Por Sofia Azevedo
O futebol feminino é exemplo clássico das desigualdades de gênero sofridas pelas mulheres no esporte. Mas apesar disso, consegue ser símbolo mundial de resistência e de luta feminina por igualdade.
Nascida na na década de 20, a modalidade esportiva se espalhou por todo o Brasil, mudando a história de milhares de mulheres, entre as quais a da niteroiense Mariana Azevedo, de 19 anos. Em uma família de três irmãs, foi o pai que deu a Mariana sua primeira chuteira, e quem a ensinou a marcar gols.
Mariana levou a paixão para a escola, onde começou a jogar com os meninos. “Sempre me olhavam torto, me chamavam de machona e não queriam me deixar brincar”, conta ela. Mas mesmo com toda a adversidade Azevedo cresceu apoiada naqueles que acreditavam no seu potencial, e no final do ensino médio resolveu seguir seu sonho. Hoje, Mariana faz parte do time do Botafogo sub-20.
“Chegar até aqui é mais do que a realização de um sonho, pra mim é um símbolo de resistência contra a sociedade e contra todos que desacreditaram de mim”, afirma ela.
Histórias como a de Mariana não são únicas, segundo dados de uma pesquisa realizada pela Folha de São Paulo, no Brasil, 6% das mulheres, em todas as faixas etárias, praticam futebol. Apesar disso, a falta de apoio e incentivo dificultam o aumento deste número e a possibilidade de meninas enxergarem o futebol como possibilidade de carreira.
Em contrapartida, pode ser observada na cidade de Niterói uma tentativa, tanto por parte do poder político quanto do poder civil, de mudar essa realidade. Em agosto de 2023, foi realizado o 1º Campeonato Feminino de Fut7, denominado “A Dona da Bola”, na Arena Sun7, em Itaipu. O evento, voltado para mulheres e meninas, buscou promover a profissionalização no esporte e revelar novos talentos. A iniciativa contou com o apoio da Prefeitura de Niterói e da Secretaria de Esporte e Lazer.
Além disso, em novembro de 2022, a Praia de Icaraí sediou o evento “Mano a Mano – Donas do Jogo”, que contou com a presença de renomadas jogadoras, como Marta, Cristiane e Debinha. O torneio, transmitido ao vivo pela televisão, teve como objetivo fortalecer pautas relacionadas ao futebol feminino e incentivar a prática esportiva entre as mulheres.
Anna Clara Machado também cresceu jogando futebol, e ao mudar de cidade para cursar a faculdade na Universidade Federal Fluminense, se sentiu aliviada em encontrar apoio em algo que já conhecia em uma nova vida. “O futebol sempre foi meu ponto de fuga, algo que eu fazia quando as coisas estavam difíceis. E poder praticar esse esporte dentro da universidade com outras meninas que compartilham da mesma paixão foi muito importante para mim”.
Em junho de 2023, durante os Jogos Universitários, diversas atléticas da UFF obtiveram resultados expressivos no futebol feminino. A Associação Atlética Acadêmica Camillo Guerreiro (AAACG), representando o curso de Direito, conquistou o primeiro lugar no futsal feminino na primeira série. Além disso, a Atlética de Engenharia da UFF Petrópolis alcançou o primeiro lugar no futsal feminino na série prata.
Embora não se saiba de forma detalhada sobre a origem exata do futebol feminino nas atléticas da UFF em Niterói, a presença ativa das atléticas nas redes sociais também têm contribuído para a visibilidade e incentivo ao futebol feminino.
Essa mudança também pode ser observada no novo complexo esportivo da cidade. O espaço, revitalizado pela prefeitura que teve sua inauguração em dezembro de 2023, conta com campo de futebol com grama sintética, além de quadras poliesportivas, de tênis e de vôlei de praia.
As atividades oferecidas no complexo incluem futebol, futevôlei, altinha, voleibol, basquete, tênis de praia, treino funcional e tênis de quadra, estando aberto para toda a comunidade, promovendo a inclusão e a participação de meninas e mulheres nas diversas modalidades esportivas.
A cidade também tem visto crescer o número de turmas de futebol e times voltados para mulheres. Gladiadoras Futebol Feminino, Leoas de Niterói e Fênix Futebol Feminino são alguns dos nomes que mais se destacam entre os times.
O treinador Carlos Lacerda, do Inter Academy Niterói, afirma que a escola tem aberto novas turmas voltadas exclusivamente para meninas. “A procura tem aumentado, então temos tentado atender à demanda abrindo novas turmas na nossa unidade”.

Disparidades
Apesar das tentativas de investimento na categoria e do interesse pelo futebol feminino no Brasil ter crescido em 34% nos últimos cinco anos, segundo pesquisa feita pela Sponsorlink, as desigualdades de gênero existentes no esporte ainda são gritantes.
Para a Copa do Mundo de 2022, realizada no Catar, foram investidos aproximadamente US$10 bilhões em infraestrutura, enquanto a Copa do Mundo Feminina de 2023 contou com apenas US$27 milhões. As diferenças também se manifestam nos valores das premiações: a Copa do Mundo Feminina de 2023 distribuiu R$765 milhões, valor muito inferior aos R$2,2 bilhões destinados à versão masculina do torneio em 2022, segundo informações da FIFA.
No âmbito dos patrocínios, a competição feminina de 2023 arrecadou cerca de US$300 milhões, representando apenas 18% dos US$1,7 bilhão obtidos pela edição masculina anterior, de acordo com dados da empresa “Omdia”, fornecidos aos jornais Time e Blooming.
Mas porque o esporte ainda é tão desigual?
Historicamente, o futebol feminino foi alvo de proibições e preconceitos. No Brasil, por exemplo, mulheres foram impedidas de praticar o esporte entre 1941 e 1979, com base na justificativa de que atividades “incompatíveis com a natureza feminina” deveriam ser evitadas. Esse atraso estrutural prejudicou o desenvolvimento de ligas, clubes e uma cultura esportiva sólida para as mulheres, enquanto o futebol masculino prosperava como um dos maiores mercados esportivos globais.

Culturalmente, o futebol feminino ainda luta contra estereótipos de gênero que desvalorizam sua prática e audiência. A ideia de que o esporte seria “menos emocionante” ou “inferior tecnicamente” reflete preconceitos que não encontram respaldo na realidade.
Em 2001, o regulamento do Campeonato Paulista de Futebol Feminino incluiu uma cláusula que visava “enaltecer a beleza e sensualidade das jogadoras para atrair o público masculino”. Essa diretriz refletia uma abordagem discriminatória e sexista em relação ao futebol feminino, priorizando atributos físicos das atletas em vez de suas habilidades esportivas. A medida gerou críticas por objetificar as jogadoras e desviar o foco de suas competências no esporte. Felizmente, regulamentos posteriores foram revisados para eliminar tais diretrizes, permitindo que o futebol feminino evoluísse com maior foco na performance atlética e na igualdade de gênero.
Socialmente, o futebol feminino enfrenta uma batalha constante por visibilidade. A falta de cobertura midiática regular, aliada ao baixo interesse de patrocinadores, limita o alcance e a popularidade das competições femininas. Mesmo assim, iniciativas recentes, como transmissões gratuitas de jogos e maior integração de mulheres em cargos de liderança esportiva, têm mostrado que o cenário pode mudar.
Nascimento do futebol
Poucos esportes têm uma origem tão antiga e controversa quanto o futebol. A prática de chutar uma bola ou objeto semelhante remonta a civilizações milenares, como os chineses da Dinastia Han. Cada um desses jogos antigos possuía características próprias, mas compartilhavam a essência do que viria a se tornar o esporte mais popular do mundo.
A forma moderna do futebol, no entanto, começou a ganhar forma na Inglaterra, no século XIX. Naquele período, o país passava por mudanças sociais e econômicas profundas devido à Revolução Industrial, e as escolas e universidades começaram a organizar jogos que seguiam regras mais uniformes. Em 1863, foi fundada a Football Association (FA), em Londres, que estabeleceu as primeiras regras oficiais do esporte. Nascia, assim, o futebol como o conhecemos hoje.
No final do século XIX, o Brasil já começava a sentir os ventos do futebol. Marinheiros britânicos que atracavam em portos como o de Santos trouxeram bolas e improvisaram partidas durante suas estadias. Contudo, o grande marco da introdução formal do esporte ao país é atribuído a Charles William Miller, um brasileiro filho de imigrantes ingleses que estudou na Inglaterra.
A primeira partida oficial a acontecer no país teve como palco o Várzea do Carmo, dando início àquilo que se tornaria uma paixão nacional e um dos pilares da identidade brasileira. Para o futebol feminino, esse início só se dá na década de 1920 na cidade de São Paulo, com partidas de futebol organizadas. Entre essas pioneiras, estavam mulheres anônimas que ousaram desafiar o que era considerado adequado para seu gênero.
Apesar de muitos considerarem a prática uma simples performance para entreter, elas se dedicavam com paixão e habilidade. Muitas dessas mulheres vinham de bairros periféricos, onde as brincadeiras com a bola eram comuns entre crianças de todas as idades, mas o reconhecimento para elas estava longe de acontecer.
Enquanto os homens já jogavam profissionalmente e atraíam multidões, essas mulheres enfrentavam a discriminação e lutavam por espaço em um esporte onde os homens insistiam em dominar.
Em abril de 1941, um golpe duro atingiu o esporte feminino no Brasil. O presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei 3.199, que, em seu artigo 54, proibia as mulheres de praticarem esportes considerados “inadequados à sua natureza”.
O discurso oficial justificava o veto com argumentos pseudocientíficos: alegava-se que essas modalidades poderiam comprometer as funções biológicas das mulheres, seu equilíbrio psicológico e até mesmo sua capacidade de serem mães.
Segundo Aira Bonfim, mestra em História pela FGV, o decreto-lei não tinha como foco proteger a saúde feminina, mas sim limitar a liberdade das mulheres, restringindo seu tempo livre e sua expressão social. Era, nas palavras de Bonfim, uma ferramenta de controle disfarçada de preocupação.

O futebol feminino só começou a ganhar força com o fim da proibição em 1979. Ainda assim, a modalidade enfrentou inúmeras dificuldades: falta de infraestrutura, preconceito e apoio financeiro limitado eram a realidade das jogadoras. Apenas nos anos 1980, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) passou a organizar competições femininas, e, em 1988, o Brasil enviou uma seleção feminina para disputar seu primeiro torneio internacional oficial, na China.
Foi na década de 1990, porém, que o futebol feminino começou a ganhar relevância global. Em 1991, foi disputada a primeira Copa do Mundo Feminina, e o Brasil participou com uma seleção que, apesar de suas limitações, deu visibilidade ao talento das jogadoras brasileiras.
O século XXI trouxe avanços importantes para o futebol feminino no Brasil. Jogadoras como Marta, Formiga e Cristiane se tornaram ícones mundiais, conquistando prêmios e reconhecimento internacional. Marta, com seis títulos de melhor jogadora do mundo pela FIFA, transformou-se em um símbolo de luta e inspiração para as novas gerações.
Apesar dos avanços, a disparidade financeira entre o futebol feminino e masculino ainda é gritante. Marta possui ganhos anuais de cerca de US$400 mil, conforme levantamento do jornal espanhol “Marca”. Enquanto isso, Neymar, outro craque brasileiro, acumula ganhos anuais que beiram os US$50 milhões, segundo a “Forbes” de 2023.
Apesar do sucesso individual de muitas atletas, o futebol feminino no Brasil ainda enfrenta desafios estruturais. Clubes profissionais começaram a investir na modalidade mais recentemente, em grande parte devido à obrigatoriedade imposta pela Conmebol para participação em competições masculinas.
A disparidade no investimento também pode ser observada nas competições nacionais. Como mostra os dados apresentados na reportagem da ESPN Brasil, no Campeonato Brasileiro Feminino, os gastos da CBF apresentaram redução nos últimos anos. Em 2020, antes da gestão de Ednaldo Rodrigues, foram destinados R$23,9 milhões para a competição. Em 2021, com apenas quatro meses sob a liderança do atual presidente, o valor aumentou para R$27 milhões. No entanto, em 2023, os gastos caíram novamente, chegando a R$23 milhões. Essa diminuição contrasta com o crescimento nos investimentos realizados em torneios masculinos.
Na Série D, a quarta divisão do futebol masculino, os gastos seguiram uma trajetória oposta. Em 2021, a CBF destinou R$66,7 milhões para a competição. Já em 2022, esse número saltou para R$85 milhões, quase quatro vezes o montante investido no Brasileiro Feminino. Esses dados revelam a disparidade não apenas na visibilidade, mas também no suporte financeiro, dificultando a consolidação e o crescimento do futebol feminino no país.