Embora os pretos e pardos representem a maioria da população do país, como docentes nas salas de aula das universidades eles não chegam a 20%
Por Luiza M. Martins
A falta de professores pretos nas universidades brasileiras é uma realidade preocupante e que reitera a estrutura marcada por preconceitos raciais do sistema educacional do país. De acordo com as pesquisas mais recentes do IBGE, o percentual de autodeclarados pretos e pardos chega a 57,1% da população, mas nas salas de aula das faculdades, o número nem chega perto de expressar essa condição.
Segundo dados do INEP, apenas 16% dos docentes fazem parte dessas etnias. Já pesquisas recentes do Censo da Educação Superior apontam que nem a metade das universidades do país chegam a ter 20% de professores pretos em seus quadros. Números que, nitidamente, não condizem com a realidade brasileira. Essa constatação, inclusive, já foi feita em uma pesquisa realizada pelo jornal Estadão, através de um levantamento que mostrou que apenas 3% das faculdades têm um quadro de professores proporcional aos percentuais nacionais de raça.
E esse processo acontece ainda que o aumento de profissionais que se autodeclaram pretos e pardos nas faculdades esteja previsto em lei. Em 2014, entrou em vigor a Lei 12.990/2014, que reservava 20% das vagas para docentes negros em faculdades públicas. Entretanto, isso não foi o suficiente para criar um quadro de profissionais mais amplo etnicamente. Isso porque, considerando os processos para se tornar um professor de universidade pública, o modelo de legislação não era muito efetivo em suas primeiras versões. Não é difícil entender o motivo, uma vez que as vagas para essas posições são bem escassas.
Até então, a lei estabelecia as cotas apenas quando havia pelo menos três vagas a serem preenchidas por concurso. A questão é que muitos processos seletivos específicos para professores eram abertos com apenas uma. Já em concursos onde havia uma vaga para professor e outras para os demais setores, a cota era aplicada para todos os inscritos – e, sendo assim, as pessoas pretas contratadas não necessariamente entravam como professoras. O resultado disso é que, de acordo com dados do G1, entre 2014 e 2019, foram abertas mais de dezoito mil vagas nas intuições de ensino superior brasileiras e apenas 5% delas acabaram sendo preenchida por um professor preto.
Em 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STF) tomou uma decisão que obrigou as universidades públicas a tomarem medidas alternativas para garantirem o aumento da representação de pretos no corpo docente. Algumas instituições passaram, então, a calcular o número de vagas reservadas para cotas a partir do total de vagas que abririam em todo o ano, somando todos os concursos para professor. Em entrevista ao O Casarão, o reitor da Universidade Federal Fluminense, Antônio Cláudio Lucas da Nóbrega, afirmou que na faculdade foi adotado novo sistema para os concursos para a docência como forma de cumprir a determinação do STF e conseguir aplicar a política. O reitor ainda afirmou que a UFF “tem tratado de maneira bastante institucional, planejada e responsável a representação dessas minorias, que precisam de políticas afirmativas para conseguirem exercer seus direitos. Isso tem avançado rapidamente, seja no atendimento aos estudantes, aos técnicos ou aos professores. Mas ainda precisamos construir mais, sem dúvidas”.
Os números gerais das faculdades, no entanto, ainda estão aquém do ideal, como vemos nas estatísticas. E um dos pontos mais tristes em relação às consequências da falta de representatividade preta nos corpos docentes é que a experiência educacional dos alunos vindos desses grupos pode acabar sendo impactada.
Foi o caso da estudante de pedagogia Hérika Marques, da UNIRIO, que nunca tinha tido contato com um docente preto na faculdade até conhecer Jane Santos, professora doutora do curso que se tornou uma de suas referências. Em entrevista, ela contou sobre como foi o momento, que descreveu como inesquecível. “Quando eu vi a Jane se apresentando, meu olho brilhou. É uma professora universitária preta. Vê-la num lugar de destaque; uma mulher preta falando sobre seus estudos com autoridade, comandando todo mundo e respeitada com seus saberes e trajetória. Aquilo deu um estalo. Pensei ‘caramba! Eu quero ser assim quando crescer.'”.
Infelizmente, no entanto, a experiência de Hérika é mais exceção do que regra. Na mais importante universidade do país, a Universidade de São Paulo, menos de 3% do corpo docente é composto por pessoas pretas. O percentual fica ainda mais impressionante quando é traduzido em algarismos: de acordo com um levantamento racial feito pela própria universidade em 2021, dos 5.412 docentes que compõem o corpo, apenas 129 se autodeclararam pretos ou pardos.
Para Paulo Melgaço, professor do Teatro Municipal e do programa de pós-graduação em artes cênicas na UNIRIO, esse tipo de disparidade afeta a percepção que os próprios alunos desenvolvem sobre sua futura área de atuação. Em entrevista, ele contou que ter professores da mesma raça é importante para que os jovens consigam se ver naquela profissão no futuro. “Os nossos alunos precisam se ver, eles precisam acreditar que é possível. Eu não tive um professor negro na universidade. É muito difícil você não se ver naquele meio.”
Outra pessoa que contou ao Casarão que também sentiu essa falta em sua trajetória como aluna foi a estudante Débora Apolinário, jovem, preta e moradora do Jacarezinho. Em entrevista, ela explicou que, em sua perspectiva, ter mais pessoas pretas ensinando na faculdade poderia ter feito com que ela se sentisse mais corajosa e ousada. Mas, como tantos outros alunos, Débora relatou que foram pouquíssimos os professores pretos que cruzaram o seu caminho. “Na minha vida educacional inteira, eu lembro que tive dois. Um no ensino fundamental e um na faculdade”.
A estudante, que cursa jornalismo em uma faculdade particular na Barra da Tijuca, contou que, lá, até mesmo os alunos pretos são raros. Segundo ela, quando entrou no curso, aquele foi um baque que precisou superar, já que se sentia insegura por não encontrar muitas referências de pessoas parecidas com ela. Quando conheceu dois alunos retintos, ela se juntou a eles sem nem mesmo questionar. “Eu não queria saber da personalidade deles. Eu me sentia mais confortável de estar ali, com pessoas mais parecidas comigo”.
E esse tipo de perspectiva aponta, diretamente, para a falta que faz, principalmente para alunos como Débora, ter um professor preto comandando as aulas e até mesmo montando as grades curriculares. Se ela não se sentia confortável em meio a alunos tão diferentes, o mesmo poderia ser dito sobre a forma com que docentes brancos conduziam aulas que tratavam de povos pretos. Não que isso seja culpa deles – afinal, a maneira com que a matriz curricular do ensino fundamental e médio aborda esse tema é, de forma geral, racista, mas para Débora, ter um professor preto conduzindo esses temas poderia fazer uma grande diferença. “Quando eu estava na escola, não se falou tanto sobre a participação dos pretos na construção da sociedade. A escravidão era muito falada, mas a contribuição para as artes, literatura, comida típica e outras coisas ficaram de fora. Isso poderia mudar caso os professores entendessem mais sobre essas outras perspectivas”.
Como um docente preto, Paulo também apontou para um desafio específico dessa condição: a solidão. Para ele, a falta de colegas que tenham vivido uma história parecida e venham de uma realidade semelhante é algo doloroso de se lidar. Segundo ele, “a falta de par, a falta de pessoas que você possa trocar, que conheçam suas dores e dificuldades é o grande desafio enquanto professor. Isso pode, inclusive, reverberar no trabalho. Não tem, no meu departamento, quem possa dar aula de uma educação antirracista a partir de uma perspectiva negra. Só a partir da branquitude, o que já é um grande passo, mas é diferente. Com quem eu posso discutir sobre negritude se sou o único negro?”
Para transformar essa realidade, é preciso enfrentar uma série de obstáculos. O principal deles é a persistência de comportamentos racistas na sociedade. E para Paulo, a presença desses profissionais nas faculdades é fundamental para uma mudança na sociedade como um todo. “Se nós temos na base uma sociedade tão diversa, por que em uma universidade, que fica no topo dessa pirâmide, a gente não pode ver esta diversidade? É importante que os professores pretos ocupem esses lugares. Isso certamente terá um impacto muito grande na sociedade”.
Fontes e dados:
https://revistaensinosuperior.com.br/2022/11/18/onde-estao-os-professores-negros/
https://www.geledes.org.br/enegrecer-a-docencia-universitaria/