casas de apostas a operar no Brasil (mais de trezentas) e o volume de valores movimentados, levaram o Congresso Nacional a se debruçar sobre a temática durante o ano de 2023, no que se tornaria o marco legal das BETs. A Lei 14.790/2023 trouxe importantes pontos acerca da regulação, tributação, licença para operar em território nacional e divulgação das marcas de apostas esportivas (confira os principais pontos da regulamentação no quadro abaixo)

Além da lei sancionada, foi incubido ao Ministério da Fazenda a competência de regular o setor das apostas de quota fixa. A pasta criou, em 2024, a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF) que, até o momento, publicou mais de dez portarias com regras relacionadas a esse tipo de aposta. No dia 21 de maio de 2024, a SPA publicou a Portaria 827/2024 com as regras que as casas de apostas deverão seguir para poderem atuar no Brasil, estabelecendo o prazo de 20 de agosto de 2024 para a entrada na documentação. As empresas que não pediram autorização tiveram que encerrar as operações no país até 10 de outubro de 2024. Na versão mais recente da lista disponibilizada pelo Governo Federal, 104 empresas e 230 marcas estão aptas a realizar operações no território nacional. 

Somado a portaria anteriormente citada, o Ministério da Fazenda adicionou outros pontos importantes relacionados à regulação. O primeiro deles é sobre o prêmio a ser pago pelas casas de apostas – deve ser de, no mínimo, 85% do valor arrecadado em prêmios. Além disso, a partir de 1º de Janeiro de 2025, as operadoras deverão, obrigatoriamente, ter domínio do site terminando em “bet.br”. No que tange à fiscalização, a SPA será responsável por realizar a atividade e poderá inspecionar in loco as atividades da empresa. Caso seja observada alguma violação das normas estabelecidas, as casas de apostas podem ser advertidas ou multadas.

O professor Marcelo Mello aponta que as medidas são um avanço importante, mas que ainda estão muito longe do ideal: “A regulamentação e a fiscalização inibem o jogo ilícito, bancado por casas de apostas clandestinas, e aumenta consequentemente a proteção do apostador e a integridade das apostas. Limita, também, uma série de ilegalidades associadas ao jogo clandestino: lavagem de dinheiro, corrupção de autoridades, financiamento de atividades criminosas ligadas às quadrilhas que exploram o jogo, tais como o tráfico de drogas, armas, prostituição”. 

Contudo, o pesquisador aponta que, apesar dos avanços, ainda é necessário uma legislação mais rigorosa e restritiva. “A legislação aprovada é muito frouxa, bem menos restritiva se comparada a países que possuem regulações específicas para as BETs, estando mais preocupada em contemplar os interesses do lobby dos empresários do jogo que gerar um ambiente seguro para a população”, comenta Marcelo.

As apostas esportivas como forma de salvar a economia familiar

A promessa de dinheiro fácil com os possíveis ganhos das apostas esportivas têm feito com que diversas pessoas passem a se aventurar por esse mundo. De acordo com um levantamento do Banco Central, os brasileiros gastaram cerca de R$20 bilhões em apostas online entre Janeiro e Agosto de 2024. O estudo ainda aponta que, somente neste ano, cerca de 24 milhões de pessoas físicas realizaram algum tipo de aposta ou jogo de azar. Com relação ao perfil dos apostadores, a maioria possui entre 20 e 30 anos, com um gasto mensal de R$100. O estudo aponta ainda que, conforme a idade dos apostadores avança, os gastos chegam a ultrapassar a casa dos R$3000. 

Outro dado alarmante divulgado no estudo foi que, em agosto, cerca de 5 milhões de pessoas pertencentes ao núcleo familiar de beneficiários do Bolsa Família gastaram cerca de R$3 bilhões com empresas de apostas esportivas – a estimativa foi feita a partir da análise de transferências por PIX. Por conta desse dado alarmante, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Governo Federal criasse mecanismos que impedissem que o dinheiro do Bolsa Família fosse utilizado em apostas esportivas. Em resposta, a Advocacia Geral da União (AGU) argumentou que o governo não possui a capacidade de realizar esse microgerenciamento por diversos fatores – desde o fato de as contas bancárias dos beneficiários não ser de uso exclusivo para o recebimento do benefício, como também pela proteção de dados daqueles que recebem o Bolsa Família. 

O pesquisador Marcelo Mello aponta que o governo precisa encontrar mecanismos para evitar que mais problemas sejam gerados: “As BETs só tomam e tomarão medidas que assegurem os seus lucros. Elas precisam de um ambiente legalmente seguro e fiscalização oficial para garantir a lisura das apostas e para fidelizar o consumidor. Os efeitos de suas atividades sobre as pessoas, as famílias, a coletividade (à saúde pública, por exemplo) não são temas e problemas que as casas de apostas, cassinos, loterias queiram se envolver. As externalidades negativas, tais como vício, compulsão, falências, desagregação familiar normalmente sobram para o Estado e os governos resolverem. As Bets dizem que pagam seus impostos e que cabem mesmo às autoridades resolverem os problemas associados ao jogo. A sociedade, por intermédio de suas instituições políticas, tem que avaliar se o dinheiro gerado pelas apostas compensa os problemas sociais que geram”.

O Instituto Locomotiva realizou, também em agosto, uma pesquisa que intitulou como “A Epidemia das BETs” e tinha como objetivo analisar os impactos das apostas online na vida dos brasileiros. De acordo com o estudo, quase metade da população que faz apostas esportivas iniciou no meio no início de 2024 e quase 70% dos apostadores realizam, ao menos, uma aposta por mês. Quando perguntados sobre o principal motivo para realizarem as apostas esportivas, 53% dos entrevistados responderam que ganhar dinheiro era seu objetivo principal. Contudo, cerca de 45% dos apostadores relataram que já tiveram prejuízos financeiros por conta das apostas.

Dados do Instituto Locomotiva na Pesquisa “A Epidemia das BETs”.

Além disso, 6 a cada 10 brasileiros apontaram que as apostas esportivas ocasionam alguma mudança no estado emocional delas. Entre os sentimentos mais descritos pelos apostadores estão: emoção, ansiedade, felicidade, estresse, alívio e culpa. Esses sentimentos se refletem diretamente no convívio social dos apostadores, entre os quais 30% reconheceram que as apostas impactam diretamente as suas relações. Esse impacto pode estar diretamente relacionado ao vício em apostas esportivas, que vêm se tornando cada vez mais frequentes (67% dos entrevistados relataram conhecer pessoas que estão viciadas em apostas esportivas). 

O psicólogo Luiz Fernando Miranda aponta que o vício em apostas esportivas deve ser levado a sério: “A atuação do vício em jogos não está muito diferente dos outros vícios na parte neuropsicológica. Nada mais é do que uma atuação do cérebro que afeta alguns sintomas neurais relacionados ao prazer e a recompensa. Apesar da incerteza sobre se vai ter um bom resultado ou não, o sistema de recompensa cerebral está sendo constantemente estimulado. Isso ocasiona uma dificuldade ao cérebro de enxergar as apostas como algo prejudicial. A área familiar e social pode acabar sendo bastante afetada porque os impactos são muito visíveis e comuns: como o isolamento do familiar e a ocultação das perdas financeiras, criando uma barreira de desconfiança e frustração entre os membros da família.”.

A seguir, o jornal O Casarão traz um depoimento de uma fonte que passou o drama de conviver com o vício em apostas esportivas. Em respeito ao pedido do entrevistado, que atualmente possui 27 anos e trabalha com professor de inglês, manteremos o anonimato, como nos foi solicitado, retratando-o com o acrônimo R. 

“Em 2019 um amigo mandou um print com uma aposta que ele fez na Copa Mundial de Basquete, e isso me “despertou” pro mundo das apostas online, com a famosa promessa do dinheiro fácil “apostando no óbvio”. Minha pretensão inicial era somente me divertir, apostando pouco, o valor que eu depositava não ultrapassava os 100 reais por mês. De 2019 até 2023, eu fazia apostas todos os dias da semana, mesmo durante a pandemia, quando os jogos haviam sido paralisados. Durante esse período as casas de apostas disponibilizaram jogos virtuais de simulação. Quando eu não estava apostando, eu estava pensando em apostas. Eu acordava feliz porque no dia anterior havia ganhado algo, ou triste porque havia perdido algo. Nesses 5 anos em que passei apostando, perdi cerca de 80 mil reais”, disse R.

Quando perguntado sobre como o vício em apostas o impactou nas relações sociais, R destacou que ele foi severamente impactado: “O meu humor chegou a depender completamente dos resultados das apostas. Quando elas davam certo, eu me sentia em completo êxtase, sentindo que “nada poderia me deixar triste”. Por outro lado, quando elas não davam certo eu sentia o completo oposto, e por vezes repetia pra mim mesmo que nunca mais iria apostar. Por vezes eu precisava encontrar desculpas ou explicações para dar pras pessoas do meu círculo social, por vergonha de dizer que eu não tinha dinheiro pois tinha perdido nas apostas. Esse sentimento chegou ao ápice quando eu passava a destratar pessoas próximas por causa das apostas, o que foi um sinal de que eu estava perdendo o controle da minha própria mente”. 

R também pontuou o que o fez ter uma virada de chave para resolver o seu vício nas apostas: “Eu comecei a pensar nas apostas esportivas como elas realmente são: coisa pra quem entende (e eu não estava incluído nesse grupo). Eu tenho plena consciência de que é possível ganhar dinheiro com apostas, mas pra isso você tem que entender muito do assunto. E essa ilusão de que qualquer um pode ser esse especialista, alimentada pelos “gurus de apostas”, é o grande problema a ser combatido. Quando eu entendi isso, eu entendi que precisava do “escrutínio” das pessoas próximas de saberem que eu era MUITO RUIM em apostar pra que eu lembrasse desse momento de “crítica” e conseguisse usar a lógica pra me convencer de que eu não iria ter ganho algum com esse mundo esportivo. O retorno financeiro/emocional quando uma aposta múltipla dá certo é viciante, ilusório, extremamente perigoso e distante da consistência no longo prazo. Não existe aposta fácil ou óbvia, só existe a ilusão pelos números”.

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