Mulheres ocupam espaço de apenas 8% no movimento e lutam para não serem silenciadas

Por Ana Clara Nascimento

“Homem só escuta homem. Quê que eu posso tá fazendo? Vai me provando o contrário, filho, eu só acredito vendo”. O trecho da música “HSEH”, da rapper Mc Luanna, aborda as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mercado do Rap. Embora o consumo desse gênero musical tenha crescido no Brasil ao longo dos anos, a presença feminina na cena do Rap continua sendo minoritária, conforme evidenciado pelo estudo de Leonardo Morel e Vitor Gonzaga, revelando que apenas 8% das mulheres ocupam espaço nesse contexto.

O Rap surgiu como uma música de resistência e luta, principalmente entre a população periférica, e faz parte do movimento Hip-Hop, originado nos Estados Unidos. Na década de 80, o movimento chegou ao Brasil e teve seus primeiros momentos na Rua 24 de Maio, em São Paulo. A presença e contribuição feminina no Rap existem desde os seus primórdios; nomes como Negra Li, Dina Di, Rubia RPW, Sharylaine e Cris SNJ se tornaram referências como pioneiras nesse movimento. No entanto, apesar do legado deixado para a cultura Hip-Hop, essas mulheres não receberam o mesmo destaque e oportunidades que os homens da cena, e muitas permaneceram firmes apenas pela ideologia.

Mulheres que participam da cena do Rap/Reprodução: Internet

O Coletivo Mulheres no Rap, fundado na Bahia pela produtora cultural Leila Campelo, surgiu durante a pandemia com o intuito de influenciar e reconhecer a presença feminina na cena do Rap. Leila comentou que o movimento sempre foi machista: “Quase não vemos o nome de mulheres que fizeram parte dessa história; ela sempre é contada pelos homens e com os nomes deles”. A produtora ressaltou a importância e necessidade de convidar os homens para debates, para combater o machismo. “Infelizmente, precisamos deles também para ter visibilidade, já que a maior parte do movimento é composta por homens”, concluiu.

Presente no movimento há sete anos e dona de uma voz potente, Beatriz Soares, mais conhecida como Bel4triz, tem 22 anos e é uma das mulheres que demonstram seu talento na cena atual. Em parceria com Cynthia Luz, uma das principais figuras femininas no Rap, Bel4triz lançou o single “Minha Cura”, em abril, acumulando mais de 5 mil visualizações no YouTube. A artista, que iniciou sua trajetória por meio da poesia de rua, comemora o sucesso de seu trabalho e fala sobre a necessidade de apoio entre as mulheres: “Precisamos nos apoiar e que o público nos apoie também. Não adianta apenas militar sobre as mulheres que trabalham com música, é necessário consumir nosso trabalho”.

Bel4triz e Cynthia Luz no videoclipe de “Cura”/Reprodução: Instagram @bel4triz

Questões de Gênero

Ser mulher é desafiador em qualquer circunstância, afinal, o modelo de sociedade foi construído com base no sistema patriarcal, no qual as relações de domínio e poder dos homens prevalecem sobre as mulheres. Dentro do patriarcado, enquanto a figura masculina está no topo, recebendo maiores e melhores oportunidades e desfrutando de privilégios, a mulher se encontra fadada à invisibilização e a cumprir uma série de obrigações sociais.

A professora associada ao departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora no campo de Comunicação e Gênero, Danielle Brasiliense, explica que as normas sociais são baseadas na cultura patriarcal e há a necessidade de colocar os homens acima de qualquer estrutura de poder. Já a mulher, é percebida como “aquela que vai ajudar o homem, que vai colaborar com a casa e cuidar dos filhos”. Além disso, ela explica que a manutenção de poder do homem depende de “uma posição de subalternidade das mulheres, que têm mais obrigações e atividades do lar”.

Dentro da cena do hip hop, essa realidade não se distancia e os desafios enfrentados por elas são evidentes. O machismo não se reflete apenas entre os artistas e produtores do movimento, mas também entre o público que consome o gênero. Apesar de estarem ganhando força dentro do cenário, mulheres ainda não são tão consumidas musicalmente quanto os homens. O projeto Algo_Ritmos analisou que as plataformas, como Deezer e Spotify, apresentam homens em mais de 55% das recomendações, enquanto as mulheres são apresentadas cerca de 20% em média.

Para Bel4triz, o Hip-Hop é preto e deveria oferecer um local de abrigo e liberdade principalmente para as mulheres negras. No entanto, na opinião da artista, “a cultura falha e ensina que homens são feitos para apoiar homens e odiar mulheres na maior parte dos trabalhos, e criam mulheres para serem rivais. Homens e mulheres escutam homens”.

Já em letras e em vivências fora da esfera musical, o machismo e sexismo se instauram a partir da objetificação, misoginia e comentários com teor sexual. Nas batalhas de rima, evento em que dois ou mais MCs (Mestres de Cerimônias) competem entre si por meio de rimas improvisadas, as mulheres foram por muito tempo silenciadas e invisibilizadas, quando não eram atacadas e oprimidas. Em 2016, na Batalha do Tanque, em São Gonçalo, a rapper Azzy – na época com 14 anos – foi alvo de uma rima com teor sexual do MC com quem batalhava. O verso tomou proporções avassaladoras e, em um Podcast recente, a artista confirmou receber até hoje comentários desrespeitosos em suas redes sociais sobre a rima.

Batalha entre Azzy e Knust em 2016/Reprodução: YouTube

MC de freestyle, compositora, artista e poetisa, Naiane Estavam, 22, do Espírito Santo, diz que se sente muito abafada em batalhas de rima: “Vivenciamos o machismo e o egocentrismo masculino. Eles esquecem que é um jogo de batalha de rima e criam situações pessoais e opressivas”. A artista também destaca que se sente violada diversas vezes na cena do Rap.

O hip hop, teoricamente um movimento de contracultura, resistência e luta contra a marginalização, tem seguido os padrões do sistema patriarcal, perpetuando um modo de masculinidade inerentemente machista. As mulheres são frequentemente silenciadas e sua presença na cena é negada devido a um pacto social masculino. A pesquisadora de Comunicação e Gênero explica que existe uma força da virilidade que se apoia e não quer perder o lugar de privilégios sociais: “Existe esse apoio, né? Muitas vezes acontece também por conta de uma misoginia, por compreenderem que o lugar da mulher é de fragilidade”. Por fim, Danielle destaca a importância do movimento feminista para que os parâmetros sociais modifiquem-se e aponta para uma “possibilidade de viver em igualdade”.

Mulheres no Rap nacional

A fundadora do Coletivo Mulheres no Rap destacou como a participação das mulheres no movimento é importante para influenciar no empoderamento e no reconhecimento dentro desse cenário. Em pleno 2023, é importante valorizar o trabalho delas pelo Hip-Hop e pelo Rap. A nova geração de meninas vem forte e mostra que as rappers estão mais do que preparadas para ocupar todos os lugares que desejarem na sociedade e na música.

Diretamente de Queimados, Baixada Fluminense, Milena Martins, 22, conhecida artisticamente como Ebony, chegou na cena em 2019 com os singles “Bratz” e “Glossy”. Apesar da pouca idade, Ebony ganhou notoriedade nacional e foi eleita a Revelação do Rap no prêmio Genius Brasil de Música no ano de 2019. Recentemente, a artista lançou o álbum “Megalomaníaca” e a diss (do inglês diss track, ou canção de insatisfação) “Espero que entendam”, que expõe a falta de incentivo por parte do público masculino às mulheres do Rap no Brasil. “Não vou deixar com que homens limitem qual tamanho as mulheres podem chegar”, diz a Rapper no final da track.

Foto da rapper Ebony/Reprodução: Instagram @ebony

Da Bahia para São Paulo, Luana Santos Oliveira assumiu o nome MC Luanna e lançou sua primeira música em 2020. Em junho do mesmo ano, a artista soltou o EP “Maldita” em parceria com o produtor Mello Santana, mas foi a produção da mixtape “44”, lançada em setembro do mesmo ano, que foi pensada para apresentar a MC Luanna para o público e mercado. Luana é a voz por trás da música “HSEH”, em que critica a cultura machista da cena do Rap.

Foto da rapper MC Luanna/Reprodução: Instagram @mcluanna

Acumulando mais de 5 milhões de visualizações no YouTube, as irmãs gêmeas Tasha Okereke e Tracie Okereke, 26, são fenômenos e se tornaram referências no Rap. Com seu disco de estreia, “Diretoria”, lançado em 2021, a dupla foi consolidando seu trabalho através de letras que valorizam a cultura periférica. Em 2020, além de apresentar seu trabalho em diversos festivais, Tasha & Tracie foram as únicas brasileiras indicadas para o BET Hip Hop Awards 2022. Elas são responsáveis por sucessos como “Tang”, “Desce Licor”, “Willy” e “SUV”. 

Foto da dupla Tash&Tracie/Reprodução: Instagram @tashaokereke

Enfrentando o mundo do Rap desde seus 7 anos, MC Soffia vem da Zona Oeste de São Paulo e passou por certa resistência até entrar no mundo do Hip-Hop, por ser um universo dominado por homens e com forte preconceito em relação à participação feminina. Hoje com 19 anos, Soffya fala através de suas músicas sobre desigualdade e distorções sociais graves, como preconceito, racismo, machismo, sempre incentivando mulheres a se amarem e se apoiarem umas nas outras. “Eu faço questão de questionar no texto. Quando que os pretos vai amar as pretas?”, é o questionamento feito pela jovem rapper em sua música “Meu lugar de fala”. 

Foto da rapper MC Soffia/Reprodução: Instagram @mcsoffia
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