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O protagonismo negro e a valorização da cultura afro-brasileira se destacam no maior show da Terra

Por Luana Rafael

O carnaval do Rio de Janeiro é um dos maiores espetáculos culturais do mundo, e para muitos de seus protagonistas, a festa vai muito além da celebração: é uma forma de resistência, orgulho e transformação.

O carnavalesco e comentarista Milton Cunha descreve a manifestação como um culto aos orixás: “Dizem que é a gira do orixá, que por ser uma procissão negra, aquilo é misterioso e feiticeiro. Então, falam que quando os orixás se juntam pra dizer ‘é agora’, você tem a excitação da plateia, como foi Kizomba [Vila Isabel, 1988] e Ita do Norte [Salgueiro, 1993]. Parece que de vez em quando a mágica se dá e a loucura se estabelece”, conta Milton.

Desde os primeiros desfiles, nos anos 1930, temas ligados à negritude ganharam destaque, resgatando histórias esquecidas ou silenciadas. Em 1960, por exemplo, a Acadêmicos do Salgueiro revolucionou o carnaval ao trazer o enredo “Quilombo dos Palmares,” marcando a primeira abordagem explícita sobre a resistência negra no desfile. Essa inovação abriu as portas para que outras escolas exaltassem figuras como Xica da Silva, Chico Rei e até entidades religiosas africanas, como Exu e Oxóssi.

Os anos 2000 consolidaram essa tendência, com desfiles que não apenas celebram a cultura preta, mas a colocam no centro do espetáculo. A vitória da Grande Rio em 2022 com o enredo “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu” foi um marco contemporâneo, que ao ressignificar a visão sobre Exu, historicamente demonizado, promoveu um diálogo profundo sobre espiritualidade africana, racismo religioso e preconceito histórico.

Selminha Sorriso, porta-bandeira consagrada da Beija-Flor de Nilópolis, representa essa conexão histórica e cultural. “Eu, na verdade, me encontrei como uma mulher negra no enredo da Beija-Flor de 2022: “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”. Enquanto porta-bandeira eu já tenho bastante experiência, mas eu não entendia o meu papel enquanto mulher negra. Uma porta-bandeira negra, de uma cultura e manifestação pretas, mas que não entendia como era ser uma figura que pudesse representar e inspirar outras pessoas”, destaca Selminha.

Esse despertar reflete como o carnaval pode ser um momento de autodescoberta, onde artistas e componentes se veem como protagonistas de uma narrativa maior, capaz de transformar a percepção coletiva sobre a história e o papel das pessoas pretas no Brasil. Selma enfatiza esse palco para a valorização da cultura preta e da comunidade que a sustenta. “No carnaval, ou seja, nessa manifestação preta, que não segrega, ao contrário das manifestações brancas e europeias que nos segregaram e nos tiraram os direitos, nós podemos trazer e manter vivo tudo que veio com os nossos antepassados”, afirmou a porta-bandeira.

Para o jornalista e enredista, Fábio Fabato, a manifestação é a forma que o Brasil encontrou de contar suas histórias: “A gente consagrou uma forma brasileira de narrar, que é através do carnaval. O enredo é o tema e o samba é a forma musicada de contar essa ópera”, afirma o jornalista.

Imagem 1: Desfile da União de Maricá na Sapucaí em 2024/ Reprodução: Arquivo pessoal

A voz da comunidade

Na avenida, a Estação Primeira de Mangueira, uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio de Janeiro, tem uma importante história de destaque na luta pela representação da herança africana. Fundada em 1928, a Mangueira costuma apresentar em seus desfiles a valorização das raízes afro-brasileiras, exaltando figuras históricas da resistência negra, como a primeira mãe do samba, Tia Ciata, e a negra voz do amanhã, Alcione.

No Carnaval de 2025, a escola vai contar com a presença de jovens como Pedro Leal, que veem no samba uma forma de reafirmação da sua identidade e pertencimento. Para Pedro, que vai desfilar na ala da comunidade, a festa vai além do entretenimento: ‘O carnaval, além de festa, é reflexão e identificação. Quando descubro que o enredo de uma agremiação será uma crítica à criminalização do povo preto, me identifico na hora, compreendendo que a temática será sobre violência física, psicológica, entre tantas outras que eu já conheço”, relata Pedro.

Ele também enxerga na Mangueira um papel central na valorização da cultura preta e na reparação histórica. “A Mangueira é uma das poucas escolas que ainda possui a quadra no morro e uma rainha de bateria nascida e criada na comunidade. Isso reforça a conexão com suas raízes e com a luta das pessoas pretas”. 

Pedro destaca momentos marcantes da escola, como o enredo sobre Marielle Franco e críticas à narrativa tradicional sobre a Princesa Isabel. “É uma das principais escolas que buscam reparação histórica e os verdadeiros heróis deste país, como vimos com a homenagem à Alcione e o próximo enredo que reflete sobre a negritude no Rio de Janeiro. Saber quem são os heróis e ícones pretos da música, arte e entretenimento, como Nelson Sargento, Jamelão, Dona Ivone Lara e Leci Brandão, é incrível”, ressaltou Pedro.

Imagem 2: Pedro Vinícius no ensaio de rua da Mangueira/ Reprodução: Arquivo pessoal

A negritude na avenida

O evento como conhecemos hoje é fruto de uma junção de culturas. Originalmente, o entrudo, trazido pelos portugueses, marcou as primeiras celebrações carnavalescas no Brasil colonial, com brincadeiras que remetiam a jogos populares na Europa. No entanto, a partir do século XIX, a influência africana transformou radicalmente essas festas, dando origem ao samba e consolidando o carnaval carioca como símbolo da identidade negra no Brasil.

Os negros escravizados introduziram danças, cantos e percussões que, com o tempo, se tornaram o alicerce do samba; ritmos como o jongo, o lundu e o maxixe deixaram suas marcas nos batuques e evoluções que dominam os desfiles até hoje. Nas décadas seguintes, essas manifestações, antes marginalizadas, evoluíram para formas mais estruturadas, com o surgimento dos ranchos carnavalescos e, posteriormente, das escolas de samba.

Em 1928, foi fundada a primeira escola oficial, a Deixa Falar, no bairro do Estácio, marco inicial da profissionalização do desfile de carnaval. Com o passar do tempo, as escolas de samba se tornaram protagonistas de uma narrativa onde a cultura preta não apenas era celebrada, mas também reivindicava espaço e reconhecimento.

A professora e foliã apaixonada Adriana Azevedo destacou o trabalho realizado por várias pessoas, que constroem a magia do espetáculo: “Eu acho maravilhoso você ver pessoas que têm pouca instrução, mas que desenham e montam aquele espetáculo. Porque existe um engenheiro, um ferreiro, escultores, pessoas que, muitas vezes, não tiveram estrutura de ensino, mas o carnavalesco fala o que quer e elas fazem acontecer. É um talento nato”, apontou Adriana.

Gravura do pintor francês Jean-Baptiste Debret que retrata o entrudo nas ruas do Rio de Janeiro no início do século XIX/ Reprodução: BBC

Entre o mercado e a tradição

Contudo, apesar do carnaval ter se tornado uma vitrine de criatividade e cultura, a crescente busca por patrocínios e a necessidade de agradar um público diversificado têm gerado preocupações sobre a perda de sua essência. O que antes era ignorado por muitos, hoje é reconhecido como uma oportunidade de investimento, lucro e retorno. Esse protagonismo dado ao povo preto não apenas ressignifica a importância cultural, mas também impulsiona a economia. A visibilidade gerada movimenta os cofres públicos, atrai a iniciativa privada, gera renda, cria empregos e impacta a vida de inúmeros trabalhadores, direta e indiretamente, fortalecendo a engrenagem social e econômica da cidade.

Hoje, as escolas  enfrentam dilemas ao equilibrar as demandas comerciais com o desejo de manter a autenticidade cultural em seus desfiles. Embora os patrocínios sejam importantes para a viabilidade financeira das agremiações, muitos questionam se essa dependência compromete o espaço para as narrativas culturais profundas e politicamente engajadas.

Um exemplo clássico desse processo é o desfile da Portela, maior campeã do carnaval carioca, em 2010, patrocinado pela empresa de tecnologia Positivo. O tema “inclusão digital” e o patrocínio levantaram críticas sobre o impacto da mercantilização na autonomia criativa das escolas de samba. O enredo controverso e alvo de duras críticas levou a escola de samba a despencar na classificação geral, derrubando-a da 3ª posição, alcançada em 2009, para a 9ª. A parceria evidenciou como interesses comerciais podem impactar o fazer artístico-cultural, muitas vezes em favor de uma estética mais alinhada ao mercado, o que resulta em um distanciamento das questões históricas e sociais que o carnaval originalmente aborda.

Imagem 4: Tradicional águia da Portela no desfile de 2010/ Reprodução: Ricardo Almeida/Galeria do Samba

Embora frente aos desafios da mercantilização e da apropriação cultural no carnaval carioca, a cultura preta segue sendo o coração pulsante dessa festa. O samba, mais do que nunca, se reafirma como uma resistência, não apenas histórica, mas também um grito de esperança e afirmação para as futuras gerações.

Para jovens como Pedro Leal, da Mangueira, o carnaval é um palco global para demonstrar a resistência do povo preto. “Eu espero que, em alguns anos, a nossa população enxergue os verdadeiros ícones deste país e a quantidade de mortes e sangue derramado que precisou acontecer para que cheguemos nos dias atuais. Que os nossos carnavais passem a ser montados por pessoas pretas, sempre trazendo à tona a cultura afro e as dores de nossos ancestrais, sem esquecer da luta pela vida e dignidade dos pretos do Brasil”.

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